[…] uestem quam meis texueram manibus, disciderunt abreptisque ab ea panniculis totam me sibi cessisse credentes abiere. In quibus quoniam quaedam nostri habitus uestigia uidebantur, meos esse familiares inprudentia rata nonnullos eorum profanae multitudinis errore peruertit.
Boethius – De Consolatio Philosophiae
Ao iniciarmos os estudos filosóficos é comum que, em busca de uma exposição sintética da filosofia, recorramos a manuais cujos autores se esforçaram para apresentar a disciplina da forma mais palatável possível. Nisto, a forma mais corriqueira de ensinar filosofia tem sido através da divisão temático-escolar – cuja primeira parte refere-se às disciplinas filosóficas (metafísica, lógica, epistemologia, etc.) e a segunda às diversas escolas de pensamento (realismo, ceticismo, etc.). Assim, por exemplo, ao abrirmos um manual qualquer e encontrarmos o tema epistemologia, somos apresentados, quase que imediatamente após uma – realmente – breve contextualização histórica, às escolas de pensamento residentes em seu escopo, feito o racionalismo e o empirismo.[1] Entretanto, seria esta a forma correta de pensar a filosofia? Através de disciplinas contendo escolas que, por sua vez, tomarão como fundamento alguma fórmula a partir da qual procurarão deduzir o todo o resto? Para que reflitamos acerca do problema, urge que consultemos um autor interessado no tema de uma partícula do nome das escolas citadas, os “ismos”.
Eric Voegelin, no início de sua palestra Structure of Consciousness[2], propõe uma reflexão acerca da origem e função dos “ismos” no contexto de sua filosofia da consciência, onde serão tratados enquanto camadas de significado referentes a concepções posicionais surgidas em certo período histórico e representando, no intelecto, algo análogo ao que o termo stasis[3] – comumente traduzido como sedição – significa no pensamento aristotélico. Deixando de lado a questão sobre a precisão da interpretação voegeliana da stasis, o que nos compete apontar é que, segundo o autor alemão, o termo representa uma forma, colorida por tons subjetivos, de rejeição de um estado de coisas em prol de outro e, nesse sentido, a terminologia adquire um teor corrosivo na proporção em que a partícula stasis, quando adicionada a outro termo, passa a qualificá-lo enquanto vicioso: assim temos, por exemplo, a meta-stasis que degenera a fé e origina o termo técnico fé metastática e a hypo-stasis que representa a reificação de conceitos ao transformá-los em entidades subsistentes.[4]
Para perfilar com maior rigor o referente real da stasis, Voegelin atentou à historicidade conceitual, digo, ao dado de que conceitos não surgem do nada: eles são artefatos confeccionados pelo homem com o propósito de referirem-se a algo – e, nesse sentido, como antedito há tantos anos por Aristóteles, são como símbolos que expressam as afecções da alma.[5] Portanto, surgiram num certo tempo e lugar – e eis um aspecto muito importante do pensamento voegeliano, a saber, a história enquanto dimensão existencial e componente da estrutura da consciência.
Guiada pela historicidade dos conceitos, a investigação voegeliana apontou que os “ismos” surgiram, sobretudo, no século XVIII, num primeiro momento, enquanto referentes ao posicionamento de uma pessoa em relação a um problema na medida em que formulava, como pudesse, uma forma de exprimir a verdade da realidade [aletheia] enquanto percebida num determinado período histórico e mediante um determinado aparato lingüístico – e aqui temos mais um componente da estrutura da consciência, a linguagem.[6] Pensando deste modo, podemos aferir que os termos exemplificados por Voegelin – monismo, pluralismo, dualismo – surgem num determinado contexto e visam expressar fenômenos ali inclusos e visados segundo a ótica de seus contemporâneos que, num primeiro momento, visavam nomear posições filosóficas.[7]
Entretanto, como apontado um pouco mais adiante na mesma palestra, em certo ponto do século os “ismos” passaram a contemplar certos sentimentos existenciais – niilismo, otimismo, pessimismo, altruísmo, etc. – estranhos a épocas anteriores e, assim, o “ismo” adquiriu mais uma camada de significado, passando a expressar o modo como a pessoa se posiciona frente à realidade, digo, sob qual ótica vê o mundo. O “ismo” se tornou, assim, uma forma de cosmovisão ou, como definido por Voegelin, uma fórmula [lingüística] que expressa um posicionamento existencial. Aqui tocamos num dos problemas mais graves do “ismo”, a saber, o teor anacrônico: como poderemos, por exemplo, transpor um “ismo” de nosso tempo, referente a algo próprio de nossa realidade histórica, a um fenômeno bruscamente diferente encontrado n’outra época? Claro que o uso de analogias sempre foi útil; todavia, strictu sensu, devemos ter em mente, após tomarmos nota do elemento histórico dos conceitos, que não podemos, por exemplo, fingir que um grego do sec. III a.C. tivesse consciência de algo sequer semelhante ao que chamamos, modernamente, de posição coletivista.
Dando continuidade à reflexão, Voegelin aponta que o posicionamento existencial representado pelos “ismos” enquanto espécie de ponto de vista personalizado segundo um critério de certa forma dogmático – por exemplo, crer apenas na validez de certo aspecto da experiência humana – pode ser classificado como simbolismo egofânico. Mas o que isso significa? O autor trabalha o termo egofania enquanto antítese teofania, sendo que o segundo aponta para uma epifania referente ao divino [Amor Dei] e o primeiro aponta para a epifania do ego [Amor Sui] num sentido fortemente antropocêntrico.[8] Portanto, temos um par de conceitos antitéticos em que, no caso, o simbolismo egofânico opera no contexto de uma tentativa de eclipsamento e redução i.e., substituição,[9] na medida em que, in extremis, o homem é tomado como a medida de todas as coisas.
Seguindo ainda tal linha de raciocínio, que expõe, de certa forma, a raiz egológica do relativismo, Voegelin identifica que o compromisso de examinar a realidade através de “ismos” origina uma espécie de prisão lingüística que previne a especulação externa aos cânones nela pressupostos. Os exemplos são Legião; ao submetermo-nos ao racionalismo, expressaremos [simbolismo, expressão da estrutura lingüística da consciência] nosso posicionamento existencial entendendo que a única forma válida de pesquisa é aquela que considera a estrutura operativa da razão sob a forma de certo aparato lógico englobante e, assim, tudo o que for externo ou não submissível à racionalização, será tido como irracional; é por isso que tendemos a, num vício de linguagem, termos como irracional aquilo que não conseguimos entender. Todavia, esta identificação da razão com sua concepção racionalista nos ilude a ponto de que pensemos que, caso o racionalismo falhe, nos restará apenas sua [suposta] contraparte, o irracionalismo. É por isso que, por exemplo, autores como Schopenhauer, já desiludidos com os problemas do racionalismo, ainda que nem de longe desprezem nossa capacidade intelectiva, recebem a pecha de irracionalistas.
Da mesma forma, caso adiramos ao empirismo, expressaremos nosso posicionamento existencial entendendo que a única forma válida de pesquisa é aquela que considera os “dados” “empíricos” [e o que isso significa, novamente, é Legião] advindos da – seja lá como se considere – experiência humana da forma mais “bruta” possível de modo a evitar as predisposições “ilusórias da razão”. Portanto, novamente, tudo aquilo que não for imediatamente aferível na experiência [sic] será tido como de segunda ordem, ilusório ou mera nulidade. No limite, todos os “ismos”, no sentido aqui exposto, operam do mesmo modo que uma de suas formas mais extremas, a saber, o materialismo eliminativista, que atesta que tudo aquilo que não cabe em seu modelo não existe ou, pelo menos, não possui sentido algum; este comportamento foi chamado por Voegelin de enclausuramento existencial,[10] um modo de existência no qual a consciência jaz fechada, em sua própria estrutura, a tudo aquilo que esteja fora da fórmula prescrita pela stasis enquanto prisão lingüística. Eis, de certa forma, um antolho noético.
Podemos entender, em suma, que o reducionismo dos “ismos” enquanto formas de stasis distorcem a realidade[11] enquanto operam, falaciosamente, uma grande pars pro toto, digo, a contemplação do espelho da vida através de apenas alguns de seus fragmentos e, assim, mesmo que tentemos, buscando uma imagem unitária, reuni-los num mosaico, tudo o que conseguiremos será uma totalidade estilhaçada e, como diria Mário Ferreira dos Santos, sincrítica e incapaz de refletir corretamente coisa alguma.[12]
Após esta breve reflexão, parece notório que aqueles que redigem manuais comumente não estão cientes de tais problemas e, em verdade, tomando tais “ismos” enquanto acepções genéricas [e erradas], quiçá acharão a especulação acima exagerada ou simplesmente espúria. É possível, ainda, que, tomando o dicionário de filosofia mais próximo e aferindo que racionalismo significa apenas um foco especial na razão, o leitor descarte a especulação voegeliana. Entretanto, descartar o tema da historicidade do conceito não apagará o dado de que até mesmo o termo razão diferiu em diversas épocas e, não importa o que o manual diga, a razão cartesiana nada tem que ver com o – comumente traduzido como razão – nous platônico. Hoje pagamos preço de um longo período não apenas de anarquia, mas de negligência terminológica e, ainda que Kant insistisse que só se cria um termo novo em caso de extrema necessidade e Schopenhauer se desesperasse ao ver os pensadores de seu tempo abandonando os termini techni latinos, houve aqueles que creram que fazer filosofia significa criar palavras novas. Talvez a manualística moderna, seguindo os passos da antiga, esteja pouco a pouco dogmatizando sistematicamente a terminologia filosófica e, como podemos aferir, tal qual sua ancestral, há de cumprir o papel de afastar as palavras das coisas.
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Notas:
[1] Este é o caso, por exemplo, do Compêndio de Filosofia [tradução do The Blackwell Companion to Philosophy].
[2] Disponível em The Collected Works of Eric Voegelin vol. 33
[3] Em Aristóteles, o termo stasis ocorre em Política 1266a37; em Voegelin, podemos encontrá-lo em Ordem e História Vol.III p.378.
[4] The Collected Works of Eric Voegelin vol. 33 p.170/353.
[6] Dito de outro – e grosso – modo, os ismos foram confeccionados enquanto referentes a um fenômeno da forma como uma pessoa concreta o entendeu e expressou.
[7] É importante destacar que as posições filosóficas ali nomeadas se referem, estritamente, àquelas adotadas na modernidade; eis o grande problema de considerar autores antigos segundo uma ótica moderna, como a atribuição da pecha de empirista a Aristóteles, tendo em vista que o tema da experiência, como tratada na escola empirista, difere radicalmente do modo aristotélico de tratar a empeiria. Entretanto, o melhor modo que “descolar” os antigos da nomenclatura moderna é apontar que o tema do posicionamento existencial tratado neste ensaio é um fenômeno eminentemente moderno e sem equivalente algum na antiguidade ou no medievo.
[8] Um exemplo do primeiro é o simbolismo bíblico; um exemplo do segundo é aquele encontrado no livro O Existencialismo é um Humanismo. Nesse sentido o pensamento sartreano é antes um posicionamento existencial, um ismo, do que um movimento erótico voltado à verdade da realidade [filosofia].
[9] Caso tomemos o termo egofania e o levarmos ao extremo – como feito por Voegelin mesmo em Ordem e História vol. IV p.332ss – chegaremos a um rol formidável de pensadores egofânicos, entre eles o amplamente citado Nietzsche e ainda o, um pouco menos citado [neste sentido], Heidegger. Outro exemplo extremo de simbolismo egofânico pode ser encontrado no livro A Essência do Cristianismo, de Ludwig Feuerbach, em que este reduz a manifestação religiosa referente à asserção da existência de Deus à projeção psicológica reificada das qualidades do homem – o mesmo valendo para todos os outros pensadores que sigam mais ou menos a mesma linha de pensamento, como o expresso por Sartre em O Existencialismo é um Humanismo.
[10] Closed Existence. O Enclausuramento Existencial e o Posicionamento Existencial quase sempre ocorrem juntos.
[11]“And by its linguistic fixation [this language] threatens to become a distortion of reality, because it might pretend that that is all we know about reality, or have to know about reality. So such fragmentizing linguistic elements as we find here, that is what I call a stasis as a structure in consciousness.” The Collected Works of Eric Voegelin vol.33 p.353
[12] Aqui temos, destacando a impossibilidade de uma imagem uniforme predicada dos vários fragmentos do espelho, o fundamento, na consciência, do que chamei de politeísmo opinativo, a mútua exclusão entre as várias opiniões e a impossibilidade de decisão entre elas, pois todos os critérios possíveis se tornaram arbitrários e, assim, tudo o que restou foi o relativismo.
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