Mas, se é desejável que todos os homens cultos saibam algo sobre a história do pensamento filosófico, tanto quanto permitirem seus afazeres, seu horizonte mental e seu desejo de especialização, quão mais não será desejável para todo devotado estudante de filosofia.
Tal qual o filho que, já crescido, nota que seu comportamento se assemelha ao de seus pais, o estudante de filosofia que se der ao trabalho de adquirir uma visão global da história de sua disciplina favorita perceberá não apenas que seus mestres também erram como, por vezes, tropeçam nos mesmos solavancos que seus discípulos, sendo que o mais célebre destes refere-se à interpretação dos filósofos do passado. Como urge que o seja, o estudo da filosofia exige a aquisição do que, segundo terminologia olaviana, denomina-se cultura filosófica: um conjunto de conhecimentos composto pela a) bibliografia filosófica, b) o domínio da análise de textos e c) o conhecimento da história da filosofia em geral. Podemos dizer, de forma quiçá grosseira, que o primeiro ponto refere-se à fonte primária – o texto do autor em questão, por exemplo, a Física de Aristóteles –; o segundo à hermenêutica da obra sob exame e o terceiro às fontes secundárias – comentários diversos contidos [ou não] em volumes de história da filosofia. Todavia, importa reter que obter noções gerais acerca da história da filosofia e dos autores que a compõe através do exame das fontes primárias e secundárias faz parte do jeito normal de estudar, como podemos verificar no primeiro a deixar registrado, de forma mais ou menos sistemática, o método de recolha e síntese das teses dos antigos a fim de obter o status quaestionis antes de iniciar a investigação filosófica:
[…] certos princípios e causas, de modo que representará alguma ajuda para nossa presente investigação estudarmos seu ensinamento…
Eis, entretanto, algo claro para o estudante acostumado ao rigor dos melhores comentadores: os filósofos em geral raramente possuem para com as teses dos outros o mesmo rigor que reservam às suas e, tomando novamente o exemplo aristotélico, é um fato conhecido que o estagirita errou ao interpretar as teses referentes ao hyperouranion platônico – o que fica comicamente explícito caso notemos que boa parte de suas objeções parecem ter sido antecipadas pelo próprio Platão na discussão descrita no Parmênides. A pletora de exemplos é alucinante: a leitura heterodoxa de Hegel por parte de Marx, as confusões de Kant por parte de Schopenhauer, Fichte e tantos outros, a caricatura de Aristóteles efetuada por empiristas conforme Francis Bacon e, assim, poderíamos citar ad nauseam; porém, o que nos interessa aqui não é exigir que os filósofos sejam leitores perfeitos, mas refletir sobre até que ponto a interpretação de um filósofo pelo outro ao longo da história influi em suas teses, digo, até que ponto o pensamento de um filósofo pode ser contaminado por leituras abstrusas? É possível deixar de lado o que um filósofo pensa de outro sem prejuízo para o entendimento de sua obra ou, caso haja erros graves, uma leitura heterodoxa pode condenar todo um pensamento?
Para responder tais questões, é preciso que consideremos a importância da cultura filosófica. Enquanto componente do estudo filosófico normal, digo, do conjunto de conhecimentos necessários ao estudante de filosofia [que servem de estofo no qual poderá, um dia, brotar um pensamento próprio], deficiências referentes à cultura filosófica impactam diretamente no modo como o estudante ou o filósofo tratarão as questões que lhes forem postas. Considerando, por exemplo, que o status quaestionis é composto, grosso modo, da história e da série de raciocínios que levaram a questão ao seu estado atual, deficiências em sua confecção podem acarretar defeitos na montagem do problema e, por conseguinte, em sua suposta solução. Por conseguinte, segundo os propósitos desta ensaio, postularemos que a avaliação do pensamento de um filósofo do ângulo do impacto da interpretação de outros no todo de sua obra é um trabalho, quiçá, de contenção de danos na medida em que, devido ao procedimento dos estudos filosóficos, é impossível que erros referentes à cultura filosófica sejam inócuos por conta dela ser um componente estrutural da técnica filosófica.[1]
Da mesma forma que uma peça defeituosa não acarreta a quebra de um motor, uma ou outra tese abstrusa não contaminará todo um pensamento; entretanto, o propulsor explodirá caso haja uma trinca em seu bloco. Portanto, é necessário que distingamos o lugar ocupado, segundo graus de importância, pela cultura filosófica no conjunto do pensamento dos autores sob exame. Para que não nos estendamos para além do necessário, utilizarei o termo acidental para apontar o caso em que a cultura filosófica não afeta o núcleo do pensamento do autor e essencial para quando for de tal importância que suas deficiências possam causar a implosão do conjunto da obra e transformá-la num restolho crítico, digo, espécie de escombro desde o qual tentamos recuperar tudo o que pudermos de real após o esvair de qualquer esperança de salvar o que havia de central no pensamento sob exame, algo análogo a coletar as peças de um carro sucateado.
Considerando o aspecto acidental, não parece correto descartar o pensamento de um autor focado, por exemplo, em filosofia da linguagem, por ele ter tido problemas ao lidar com a história da filosofia em geral – e é por isso que continuamos estudando Russell apesar do terrível História da Filosofia Ocidental – da mesma forma que não deixamos de comer um bolo cujo confeiteiro não consegue, de forma alguma, fazer outro doce; não obstante, tendo em vista a antedita estruturalidade da cultura filosófica enquanto componente da técnica [filosófica], é possível duvidar da compreensão do filósofo acerca do problema posto sob escrutínio na medida em que suas respostas podem sofrer certa contaminação advinda de perguntas viciadas de antemão. Eis o que ocorre, por exemplo, quando um autor que examine tal ou qual tema toma nota, de forma simplista, das contribuições de seus antecessores: ainda que possa fornecer contribuições valorosas [por conta da filosofia ser um estudo referente antes à realidade do que a textos], a lacuna presente na montagem do problema, advinda de uma cultura filosófica deficiente, viciará indelevelmente suas conclusões – que posteriormente serão vítimas de ataques por derivarem, num grau ou noutro, de uma forma de ignoratio elenchi. Não insinuo que um autor deva, numa espécie de memória enciclopédica, decorar os raciocínios de todos os seus antecessores; todavia, é sabido que aquele que não conhece os erros do passado decerto os repetirá. Problemas deste jaez são, infelizmente, comuns; como poderíamos considerar isentas de lacunas teses sobre a natureza humana erigidas por pensadores que trataram da questão considerando apenas o que ocorreu após Hobbes ou, ao voltarem aos olhos para tópicos de ética, reduzirem toda a história da disciplina às categorias de altruísmo e egoísmo?
Ao considerarmos o aspecto essencial da obra de um autor, para que verifiquemos em que medida suas teses dependem estruturalmente da interpretação do pensamento de outro, urge que atentemos em que medida suas afirmações dependem da a) veracidade ou da b) crítica das teses do interpretado. Quanto às afirmações que dependam da veracidade das de outro, da impugnação da segunda segue a supressão das primeiras. Assim, por exemplo, o autor que erija teses estruturalmente dependentes da distinção entre res extensa e res cogitans terá suas afirmações impugnadas caso tal fundamento seja refutado. Quanto às afirmações que dependam da crítica das de outro, do desmonte da depuração segue a supressão das teses. Assim, por exemplo, o autor que enraíze seu pensamento na crítica do pensamento de Platão enquanto forma de niilismo terá suas afirmações impugnadas caso se verifique que tal ajuizamento não procede.
Na medida em que o processo de estudo da filosofia exige a absorção da tradição precedente, a ocorrência do primeiro caso é normal, pois, durante os estudos, é natural que passemos a crer de forma quase acrítica em algumas afirmações; portanto, não denuncia deficiências capitais referentes à cultura filosófica. Por outro lado, a segunda situação exige atenção na medida em que a crítica filosófica exige certa pormenorização muito complicada de se confeccionar e, assim, lacunas são quase inevitáveis. Uma das formas de contornar este problema consiste em considerar a estrutura genérica das questões de forma que, reduzindo-as à sua forma lógica, não seja necessária a consulta de uma pletora de autores; assim, por exemplo, exclusa a forma lógica do nominalismo, jaz desnecessária a leitura de todos os nominalistas. Por outro lado, tal redução possui limitações por algumas teses possuírem tantas variantes que sua apreciação exige a consulta pormenorizada de autores específicos e, portanto, uma sólida cultura filosófica. Portanto, deficiências neste ponto acarretarão a mácula da crítica e, caso esta sirva de fundamento para uma série de conclusões, sua impugnação produzirá a implosão as teses do autor de forma que sejam reduzidas a um restolho crítico. Situações deste jaez assemelham-se à de hipóteses científicas dependentes de um componente hipotético cuja existência é, em algum momento, dada como inexistente, tal qual ocorreu com conjecturas referentes ao éter após o experimento de Michelson-Morley.
Ao considerarmos o aspecto acidental da obra de um autor, é preciso verificar em que medida deve ser feita a contenção dos danos advindos da leitura abstrusa de outros filósofos. Posta a incapacidade humana de ler e conhecer tudo, é natural que seja impossível possuir uma cultura filosófica perfeita; portanto, diferente dos comentadores, que freqüentemente se dedicam à exposição minuciosa de alguns autores, os filósofos não raro cometerão erros interpretativos ao examinarem seus pares. Entretanto, ainda que falhas acidentais não causem a ruína de toda uma obra, elas possuem certa propriedade corrosiva que impõe uma série de restrições às teses de um filósofo; por conseguinte, devemos avaliar a) qual aspecto do pensamento do autor em questão padece de tais falhas e b) em que medida é possível ser indulgente. Assim, por exemplo, caso um autor afilie suas teses a uma interpretação abstrusa de Pitágoras, é possível ser indulgente com seus erros desde que eles não contaminem as verdades que expõe.[2] Este é, por exemplo, o caso de Aristóteles: ainda que saibamos que o estagirita tropeçou ao interpretar as teses de seu mestre, as verdades que expôs suprimem as lacunas presentes em seu pensamento de forma tão impressionante que, mais tarde, a filosofia aristotélica e a platônica foram tidas como lados da mesma moeda. Contudo, lacunas na cultura filosófica cobram seu preço: no caso de Kant, o soldo consiste na restrição de seu pensamento à problemática moderna por conta de seu conhecimento referente à filosofia antiga ser insuficiente, de forma que suas teses referirem-se especificamente a temas presentes em seu tempo.[3]
Após a tais considerações, torna-se possível, talvez, esboçar um critério de indulgência para o caso de interpretações heterodoxas que não prejudiquem a veracidade da obra: dada a acidentalidade da interpretação, por um filósofo, de seus antecessores, desde que seu pensamento seja autônomo o suficiente para que as verdades que enuncia não sejam eclipsadas por sua opinião acerca de outros, não faz sentido julgá-lo com o rigor devido àqueles que cometeram interpretações heterodoxas de teor essencial, a saber, aquelas cujos erros podem corroer toda uma obra. Entretanto, de que forma um conjunto de teses poderia ser autônomo a ponto de suplantar a margem de erro presente em toda cultura filosófica? E, no caso de um pensamento implodido, como poderia haver valor no restolho crítico?
O valor presente no conjunto de teses que compõe o pensamento de um autor – ou no que sobrar dele após sua implosão – reside na forma como interpretou e propôs soluções para problemas reais. Eric Voegelin comenta que se deve filosofar para que se resgate a realidade, pois ela é o material de trabalho do filósofo, e sem ela, nada se faz; grosso modo, conforme explica, a realidade, intentada e interpretada, é um componente da estrutura da consciência e, nesse sentido, toda filosofia é uma tentativa de expressar a verdade conforme apreendida na eterna presença do real. Se a filosofia fosse uma prática cujo objeto consistisse apenas em textos, ancilla philologiae, não encontraríamos valor algum em teses refutadas. Mas não é assim: textos filosóficos, aulas e quaisquer outros meios de instrução são sempre ferramentas para que clarifiquemos a realidade e, portanto, elementos essenciais do estudo; todavia, conforme insistido Platão,[4] o texto pode criar doxosophos, mas não philosophos. Sendo assim, devemos atentar antes para o que os filósofos disseram de verdadeiro do que ao que disseram uns dos outros; afinal, é mais fácil descrever o que vimos do que o que outros viram.
Há uma grande diferença entre ler os filósofos para conhecer suas doutrinas enquanto tais e lê-los em busca da verdade. Uma doutrina cristalizada em textos é uma verdade apenas histórica, ou mais propriamente filológica, para não dizer editorial. Mas nenhum filósofo criou suas doutrinas só para que as conhecêssemos, e sim para que através delas buscássemos a verdade; verdade que elas, na melhor das hipóteses, só conseguem apreender parcialmente ou, na maior parte dos casos, insinuar simbolicamente…
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Notas:
[1] Ver A Filosofia e seu Inverso p.132-133. Neste sentido, lacunas na cultura filosófica podem ser fatais para as afirmações dos filósofos.
[2] Este é o caso de Mário Ferreira dos Santos na medida em que atribui a Pitágoras, ou ao menos a sua escola, teses filosóficas cuja condição de possibilidade surge apenas em Platão (!) e, assim, torna-se impossível tê-lo na qualidade de comentador. Por outro lado, ainda que ignoremos todos os seus comentários a Pitágoras e consideremos apenas o núcleo da filosofia ferreiriana, a noção de aliquid, o edifício continua de pé. Por exemplo, ainda que o autor atribua a Pitágoras uma série de teses, como o simbolismo matemático – e nisto acerta –, a estrutura da via symbolica não depende da precisão histórica do Pitágoras ferreiriano. O mesmo vale para comentários feitos a outros filósofos tais quais os presentes, por exemplo, em Teoria do Conhecimento.
[3] Assim, sua crítica da metafísica, na medida em que se refere à espécie cultivada pelos racionalistas, a saber, aqueles filósofos que creram na metafísica enquanto sistema de princípios puramente a priori, jaz inócua caso consideremos um edifício metafísico bruscamente diferente como o foi, por exemplo, o escolástico.
[4] Fedro 275c-e. Para Platão, um ensino focado no acúmulo das informações presentes nas letras não pode formar filósofos por estes serem produtos de uma educação específica que, ainda assim, não garante seu despontar. Outro ponto defendido por Platão consiste no apontar que as teses mais importantes dos filósofos sequer são escritas.
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