Por Edward Feser
Tradução, notas e comentários de Helkein Filosofia
Dirijamos nossa atenção para fora de nós mesmos tanto quanto possível; lancemos nossa imaginação até os céus, ou até os limites extremos do universo. Na realidade, jamais avançamos um passo sequer além de nós mesmos, nem somos capazes de conceber um tipo de existência diferente das percepções que apareceram dentro desses estreitos limites. Tal é o universo da imaginação, e não possuímos nenhuma idéia senão as que ali se produzem.[1]
David Hume
Venha comigo e você estará
Em um mundo de pura imaginação
Dê uma olhada e você verá
Na sua imaginação
David Hume é um caso curioso. Adolescentes filosóficos se entusiasmam com suas célebres e subversivas doutrinas acerca da religião, causalidade, razão prática, valores, a existência do eu e metafísica em geral. Entretanto, suas teses são baseadas em pressupostos filosóficos que são, na melhor das hipóteses, extremamente controversos (como a tese de que o conceptível é possível) e, na pior, definitivamente refutados (tese do conceito feito imagem) ou autocontraditórias (garfo de Hume). Tendo sido consideradas elegantes e agradáveis, as conclusões humeanas persistem, feito zumbis, e ignoram a morte dos argumentos que as originaram. É irônico que pessoas que se consideram extremamente objetivas, guiadas por argumentos racionais fincados no firme solo da realidade observável, considerem Hume um herói, posto que sua filosofia destrói a razão e a experiência, reduzindo-as, efetivamente, à esfera totalmente subjetiva da imaginação. A filosofia de Hume é o reino da irrealidade — ele é o Willy Wonka com as impressões do chocolate em vez do chocolate.
Como bem sabem meus leitores, os escolásticos e outros filósofos de viés aristotélico distinguem as faculdades da sensação, da imaginação e do intelecto. Sensação é o que temos quando percebemos empiricamente, digamos, um determinado homem; embora estejamos cientes dele por meio da percepção, para o aristotélico, o objeto da percepção é o homem e não a experiência sensível. Alucinações[2] e semelhantes não tolhem isto da mesma forma que este ou aquele cão não ter uma pata não nos autoriza a duvidar que cães não tenham quatro delas. Um cachorro sem uma das patas está danificado, é um caso adverso e, portanto, não serve de parâmetro quando nos interessamos pela natureza dos cães. Na mesma clave, uma alucinação, enquanto experiência perceptiva anormal resultante d´alguma disfunção, é precisamente o tipo de situação que não devemos procurar para verificar a natureza da experiência normal. Um filósofo que utilize tais recursos para “mostrar” que os objetos sensíveis não são realmente externos é semelhante a um biólogo que usa cachorros de três patas para provar que cães não têm, naturalmente, quatro delas.[3]
Imaginação é aquilo que utilizamos quando formamos phantasmas do que vimos, tocamos, cheiramos ou provamos. Assim, ao sentarmo-nos para relaxar, é possível lembrar da aparência de pessoas, do som de vozes, da sensação de apertos de mão e assim por diante; embora a pessoa exista extra mentis, ela não está presente no momento em que a imaginamos. Podemos, ainda, imaginar pessoas que não vimos ou que não existam: podemos imaginá-las mais altas, com uma cor de cabelo diferente, fantasiadas e lutando contra o crime, e até com asas. No escopo da imaginação, podemos distinguir vários aspectos das coisas que percebemos — esta ou aquela cor, forma, som, textura, sabor, odor e por aí vai – e recombiná-los de novas maneiras. Como podemos ver, tais características indicam que a imaginação possui um viés subjetivo que a distingue da percepção sensível.
O intelecto é utilizado quando compreendemos um conceito, quando o reunimos a outros para emitir um juízo (como aquele de que todos os homens são mortais) e quando raciocinamos de um ajuizamento para outro de maneira lógica (como quando deduzimos, de que todos os homens são mortais, que o homem que encontrei aqui ou ali é mortal). Os conceitos, ajuizamentos e raciocínios são, como tantas vezes demonstrado, irredutíveis ao fornecido pela imaginação ou sensibilidade. Conceitos são essencialmente universais, algo que percepção ou imagem alguma pode ser; são determinados, precisos e inequívocos em seu conteúdo de uma forma que os phantasma ou sensibilia jamais serão e podemos combinar conceitos de coisas que não podem ser percebidas ou imaginadas.
Hume, em suma, colapsa o intelecto e a sensibilidade na imaginação. Comecemos pelo intellectus; Hume, feito Berkeley, reduz os conceitos, assim como os nomes comuns,[4] aos phantasma. Desde a crítica de Wittgenstein ao empirismo clássico, os filósofos analíticos parecem reconhecer que tal definição para conceitos é inútil; entretanto, qualquer escolástico poderia dizer o mesmo. Este erro subjaz as concepções humeanas de causalidade, substância e outras noções metafísicas, pois a sugestão de que não podemos obter um conceito claro de conexão causal, etc. recebe plausibilidade apenas se pensarmos que conceituá-las consiste em lhes fornecer uma imagem mental correspondente: o abandono de tal suposição evanesce o argumento. O conhecimento geométrico e aritmético disponível para uma criança é suficiente para demonstrar a estupidez do suposto: conceituar um triângulo não requer imagem mental alguma, visto que o imaginável é este ou aquele triângulo em particular e não a triangularidade abstrata; tampouco se trata de obter um phantasma da palavra “triângulo”, posto que ela se conecta, contingentemente, a seu referente (conceituar um triângulo é exatamente a mesma operação visada por Euclides, mesmo que este não conhecesse o termo “triângulo” corrente em nossa língua).[5] Semelhantemente, saber que 2+2=4 não é formar imagens de “2”, “+”, etc., uma vez que tais símbolos também são apenas contingentemente referentes às realidades imagéticas referidas.
Nada disto implica que tais realidades devam ser pensadas segundo o modelo caricatural empirista ou materialista — ectoplasma, pozinho mágico da fada e coisas assim —, todos imagináveis no sentido de passíveis de phantasma. Céticos que atacam estes espantalhos sofísticos não compreendem o ponto discutido, visto que supõem que o sentido das coisas dependa da consideração de que elas sejam, ao menos em princípio, visíveis, audíveis, degustáveis, táteis ou olfatívas. Mas, neste caso, nem a matemática e nem a ciência em geral estariam inclusas neste escopo.
Hume reduz, efetivamente, a sensação à imaginação na medida em que destitui a primeira de seu caráter objetivo; na concepção humeana, a mente contém apenas impressões e idéias, sendo as primeiras o conteúdo da sensação e as segundas suas cópias enfraquecidas formadas pela imaginação. Mas as impressões não possuem conexão essencial alguma com algo independente da mente mesma: quando percebemos uma pessoa, são apenas impressões — cor, figura, etc. — associadas a um homem percebido, não havendo como saber, desta forma ou d´outra, se há algo exterior que corresponda à aparência; são, portanto, tão subjetivas quanto phantasmas. Embora Hume caracterize uma “idéia” ou imagem como versão evanescente d´uma impressão, poderíamos decerto descrever uma impressão como versão vívida de uma idéia.
Impressões assemelhar-se-iam a imagens de concepção análoga aos elementos “separados” que a imaginação combina a bel-prazer. Novamente, não é de uma pessoa que temos uma impressão humeana, mas de um conjunto de manchas, figuras, sons, etc., organizados e rotulados pela mente num todo que chamamos de “pessoa”. Este é um modelo que os filósofos analíticos, pelo menos desde o ataque de Wilfrid Sellars ao “mito do dado”,[6] como irremediavelmente tosco. Hume crê reduzir a experiência a um agregado de impressões; entretanto, a noção humeana de impressão é, ela mesma, uma abstração. Ao lermos um livro, percebemos o todo e não uma extensão regular colorida, com certa textura e que ressoa como papel. Tais “impressões” não são mais fundamentais do que o todo da experiência, da mesma forma que um pé ou rim não o são em referência ao organismo que compõe – e, nisto, as partes devem ser compreendidas à luz do todo e não o inverso. “Impressões” e categorias deste gênero cooperam na experiência de maneira análoga e, por isto, examiná-las em termos humeanos provê uma análise viciosa.
Não surpreende que, para Hume, mediante o intelecto ou via sensibilidade, “jamais avançamos” para além destes “estreitos limites” do “universo da imaginação – i.e., nós mesmos. Toda a existência é, no limite, um jogo de aparências hic et nunc, com algumas delas podendo ser consideradas como objetos materiais extra mentis e outras como conceitos, verdades aplicáveis não apenas àquilo que não está presente, mas para o que jaz fora do limite da experiência possível. Mas tudo isto é, segundo o pensamento humeano, tão ilusório como qualquer razão para crer na razoabilidade de nosso ajuizamento. Também não fascina que, para citarmos novamente as lições de Hume promovidas por Willy Wonka, “em um mundo de pura imaginação… o que veremos desafiará a explicação” posto que isto exigiria que o intelecto compreendesse categorias — conexões causais objetivas, essências das coisas, etc. — que a sensibilidade e a imaginação não abarcam; mas nada disto existe na doutrina de Hume.
O que realmente salta aos olhos é que o sistema de Hume ainda seja levado a sério, uma vez que suas falácias já foram expostas. Fica menos estranho caso percebamos que, da mesma forma que os religiosos imaginários que caricatura, o cético humeano sabe, de antemão, as conclusões que deseja lograr com seus argumentos — e não é, de fato, muito rigoroso em sua empreitada. Ele deseja um mundo em que a causalidade não o leve ao Incausado, no qual o bem e o mal não passem de sentimentos e que a racionalidade não seja senão uma escrava das paixões. Pois, feito ensinado por Willy Wonka, num mundo humeano de pura imaginação:
Want to change the world, there’s nothing to it.
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Notas:
[1] Tratado da Natureza Humana, Livro I. Parte 2, secção 6. [N.T.]
[2] Referência aos argumentos cartesianos do sonho. O filósofo utiliza alucinações e enganos em geral como razões para que não confiemos nos sentidos e passemos nossa atenção para o conhecimento a priori.
[3] A anormalidade não é parâmetro. [N.T.]
[4] Universais. A confusão foi explicada nos rodapés de O Problema do Problema Humeano da Indução. [N.T.]
[5] Concepção Aristotélica. Ainda que as palavras mudem conforme o idioma, sua qüididade e, por conseguinte, seu referente real, devem ser o mesmo, uma vez que a realidade visada não muda. Assim, não importa que digamos triângulo ou triangle; o objeto visado é o mesmo. [N.T.]
[6] A crítica do mito do dado, enquanto considerada como argumento contra o empirismo tradicional, funciona mais ou menos assim. Primeiro admitimos que um conhecimento fundamental deve cumprir dois requisitos: independência epistêmica (RIE) e eficácia epistêmica (REE); o primeiro refere-se a um estado cognitivo independente de quaisquer outros estados e o segundo que estados cognitivos não básicos retiram seu fundamento dos primeiros. O argumento afirma que “dado” algum cumpre ambos os requisitos. Isto posto, de acordo com Sellars, o chamado conhecimento empírico [sentido empirista] não cumpre com RIE e, portanto, não pode ser fundamental; neste contexto, a idéia mesma de “fato bruto” se esvai: o fato existe apenas integrado numa estrutura prévia que lhe confira sentido. O argumento completo pode ser conferido em Empirismo e Filosofia da Mente. [N.T.]
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