E cumpre-se neles a profecia de Isaías, que diz: Ouvireis com os ouvidos, e não entendereis; olhareis com os vossos olhos, e não vereis. Porque o coração deste povo tornou-se insensível, os seus ouvidos tornaram-se duros…
Escrever sobre os conceitos originais de Olavo de Carvalho é um desafio; não por conta de alguma dificuldade intrínseca, feito ocorre com termos cujo referente real nos escapa, mas devido ao seu caráter fragmentário. É de se crer que, tal qual ocorrido com Mário Ferreira dos Santos, cujos livros comumente advém de transcrições mais ou menos tratadas, Carvalho, ao escolher ser um falador antes de um escritor,[1] tenha sofrido do mesmo mal de seu predecessor: legar as próprias teses a um desenvolvimento póstumo.[2] Todavia, posto que aqueles que resolvem problemas são antes os agentes do que os murmurantes, proponho que reflitamos acerca do conceito da paralaxe cognitiva, termo muito útil para que entendamos a relação entre as esferas teórica e empírica.
A paralaxe cognitiva, feito outros conceitos olavianos, teve seu desenvolvimento interrompido pela morte do autor; seus últimos desdobramentos ocorreram por volta das últimas aulas do Curso Online de Filosofia; contudo, é possível encontrá-lo em livros e artigos redigidos quase vinte anos antes da produção destas aulas. No artigo Prestação de Contas, por exemplo, verificamos que o termo, chamado num primeiro momento de paralaxe conceitual[3], visava delimitar uma espécie de contradição entre a pessoa real e a persona assumida no momento da construção de uma tese. Mas o que isso significa? Não poucos autores identificaram que pode ocorrer uma espécie de fusão indevida entre um papel social e a pessoa que o exerce; Peter Berger, concatenando este tema com o da má-fé,[4] aponta que, enquanto desempenha um papel, pode ocorrer que o sujeito sofra uma forma de despersonalização em que ações que executa sucedem como se fossem efetuadas por outra. Grosso modo, é a persona do papel social que executa a ação e não a pessoa concreta; isso pode ser visto no caso daquele que, após cometer imoralidades, alega que estava apenas “fazendo o seu trabalho”. Olavo, que pensa mais ou menos o mesmo através do que chamarei de exemplo teatral, compara aquele que confecciona teses paraláticas[5] com o do ator que encarna uma persona, mas, ao invés de voltar a si uma vez que desce do palco, vive como se fosse o personagem. Nisto, uma fórmula lúdica pode ser instrutiva para clarificar a estrutura do fenômeno: “se o que eu digo for verdadeiro, segue que eu sou falso”.[6] O filósofo busca apontar um deslocamento entre o que a pessoa diz e o que ela é, digo, não uma contradição lógica, mas cerca desconexão entre a esfera teórica e a empírica; sendo assim, urge que procuremos pelo referente real que origina a tese. Olavo nos fornece vários exemplos, entre os quais utilizaremos dois para que extraiamos a estrutura do fenômeno; um da época em que o termo se chamava paralaxe conceitual e outro de quando se tornou paralaxe cognitiva. [7]
O primeiro exemplo, presente no artigo Prestação de Contas, ocorre na crítica a István Mészáros e a tese de seu Para Além do Capital. Olavo argumenta que o autor, sustentando que o capitalismo consiste num sistema que obriga as pessoas a produzirem ou morrerem, o faz da posição de acadêmico dispensado da obrigação de produzir para que, assim, se dedique ao trabalho intelectual; nisto, ocorre uma incongruência entre o artífice e sua tese na medida em que, caso a tese estivesse correta, o autor não poderia redigi-la por estar ocupado demais produzindo. Por outro lado, posta a situação concreta de seu enunciador, enquanto acadêmico dispensado de outras tarefas, então o argumento não pode estar correto, pois a existência de seu compositor é um contraexemplo. Nisto, é como se o cisne negro escrevesse um livro cuja tese consiste em que todos os cisnes são brancos. Mediante tal exemplo, Olavo sugere a seguinte fórmula:
“Chamo isso de paralaxe conceitual: o deslocamento entre o eixo visual do indivíduo real e o da perspectiva que enquanto criador de teorias ele projeta naquilo que escreve. Uma teoria assim concebida é puramente ficcional, no sentido estrito do termo.”[8]
O segundo exemplo, presente em Maquiavel ou a Confusão Demoníaca, ocorre em meio às críticas ao pensador enquanto instituidor de teses em flagrante contradição com a concretude de sua vida. Olavo argumenta que Maquiavel necessita encarnar uma persona para que possa descrever “o mundo desde o ponto de vista dessa ficção”.[9] Nisto, conforme o exemplo teatral, o florentino estaria confeccionando seu construto teórico não de acordo com sua experiência concreta, mas com uma persona assumida. No entanto, segundo Olavo, caso o teorema maquiavélico seja posto em prática, segue a morte de seu autor; portanto, suas teses não foram apenas escritas por uma persona, mas também de modo que sua estrutura ignora a existência de seu criador.[10] Aqui temos a fórmula final do conceito: “A este deslocamento entre o eixo da construção teórica e o eixo da experiência vivida denomino paralaxe cognitiva.”[11]
Podemos aferir, a partir de ambos os exemplos, dois pressupostos: a) o plano da experiência e o da especulação são distintos e b) ambas as esferas devem harmonizar-se.[12] Olavo assume, aqui, uma posição realista: podemos conhecer as coisas e descrevê-las de forma que nossa exposição seja passível de verificação por outros mediante seu referente real. Caso a harmonia entre a exposição e o exposto não seja verificável, i.e., o eixo teórico e o empírico não estejam afinados, segue que houve um erro de percepção ou de conjectura. Nisto, o deslocamento da esfera teórica é um problema por reduzi-la a um construto destituído de realidade, i.e., flatus vocis. Desta forma, enquanto problema, a paralaxe cognitiva pode contestar obras inteiras por verificar que nada dizem de real.
A estrutura do fenômeno chamado de paralaxe cognitiva comporta duas fases que contém duas incongruências. A primeira consiste na assunção da persona: o autor não fala a partir de sua vivência, mas da de um personagem que assume no momento da confecção de seu construto teórico. A segunda, decorrente da primeira, consiste, devido ao descolamento do nexo entre o enunciador e o enunciado, na desarmonia ou paralaxe entre o eixo teórico e o empírico. Segue que a aferição do fenômeno depende do exame da biografia do autor e das afirmações de sua obra; portanto, paralaxe cognitiva insere-se no conjunto dos argumentum ad hominem válidos.[13] Para que entendamos com maior precisão como as fases se sucedem, é preciso que observemos sua operação.
Quando à primeira fase, em seu artigo Mais Paralaxe, Olavo procura explicar o problema através de precauções metodológicas necessárias ao bom curso da filosofia. Em suma, proposições filosóficas, enquanto referentes à realidade, precisam incluir, em seu escopo, dois elementos: o emissor e a situação em que se encontra. Tudo aquilo que o filósofo disser sobre a realidade o incluirá enquanto entidade real; nisto, Olavo segue Voegelin: o filósofo versa sobre a realidade enquanto setor dela mesma que a explora “de dentro” a partir de uma posição no tempo e no espaço. Caso assuma uma persona, um eu-lírico corrompido, retirar-se-á da realidade sob duplo aspecto: a) colocando-se feito observador alheio ao objeto e, assim, fora do mesmo plano em que jaz enquanto entidade real e, b) uma vez alienado da realidade sobre a qual visa especular, age como se não estivesse submisso à sua condição espaço-temporal.[14] Nisto, temos uma forma de distorção[15] que Olavo compara, constantemente, à posição de um narrador onisciente.
A segunda fase, definida celebremente enquanto “deslocamento estrutural entre o eixo da experiência real de um pensador e o eixo da sua construção teorética”[16], decorre diretamente da posição de narrador na medida em que o autor, alienado de seu posto numa realidade concreta, mas nela vivendo, passa a especular sobre uma que não o inclui.[17] Conforme indicado por Voegelin, a estrutura da consciência foi mantida, mas o contato com o real foi perdido. Nisto, setores da realidade – incluso o enunciador – são omitidos de forma mais ou menos sistemática na proporção em que a estrutura da especulação deve concordar com princípios postos de antemão. Segue que o construto teórico será logicamente coerente; porém, erigido sobre um erro fundamental, vazio.
Ademais, por conta da tendência de o desvio capital ocorrer no método, numa espécie de pensamento metonímico, o pensador não notará que sua obra não possui um referente real por seu artífice ter trocado sua posição concreta pela de eu-lírico. Na aula 573 do Curso Online de Filosofia, Olavo utiliza o empirismo feito exemplo de tese paralática[18] de acordo com o seguinte esquema: para tornar o empirismo inteligível, seu proponente necessita de uma série de pressupostos alheios à experiência conforme entendida pelo viés empirista; segue que a construção do empirismo depende de critérios de verificação que o empirismo mesmo não comporta; portanto, a tese de que a experiência é o fundamento do conhecimento deve estar errada.[19] Todavia, a condição de ocorrência desta incongruência consiste em que o autor esteja, de alguma forma, inconsciente de seu erro, e é essa característica que leva o filósofo a afirmar que a paralaxe cognitiva “nada tem que ver com hipocrisia, com mentira consciente […] é um defeito na consciência, um escotoma, um ponto cego, uma espécie de abismo aberto entre a experiência real e sua tradução ou elaboração intelectual.”[20] Deste ponto de vista, é compreensível que a paralaxe ocorra quando o indivíduo, num ato de contração feito o descrito por Voegelin, perde a noção de sua posição concreta enquanto pessoa e passa a compreende-se enquanto algo alheio; entretanto, um homem descolado do real não pode descrever a realidade. Nisto, a paralaxe cognitiva se torna a origem de uma série de teses impraticáveis por conta de, ainda que conservem certa coerência lógica, não poderem ser efetuadas. Assim é o ceticismo absoluto: ainda que o utilizemos para testar outras teses, é impossível que duvidemos de forma constante – a rigor, um ceticismo absoluto enquanto vivido tem outro nome: dúvida patológica, uma forma transtorno obsessivo.
Descrito o fenômeno e seu problema, como identificar e evitar a paralaxe cognitiva? Em primeiro lugar, é preciso abandonar o dogma que afirma que construtos filosóficos sejam de alguma forma autônomos ou alheios ao seu artífice. A filosofia não pode ser separada da vida na medida em que é confeccionada por alguém enquanto expressão da forma com que tal pessoa entende a realidade. Daí os dois pressupostos olavianos: ainda que a esfera teórica e a empírica sejam distintas, elas devem coincidir; caso expressemos algo diferente do que experimentamos, ou estaremos mentindo, ou nos enganando devido a erros de percepção ou de ajuizamento. Caso as afirmações de um filósofo contradigam o que pode ser experimentado ou as condições mesmas de sua elaboração de forma que sua existência desminta as proposições, estamos diante de uma paralaxe cognitiva. Nisto, Olavo sugere que reconstruamos, imaginativamente, todo o percurso feito pelo filósofo examinado para que identifiquemos o fundamento real de seu pensamento não apenas segundo sua forma [a coerência lógica], mas também a matéria [a experiência concreta] que lhe serve de substrato. Através desde experimento é possível que observemos em que ponto o eixo teórico desvencilhou-se do empírico e, assim, nos esquivemos da paralaxe cognitiva.
***
Apêndice I: Paralaxe Cognitiva ou Contradição Performativa?
Por conta da característica arquetípica da paralaxe cognitiva ser o apontamento de uma incongruência entre o empírico e o teórico, não é estranho que nos perguntemos se ela trata de algo semelhante à contradição performativa. Portanto, vejamos se ambas são a mesma coisa ou, caso difiram, se podem ser combinadas.[21]
A contradição performativa, nos moldes de Apel, refere-se à estrutura lógica que serve de condição de possibilidade para que o discurso contenha sentido;[22] nisto, por exemplo, o cético que argumenta que suas proposições nada afirmam se contradiz, pois fere as condições mesmas do ato discursivo enquanto apofântico ou catafático. Nos termos da teoria dos atos de fala de Austin e Searle, é como se o cético praticasse um ato ilocutório sem intencionalidade quando a condição de sua operação é intentar; nisto, a contradição performativa refere-se às condições do discurso e, caso ocorra, reduz as afirmações do enunciador ao non-sense. Não é coerente afirmar “eu não existo” ou “não há linguagem” quando, para que tais afirmações sejam proferidas, é necessário haver alguém que as expresse linguisticamente.[23] Portanto, partindo do esboçado, conferimos que a contradição performativa é um fenômeno mais restrito do que a paralaxe cognitiva: a primeira procura por contradições referentes às condições do discurso; a segunda procura por incongruências na construção de um corpo teórico de acordo com seu fundamento real, i.e., seu artífice e sua posição na realidade. Neste sentido, pode-se dizer que a contradição performativa refere-se a um fenômeno subordinado ao da paralaxe cognitiva.
Apêndice II: Paralaxe Cognitiva ou Eclipsamento da Realidade?
Ambos os fenômenos semelhantes e partilham a mesma raiz: erros residentes no processo da consciência[24] na medida em que a pessoa, de uma forma ou outra, reifica uma parte de si e causa uma cisão antropológica, digo, aliena a si mesma. Nisto, mediante um distanciamento reflexivo, ocorrem distorções no aparato perceptivo de forma que a realidade é substituída por outra coisa. Entretanto, enquanto o eclipsamento da realidade se refere a um fenômeno tacitamente consciente, a paralaxe cognitiva é eminentemente inconsciente. Por conseguinte, podemos especular que Olavo encontrou ou uma espécie ou fase do eclipsamento da realidade na medida em que a mentira consciente tornou-se inconsciente.
Bibliografia:
- Olavo de Carvalho – A Filosofia e seu Inverso
- Olavo de Carvalho – Maquiavel ou a Confusão Demoníaca
- Olavo de Carvalho – Visões de Descartes
- Olavo de Carvalho – Prestação de Contas [artigo]
- Olavo de Carvalho – Mais Paralaxe [artigo]
- Olavo de Carvalho – Introdução à Paralaxe Cognitiva [apostila]
- Olavo de Carvalho – Curso Online de Filosofia: Aula 569
- Olavo de Carvalho – Curso Online de Filosofia: Aula 570
- Olavo de Carvalho – Curso Online de Filosofia: Aula 571
- Olavo de Carvalho – Curso Online de Filosofia: Aula 573
- Olavo de Carvalho – Curso Online de Filosofia: Aula 575
- Arthur Schopenhauer – Como Vencer um Debate sem Precisar ter Razão em 39 Estratagemas: Introdução, Notas e Comentários de Olavo de Carvalho
- Douglas N. Dalton – Lógica Informal
- Lúcio Antônio Oliveira – Crença sem Corpo: Levando Olavo ao L´Abri
- Marina Velasco – O Debate Habermas versus Apel sobre a Ética do Discurso
- Nicola Abbagnano – Dicionário de Filosofia
- Peter Berger – Perspectivas Sociológicas
- Ronald Robson – Conhecimento por Presença
Em memória de Olavo de Carvalho
“[…] mas a malícia nada pode contra a sabedoria.”
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Notas:
[1] Olavo comentou, em mais de um momento, que escolheu dizer o que havia de ser dito em cursos ou vídeos por conta do tempo que demoraria para passar tudo para o papel. O resultado foram as mais de 500 aulas do Curso Online de Filosofia e uma pletora de cursos avulsos. A expressão “ser um falador antes de um escritor” ocorre, em tom de brincadeira, em uma de suas aulas.
[2] A obra ferreiriana é, sobretudo, um grande rascunho. Segundo o rigor dos padrões modernos elas são quase esboços esperando por um desenvolvimento crítico apropriado. Olavo de Carvalho tentou fornecer um modelo de edição crítica das obras de Mário Ferreira dos Santos editando, com vertiginosas notas de rodapé e reconstrução do texto, o Sabedoria das Leis Eternas. Entretanto, mesmo com as exortações do velho filósofo em prol de edições semelhantes, as coisas não ocorreram feito esperado. O ponto que nos interessa é que Olavo deixou teses mais ou menos no mesmo estado que as legadas por Mário Ferreira dos Santos.
[3] Olavo de Carvalho – Prestação de Contas , O Globo, 14 de Dezembro de 2002
[4] Berger, em seu Perspectivas Sociológicas, nos fornece três exemplos instrutivos: a) Em termos muito simples, “má-fé” consiste em simular que alguma coisa é necessária, quando na verdade é voluntária […] O garçom que tira seus turnos de trabalho num restaurante age de “má fé” na medida em que finge a si mesmo que seu papel de garçom constitui sua existência real, que, pelo menos durante as horas em que trabalha, ele é o garçom” [p.159], b) “O terrorista que mata e se desculpa, dizendo que não tinha alternativa porque o partido lhe ordenou que matasse, age de “má fé”, porque finge que sua existência está necessariamente ligada ao partido, quando de fato essa ligação é a consequência de sua própria opção” [p.160] e c) “O antissemitismo […] é a “má fé” por excelência porque identifica os homens, em sua totalidade humana, com seu caráter social. A própria natureza humana torna-se um artifício destituído de liberdade. Uma pessoa passa então a amar, odiar e matar dentro de um mundo mitológico em que todos os homens são suas designações sociais…” [p.160]
[5] Chamo de exemplo teatral a grande série de comparações que Olavo faz entre o modus operandi dos filósofos modernos e o papel exercido pelos atores enquanto encarnam um personagem. Ele ocorre em muitas aulas proferidas pelo filósofo; todavia, para que a consulta seja facilitada, citaremos como fonte a apostila Introdução à Paralaxe Cognitiva, sobretudo a partir da p.9.
[6] Olavo utiliza, não poucas vezes, o paradoxo do mentiroso enquanto analogia para a idéia de paralaxe cognitiva. No paradoxo do mentiroso, avaliamos o que o sentido da sentença afirma sobre si mesma; portanto, estamos no campo do discurso. Na paralaxe cognitiva, avaliamos o que o sentido das teses afirma sobre o mundo – que, por sua vez, inclui seu autor – de forma que, caso a tese esteja correta, segue que seu artífice está errado. Isso ficará claro no decorrer do ensaio.
[7] Não nos interessa, aqui, se as acusações olavianas aos autores citados procedem; isso é assunto para outro trabalho segundo o esquematismo proposto em Os Filósofos e a Leitura de seus Predecessores. O que nos compete neste ensaio é delimitar o fenômeno que dá corpo ao argumento.
[8] Olavo de Carvalho – Prestação de Contas , O Globo, 14 de Dezembro de 2002
[9] Maquiavel ou a Confusão Demoníaca p.51
[10] A impraticabilidade das teses paraláticas foi bem descrita por Lúcio Antônio Oliveira: “O teste da prática está vinculado ao teste teórico da razão e da experiência justamente no sentido da paralaxe cognitiva. Ou seja, um argumento pode, portanto, adequadamente ser observado cm termos de suas explicações para a doutrina e para a prática. Se a doutrina como um todo não puder ser praticada, há um problema a ser encarado.” Ver Crença sem Corpo: Levando Olavo ao L´Abri, cap. III
[11] Maquiavel ou a Confusão Demoníaca p.51
[12] Conforme visto em Curso Online de Filosofia: Aula 569: “Isso significa a diferença de posição entre dois eixos. A paralaxe cognitiva é o deslocamento entre o eixo da experiência real de um homem e o eixo da construção teórica que ele empreende enquanto pensador ou cientista. Pela premissa fundamental esses eixos deveriam coincidir. Se não coincidem, algo está errado.” Negritos por minha conta.
[13] Os argumentum ad hominem válidos ou não-falaciosos ocorrem quando os argumentos propostos por um enunciador contradizem as posições que defende. Olavo de Carvalho estava ciente disto, como podemos verificar em seus comentários ao Como Vencer um Debate sem Precisar ter Razão de Schopenhauer: “[…] não é sensato averiguar a veracidade objetiva antes de averiguar a subjetiva. Se um argumento concorda com os fatos, mas não concorda com o restante da doutrina que lhe serve de fundo, das duas uma: ou sua coincidência com os fatos é fortuita e o interlocutor nem percebeu que os fatos desmentem sua doutrina em geral na mesma medida em que confirmam uma sua tese em particular (a qual, se aprovada, poderia posar falsamente como argumento em favor da doutrina inteira); ou ele se equivoca na expressão, pretendendo dizer uma falsidade e dizendo por engano uma verdade.” Comentários Suplementares e Conclusões in Como Vencer um Debate sem Precisar ter Razão p.216-217. Para mais informações sobre argumentos ad hominem válidos e inválidos, ver Douglas N. Dalton, Lógica Informal, p.187 e seguintes.
[14] Este problema, que Voegelin chama de reificação ou hipóstase, foi notado também por Ronald Robson ao comentar o tema da paralaxe cognitiva em seu Conhecimento por Presença p.473: […] “o eu pensante se projeta para além do âmbito que lhe é próprio, o raciocínio lógico-discursivo, e pretende se afirmar contra todos os demais dados presentes à consciência e que são a própria condição de sua atividade”. Podemos encontrar uma boa descrição do fenômeno através do exemplo cartesiano exposto em A Filosofia e seu Inverso p.244: “O eu cartesiano não pode narrar sua história porque é apenas uma forma abstrata isolada no espaço, amputada da experiência temporal. Se o filósofo, no entanto, o apresenta sob forma narrativa, é porque, literalmente, não percebe o que está fazendo.”
[15] A fase de assunção da persona é semelhante à contração descrita por Voegelin; do mesmo modo, o alienamento do real assemelha-se ao distanciamento reflexivo.
[16] Visões de Descartes p.129
[17] Caso o filosofema cujo emissor pretende versar sobre a realidade contenha afirmações cuja condição seja de que aquele que afirma esteja de alguma forma alheio ao que diz, então temos uma forma contradição: assim, por exemplo, fulano fala que “todos os homens são de tal forma, mas ele é diferente.”
[18] “Então, isso quer dizer que quando o empirista afirma que empirismo é o fundamento do conhecimento, ele age feito maluco. Ele pode dizer isso, mas não pode praticar e, de fato, não vai praticar. Ele pode se dizer empirista, mas continuará fazendo uso de um monte de conhecimentos que o empirismo não pode verificar; nisto, enquanto convencido de que o empirismo está correto, o sujeito está na paralaxe. Ele está fazendo uma coisa, mas dizendo que faz outra. Mas ele não repara no que realmente está fazendo; ele só repara naquilo que atrai a sua atenção.” Transcrição levemente corrigida.
[19] O termo “empirismo” é utilizado de forma lata; significa o posicionamento existencial que toma a experiência enquanto dado fornecido pelos sentidos. Nisto, todo o conhecimento humano deve ser reportado à experiência enquanto referente a objetos perceptíveis sensivelmente. Posto isto, o conhecimento humano é essencialmente submisso ao devir e refere-se aos particulares. Essa característica impede o empirismo de postular verdades universalmente válidas; entretanto, a afirmação de que tal forma de experiência é o fundamento do conhecimento humano é carrega a pretensão de validez universal. Nisto, o problema do empirismo é, essencialmente, o mesmo do verificacionismo do século XX: seu fundamento é meramente dogmático. Para mais informações sobre o empirismo, consultar o verbete no Dicionário de Filosofia de Nicola Abbagnano.
[20] Curso Online de Filosofia: Aula 571. Transcrição levemente corrigida. A inconsciência que caracteriza a paralaxe cognitiva é também sua diferença específica relativa ao eclipsamento da realidade voegeliano que, por sua vez, caracteriza o problema como forma de mentira pelo menos tacitamente consciente.
[21] A distinção já foi feita por Filipe G. Martins. Limito meus comentários a complementar a explicação citada.
[22] Ver Marina Velasco – O Debate Habermas versus Apel sobre a Ética do Discurso, in ethic@, Florianópolis, v. 19, n. 3, 678-697. Dez. 2020
[23] Nos termos de Filipe G. Martins, a contradição performativa encerra-se numa contradição entre “o conteúdo proposicional do discurso (o “que” é dito) e o ato ilocucionário (o “como” é dito).
[24] “E é claro que [há] um terceiro ângulo possível […] o fenômeno da paralaxe como dado da […] estrutura da consciência, estrutura da consciência paralática, por assim dizer.” Curso Online de Filosofia: Aula 570. Transcrição levemente corrigida.
***
Foto de Capa por Mauro Ventura. O trabalho dele pode ser conferido aqui:
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