Os ímpios, porém, são como um mar agitado, que não pode acalmar, cujas ondas revolvem lodo e lama. Não há paz para os ímpios, diz o meu Deus.
Is. 57: 20-21
Um dos grandes temas voegelianos se refere à distinção entre os simbolismos primário, secundário e terciário.[1]Todavia, e nisto pouco importa o autor sob exame, o símbolo é sempre o representante de algo diverso, o que implica a distinção entre este e o simbolizado. Eric Voegelin, seguindo os passos de Aristóteles e integrando-o em sua filosofia, tratará os símbolos enquanto expressões da dimensão estrutural lingüística da consciência – e, neste sentido, o homem será um animal simbólico. Entretanto, dada a polissignificabilidade[2] intrínseca e característica a quaisquer símbolos, é possível que sua ligação com o simbolizado seja distorcida.[3] O Eclipsamento da Realidade voegeliano consiste no termo técnico encontrado para descrever a gênese e a operação do desligamento entre o real e o expresso através da distorção da relação entre o símbolo e o simbolizado. Reflitamos sobre como isso acontece.
Em seu The Eclipse of Reality,[4] Voegelin propõe que iniciemos a reflexão atentando ao ato consciente que origina o fenômeno que visamos descrever: o ato de contração; mas o que é isso? Para que entendamos corretamente o que é a contração, urge que atentemos a alguns elementos da filosofia da consciência voegeliana. Durante o ato de focarmos nosso interior, tentando perfilar e identificar o que somos, agimos de forma que, ainda que não nos dividamos, tratemo-nos enquanto um objeto posto para um sujeito que conhece; este processo de divisão é chamado, por Voegelin, de distanciamento reflexivo.[5] Contudo, ainda que seja uma função natural da consciência, tal qual ocorre com qualquer ferramenta, seu uso pode ser corrompido; portanto, o distanciamento reflexivo pode degringolar em, pelo menos, dois erros: a) a reificação das posições funcionais[6][sujeito e objeto] tomadas durante sua operação e b) a identificação do homem com alguma delas – sendo que ambas configuram, neste sentido, uma distorção da estrutura mesma da consciência. Operado o primeiro erro, a contração consistirá no segundo enquanto identificação de si com a função consciente que retém sua identidade apenas enquanto intenta para o interior do homem posto enquanto objeto.
No entanto, identificar-se com uma função implica a percepção de si enquanto permanente apenas no presente de sua própria operação e, então, essa certeza residente apenas na fatuidade do devir acarreta a aparência de alienação do mundo de forma que o homem, agora contraído, se sinta sem fundamento, lançado num plano em que “Deus está morto, o passado está morto e o presente consiste na fuga da facticidade não-essencial do eu para que seja o que não-é”.[7] E então, na medida em que a parte reificada de sua essência suprime a que foi virtualizada, o homem disforme jaz aprisionado em si mesmo, pois, uma vez univocado com uma de suas funções, não conseguirá compreender-se senão mediante a lente de seu componente sob hipóstase. Não obstante, da mesma maneira que o mundo não modifica suas estruturas por ter sido imaginado de outro modo, o sujeito contraído, de certa forma mutilado, não deixa de ser homem; portanto, desenvolver-se-á uma fricção entre a pessoa real e sua contração, entre a realidade disposta e a imaginada, i.e., entre a Realidade Primária e a Realidade Secundária.
Entretanto, ainda que num primeiro momento possamos ver a contração enquanto erro filosófico ou acidente de percurso, devemos ter em conta que nem sempre é assim. Do mesmo modo que a incerteza inerente à condição humana levou os antigos gnósticos a negarem o mundo e buscarem uma forma de conhecimento que os carregaria ao eterno incognoscível, também arrasta o erudito à confecção de sistemas que o livrem do desespero de estar-aí num plano no qual se sente alienado. Neste sentido, o homem contraído negará voluntariamente a realidade que detesta em prol de uma que o proteja do abismo; nisto, temos uma segunda forma de prisão: a primeira, enquanto oculta o homem de si mesmo, é um antolho; esta, enquanto protege o homem de se machucar, é uma camisa de força.[8] Para que entendamos como tal processo se dá, é necessário que esclareçamos, em linhas gerais, o que o filósofo quer dizer com o termo realidade.
Voegelin inicia o perfilamento do significado do termo realidade apontando que, não importa o quão múltiplo possa ser seu sentido, todas as nuances se cruzam de forma que sua manifestação no sensus communis[9]opõe-se à projeção psicológica. Não obstante, isto não basta: portanto, voltemos à filosofia da consciência. Estar consciente [de algo] consiste num ato estruturado pela tensão entre dois polos: o cognoscente e o cognoscível. A partir destes é possível tatear a realidade enquanto presença inteligível[10] na sucessão dos atos reflexivos característicos do processo da consciência. Nesta estrutura, são possíveis três atos: o atentar ao pólo cognoscente, ao pólo cognoscível e à tensão entre ambos. Caso voltemos nossa atenção ao pólo cognoscível, a realidade é manifesta na qualidade de primum notum para a estrutura intencional na consciência e, neste sentido, estar cônscio implica a presença do real na e para o complexo da consciência. Por isto, Voegelin afirma que o intentado é tanto real quanto parte da estrutura intencional da consciência.[11] Por outro lado, caso voltemos nossa atenção ao pólo cognoscente, à pessoa cônscia, obteremos todo um complexo de símbolos referentes à presença inteligível posta em posição de doação.[12] Por fim, caso tomemos o complexo processual que contém os dois pólos e sua tensão, teremos não apenas a estrutura que possibilita o reconhecimento de algo enquanto real, mas um evento presente na realidade mesma. É possível notar, ao acompanharmos o processo reflexivo, que a realidade enquanto presença informa o cognoscente que participa do mesmo plano que intenta; nisto, em termos voegelianos, “a consciência da realidade torna-se um processo incluso no real”.[13]
Segundo Voegelin, a paralaxe se torna perceptível apenas mediante o terceiro ato reflexivo por conta de tal distúrbio ocorrer na tensão entre os pólos cognoscente e cognoscível. Novamente, segundo o filósofo, durante a atitude natural,[14] a experiência decorre de modo que nos referimos a coisas mediante símbolos que, cremos, refletem corretamente o que visamos expressar e, ainda que este tenda a “sair um pouco da curva”, o mesmo ocorre com o filósofo; de qualquer forma, mesmo perante a atitude filosófica, este deverá pressupor certa presença inteligível que Voegelin denomina, numa tentativa de reabilitação do termo aletheia, de veracidade da realidade [truth of reality]. Nisto, o problema se inicia quando o sentido perde a referência, digo, quando o aparato simbólico do pólo cognoscente desloca-se para longe do pólo cognoscível. Num primeiro momento, isto pode ser descrito como mero erro de percepção; todavia, caso o deslocamento seja “corrigido”, não mediante o ajuste da tensão entre o símbolo e o simbolizado, mas pela inserção de elementos imaginativos na cisão entre os pólos característicos da estrutura da consciência, então ocorrerá uma distorção na forma de entender o mundo. Porém, ainda que tenha havido uma distorção na apreensão do real devido à inserção sub-reptícia de elementos estranhos à operação normal consciência, sua estrutura não sofre alterações; portanto, tal qual um óculos com as lentes trocadas, a estrutura perceptiva permanece a mesma, ainda que o contato com a realidade tenha sido perdido.
Não tratamos, aqui, de erros de percepção análogos à incapacidade de ver cores ou escutar certas notas musicais, mas a uma distorção ocorrida na capacidade de entender o real; o exemplo correto seria, antes, o do sujeito que ataca moinhos de vento: ele vê a realidade, mas o elemento imaginativo faz com que ele entenda outra coisa. Assim, o produto da distorção eclipsa o real e o substitui por uma Realidade Secundária.
Não obstante, tendo em conta que o sujeito adoentado pelo eclipsamento percebe a realidade, mas não a entende, emerge uma fricção, na consciência, entre o sentido e a referência; nisto, afirma Voegelin: “a realidade eclipsada, mas não abolida exercerá certa pressão até que reemerja na consciência.”[15] Neste estágio, o homem precisa escolher uma entre duas vias de resolução: a) investigar a disparidade presente entre o cognoscente e o cognoscível e corrigir seu nexus b) ou suprimi-la através da confecção de um novo complexo de símbolos. No primeiro caso, a pessoa talvez precise abandonar uma parte de suas crenças; no segundo há para um Eclipsamento da Realidade. O ponto de interesse voegeliano consiste na segunda forma de eclipsamento na medida em que esta é a doença do arquiteto de sistemas, daquele que, contemplando a fricção advinda de uma distorção dramática, em vez de, num heroísmo husserliano, perseguir as coisas mesmas, escolhe racionalizar a própria deformidade.
Voegelin elenca três formas sob as quais o eclipsamento pode ser identificado: a mera mentira, o arranjo contextual e o sistema – sendo as duas últimas confeccionadas para encobrir a primeira. Segundo nosso propósito, por conta de sua decorrência ao longo da história, cumpre que sublinhemos apenas as duas últimas: a primeira sob a forma de perspectivismo[16] e a segunda de dogmatismo. Por conta disto, ao examinarmos teses filosóficas, urge que reconstruamos, numa espécie de engenharia reversa, seu percurso até que atinjamos suas premissas ocultas e, assim, seu fundamento; caso este não seja verificável in re, digo, careça de referente real ou pareça demasiado parcial, então deverá ser discutido criticamente. Se a discussão não for possível senão mediante o aparato disponibilizado pelo sistema que fundamenta, numa espécie de circularidade, então não há necessidade alguma de aceitar algo tão semelhante a uma “venda casada”. Neste ponto, o filósofo comenta que, por conta de para além do ato haver sempre o ator, alguns pensadores recusarão, através de subterfúgios, negar ou esquivar-se de perguntas nevrálgicas sobre os fundamentos de seu sistema, algo que comumente se dá por tal questionamento operar na fricção subjacente às teses e, caso a discrepância entre o sistema [realidade secundária] e o real se torne insustentável, o eclipse cessará e o proponente deverá lidar com a destruição de seu cosmion. Por conta disto, o adoentado não pode permitir que seu construto esvaneça, ainda que sofra pela fricção causada por sua contração rasgá-lo ao meio na medida em que o real pulsante em seu subconsciente o recorde, constantemente, de seu pecado original. Entretanto, há um preço: “o homem disforme, plenamente consciente de sua perversão, experimentará a realidade como um inferno…”[17]
Pode-se dizer que, uma vez contraída e destituída do contato consigo, não tardará para que a pessoa perca o contato com a realidade. A tensão que a liga ao real, obstruída por componente advindos da imaginação, servirá antes para criar um “espaço seguro” ou ilusão de uma realidade controlável do que para conectá-lo ao que ocorre; no entanto, a fricção decorrente da discrepância entre as realidades primária e secundária arrastará o alienado ao desespero caso não recorra a um paliativo, a saber, a racionalização de seu pecado num sistema que o justifique. Todavia, a sistematização do sentimento existencial do homem contraído, agora transmutada num posicionamento existencial, na medida em que justifica uma série de aspectos da condição humana por derivar da reificação de seus componentes, possui um tremendo poder de atração; nisto, o construto confeccionado para blindar o homem de si mesmo transformar-se em força social e, por conseguinte, em componente da política: eis uma das possíveis gêneses do pensamento utópico. Neste estágio, o eclipsamento da realidade enquanto distúrbio se torna cada vez mais inconsciente e, a menos que seja restrito na raiz através da crítica às teses que o possibilitam e tornam a perversão normal, ninguém mais verá o sol senão sob a sombra do objeto posto à sua frente. Segundo Voegelin, podemos verificar o fenômeno com certa facilidade ao atentarmos que ele sempre gira em torno do simbolismo egofânico – cujo maior exemplo, sempre citado pelo filósofo, é o Moi sartreano.
“[…] pois, dizendo ser sábios, tornaram-se estultos e mudaram a glória de Deus incorruptível na figura de um simulacro de homem corruptível…”
Rm.1 22-23
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Notas:
[1] Ver A Filosofia Civil de Eric Voegelin p.145 e seguintes. Grossíssimo modo, os primeiros referem-se à realidade irrompida e os segundos à realidade tratada noeticamente; o mito corresponde à primeira categoria; a filosofia, à segunda.
[2] A polissignificabilidade consiste na característica do símbolo de referir-se a mais de um simbolizado a depender do contexto de sua utilização. Assim, segundo o exemplo de Mário Ferreira dos Santos, a cruz pode simbolizar os pontos cardeais, as estações do ano, as idades do homem, o Cristo, e por aí vai. Ver Tratado de Simbólica p.15-16.
[3] Por conta disto, quando a ligação de um símbolo com seu simbolizado jaz enfraquecida, há a tendência de que as características analogadas neste sejam tomadas feito analogon de outro simbolizado. Nisto, por exemplo, as formas robustas das estátuas das antigas deusas da fertilidade, uma vez confeccionadas para que víssemos em suas formas sinais do início da vida através da fartura, são distorcidas, comumente por via ideológica, e passam a ser tratadas como se fossem retratos de mera atração física ou preferência sexual. Outro exemplo comum é o trabalho de distorção dos símbolos de amizade bíblicos, feito o da amizade do Rei Davi e Jônatas, para que retrate outro tipo de relação. Nisto, há de se concluir que boa parte da distorção dos símbolos ocorre sob a égide de uma projeção ou eisegese. Este fenômeno possui relações estreitíssimas para com o eclipsamento da realidade.
[4] Disponível em Maurice Natanson (Org.) – Phenomenology and Social Reality: Essays in Memory of Alfred Schutz p. 185-194
[5] Reflective Distance. Ver The Collected Works of Eric Voegelin Vol. 33 p.364
[6] Grosso modo, podemos explicar da seguinte forma: posto o princípio de que não podemos derivar distinções reais de distinções modais, tomarmos o sujeito como se fosse algo real quando, na verdade, consiste apenas numa posição funcional da consciência torna toda a especulação enviesada. Em termos voegelianos, “Por princípio, os polos de uma tensão que se experimenta não devem ser deformados em entidades existentes separadamente da própria tensão experimentada”. Ordem e História Vol. 5 p.43. Utilizo a distinção modal segundo a explicação de Mário Ferreira dos Santos no artigo 4 de Ontologia e Cosmologia.
[7] The Eclipse of Reality p.185
[8] “[…] nor the relations between man and his surrounding reality can be abolished; frictions between the shrunken self and reality are bound to develop. The man who suffers from the disease of contraction, however, is not inclined to leave the prison of his selfhood, in order to remove the frictions. He rather will put his imagination to further work and surround the imaginary self with an imaginary reality apt to confirm the self in its pretense of reality; he will create a Second Reality, as the phenomenon is called, in order to screen the First Reality of common experience from his view.” The Eclipse of Reality p.185
[9] Utilizo, aqui no sentido tomista, enquanto primeiro dos sentidos internos cuja função consiste na unificação dos sentidos externos. Ver Questões Disputadas sobre a Alma p.99 e, em especial, a nota 94.
[10] O termo “presença inteligível” não existe em Voegelin; utilizo-o como apoio para clarear o que o filósofo quis dizer com realidade. Semelhanças com a presença utilizada por Olavo de Carvalho podem não ser meras coincidências pois não se sabe até que ponto o filósofo brasileiro foi influenciado pelo alemão.
[11] Paradoxo da Consciência. Grosso modo, a consciência é um ente real que intenta a realidade. Nisto, é como se a realidade intentasse a si mesma.
[12] Ver Idéias para uma Fenomenologia Pura e uma Filosofia Fenomenológica p.101-102.
[13] The Eclipse of Reality, in Phenomenology and Social Reality: Essays in Memory of Alfred Schutz p. 187.
[14] Ver Idéias para uma Fenomenologia Pura e uma Filosofia Fenomenológica p.73
[15] “For reality eclipsed but not abolished will exert a pressure to emerge into consciousness, and thereby to achieve full status of reality, that must be countered by acts of suppression – a reality to be eclipsed can be relegated to the limbo of oblivion that we call the unconscious; or it can remain semi-conscious as a disturbing background to reality imagined; or it can be consciously denied the status of reality, as in the dogma of no-God; or it can induce a state of revolt, because it cannot be denied but is sensed to be hostile, as in certain Gnostic speculations.” The Eclipse of Reality p. 188.
[16] Podemos identificar o eclipsamento da realidade presente no posicionamento perspectivista na medida em que este, ao tomar o homem como “centro” cuja vontade determinará a perspectiva adotada, projeta uma segunda realidade.
[17] The Eclipse of Reality p.188
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