Por A.E. Taylor
Tradução e Notas de Helkein Filosofia
O Timeu é, entre os diálogos platônicos, o único dedicado à cosmogonia e às ciências naturais. Por conta de dois terços do texto terem sido preservados durante a idade média latina, e com o comentário de Calcídio, foi também a única obra filosófica grega de seu melhor período com a qual o oeste da Europa se familiarizou até a recuperação, no século XIII, dos escritos físicos e metafísicos de Aristóteles; forneceu, portanto, ao medievo, o esquema geral da natureza. Não podemos, no presente volume, detalhar o conteúdo do diálogo, objetivo visado em meu Commentary on Plato’s Timaeus, (Oxford, 1928) – que requer comparação com aquele do Prof. Cornford (Plato’s Cosmology, Londres, 1937).
A data de sua composição não pode ser precisamente fixada e, na ausência de evidências externas, as internas servem apenas para mostrar, através do estilo, que o escrito pertence à maturidade de Platão; portanto, situamos sua redação n´algum momento após o Sofista, i.e., entre 360 e 347 a.C. É bastante incerto, até onde vejo, se o Timeu vem após o Filebo ou o contrário. Quanto à data do diálogo descrito, creio ser possível alguma precisão; devemos considerar: a) as evidências internas do Timeu, b) aquelas fornecidas pela República. A) os interlocutores do diálogo são Sócrates, Timeu, Crítias e Hermócrates. Do homônimo do diálogo, nada sabemos senão o aprendido de Platão, i.e., que foi um lócrio do sul da Itália, eminente tanto em ciências quanto na política (20a). Devido à doutrina por ele exposta ser, reconhecidamente, um pitagorismo em que a biologia e a medicina de Empédocles unem-se à matemática pitagórica, não há dúvida de tratar-se de um pitagórico da cepa de Filolau. Disto resulta a sugestão de ser um homem pelo menos tão vivido quanto Sócrates, o que podemos, talvez, relacionar ao que nos foi dito sobre as magistraturas por ele ocupadas com os dados sobre a ascendência política dos pitagóricos na Magna Grécia na primeira metade do século V.[1]
Hermócrates é, claramente, o famoso siracusano conhecido pelo papel desempenhado na defesa de Siracusa, em 415 a.C., contra a armada ateniense. Sócrates dá a entender (20a) que este homem ainda possui uma carreira a zelar e baseia suas estimativas em opiniões populares. Isto mostra que o siracusano é um estranho em Atenas e que a conversa data não muito tempo após o “Congresso Pan-Siciliano” em Gela (424 a.C.), onde Hermócrates fez seu primeiro discurso (Thuc. IV. 58).[2] Crítias não é, como suposto pelo Prof. Burnet e outros, o “oligarca” participante do governo usurpador de 404-4 a.C. Ele já se destacara na ciência e na política (20a) e refere-se à sua velhice na maneira como se lembre dos distantes eventos de sua infância, embora mal se lembre do que lhe foi dito no dia anterior (26b). Crítias conta que seu bisavô foi parente e amigo de Sólon (20e) e também que ele mesmo, enquanto menino, cantava os versos solônicos, na época, uma novidade (21d). Tudo isto aponta que o personagem se refere ao avô do “oligarca”, i.e., bisavô do próprio Platão. Ainda assim, devemos supor que Crítias, na data do diálogo, estava bem velho. B) O Timeu é posto, inequivocamente, como continuação da República. Sócrates inicia o diálogo recordando seus companheiros dos postulados fundamentais que havia posto “ontem” (17a-19a); precisamente aqueles contidos em República I-V. Nisto, somos orientados a datar o discurso do Timeu em dois dias após aquele ocorrido na casa de Polemarco[3] e, se isto estiver certo e conforme a data dramática da República, então resulta na época da paz de Nícias ou pouco antes dela, em 422 ou 421 a.C., coerente com todas as indicações dadas pelo próprio Timeu. Isto nos permite compreender a infância do velho Crítias imediatamente após a expulsão dos Pisistrátidas de Atenas, algo deduzido da “novidade” e popularidade dos poemas de Sólon na mesma época (e não é provável que Pisístrato e seus filhos tenham incentivado seu canto). Isto também justifica a presença de dois homens públicos e distintos, um da Lócrida e um de Siracusa; há apenas um ou dois anos de paz, os atenienses enviaram mensageiros numa viagem pelas cidades do sul da Itália, incluindo a Lócrida, visando formar uma liga para manter Siracusa sob controle. Uma pacificação geral manteria as coisas em ordem no mediterrâneo ocidental, e podemos afirmar que Timeu não veio para Atenas apenas para discutir com Sócrates o tema da criação do mundo, e vemos também o motivo de Hermócrates ser conhecido apenas por sua educação e habilidades. É importante atentar que, caso estejamos certos, a data do diálogo ocorre um ou dois anos após sua burlesca apresentação n´as Nuvens. Por ser uma data dramática mais apropriada do que especulações posteriores, creio que esteja correta.
O diálogo é dividido em três partes: a) a recapitulação introdutória do dito por Sócrates (17a-19b) em A República I-V, expressando um forte desejo de que a doutrina ali estabelecida seja incorporada numa história dramática de realizações concretas (19b-20c); b) a descrição de Crítias acerca da suposta façanha histórica em que Atenas resiste e derrota os reis de Atlântida (20c-26d); e c) o discurso cosmológico de Timeu, estendido ininterruptamente – com exceção do ocasional assentimento de Sócrates (27c-92c). Consideraremos tal divisão em sua ordem.
A. Introdução (17a-20c) – Não há muito a comentar e é espúrio especular a identidade da pessoa que, por indisposição, afasta-se da conversa e é substituída, no cargo de orador, por Timeu. Quando toma o posto, compreendemos que ele pertence ao grupo dos filósofos “italianos”. Filolau, sugere Burnet, também seria adequado para o papel, o mesmo valendo para Empédocles. Platão pretende, aqui, exprimir graciosamente o que seu diálogo deve aos “italianos” do século V a.C. A principal característica da recapitulação da República é referir-se apenas aos livros I a V: nada é dito sobre os reis-filósofos e sua educação em matemática e dialética, a Forma do Bem ou o conteúdo dos livros VIII-X. Sugiro que a explicação mais correta é, também, a mais simples: apenas parte da República importa enquanto fundamento apropriado para a história da derrota de Atlântida para Atenas. Platão está ciente de que o rei-filósofo é um “ideal” não realizado e, nisto, se abstêm de tentar mostrar uma sociedade dotada de um deles em ação; por outro lado, é crível ter existido uma sociedade feito aquela descrita nos livros I-V da República e, assim, ele se sente confortável com o delineamento imaginativo da narrativa.
As observações com as quais Sócrates encerra sua recapitulação são interessantes por mostrarem que Platão entendia perfeitamente que seu herói tinha limites bem definidos. Sócrates, como ele nos diz, pode nos dar o quadro de uma sociedade saudável, mas não pode fazer “com que as figuras se movam”, não podendo contar a história do comportamento desta de maneira realista por não ter experimentado o suficiente do trabalho do estadista ativo; afinal, ele permanece sendo um teórico e um doutrinador (19b-e). Isto era, de fato, verdade para Sócrates, e nos ajuda a explicar como sua influência sobre muitos de seus associados não foi totalmente benéfica e seu convívio na juventude não foi absolutamente boa para o jovem comum; neste ponto havia apenas pistas para aquelas desconfianças que os funcionários da democracia, feito Anytus, lhe imputariam.
B. A História da Atlântida (20c-25d). – A história contada por Crítias nos diz que, nove mil anos antes da época de Sólon, Atenas desfrutou de instituições como as descritas nos livros I-V da República. Seu solo era rico e fértil por não ter sofrido a desnudação que, desde então, reduziu o distrito de Ática a um esqueleto rochoso. Os atlantes pré-históricos, moral e espiritualmente fortes, derrotaram os reis federados de Atlântida, uma ilha posta no Atlântico, fora do Estreito de Gibraltar, e que já havia dominado toda a Europa e a África até a fronteira egípcia. Posteriormente, tanto os atenienses pré-históricos quanto Atlântida foram subjugados, num único dia, por um terremoto seguido de inundação; a história sobreviveu apenas nos registros egípcios, de onde Sólon os ouviu durante suas viagens.
Deve ficar claro, de pronto, que esta história é invenção platônica.[4] Ele não poderia nos dizer isto de forma mais clara do que o faz em Crítias (113b), quando faz com que Crítias apele ao testemunho de “documentos familiares” como única evidência de sua narrativa. Não apenas a existência do reino-ilha, mas também a afirmação de que Sólon contemplou um poema sobre ele é representada como “tradição familiar”, i.e., nunca se soube, de fato, nada sobre o acontecido. Não é difícil encontrar os materiais para a confecção da história: a suposta pouca profundidade do mar logo após os “pilares de Héracles” e, quiçá, os contos dos marinheiros cartagineses sobre ilhas no Atlântico servem de base para o conto da ilha perdida; já o relato de sua destruição é manifestamente no grande terremoto e maremoto do ano de 373 a.C., responsável por devastar toda a costa da Acaia. A concepção do conflito entre uma nação pequena e patriótica contra um invasor dotado de recursos materiais e superioridade militar – ponto bastante enfatizado por Crítias – é claramente sugerida pela história da resistência ateniense contra Dario e Xerxes. Platão projetou os eventos das guerras persas para trás, ampliou sua escala e, assim, a tornou antes moral do que numérica; riqueza e habilidade não são páreos (e aí vem a parte entediante) para o espírito nacional de um povo livre. A narrativa não tem, a rigor, conexão lógica com o tema do Timeu; sua função é ser um prelúdio do Crítias, onde será detalhada. Como dito por Crítias, no final da história, (27a-b) a divisão entre os oradores deve ser a seguinte: Timeu deve descrever a formação do mundo e do homem como seu “ápice”; Sócrates deve, então, explicar como o homem é educado; e então Crítias deve contar os feitos heróicos dos homens cuja produção foi tratada por Timeu e a educação por Sócrates. Nisto, a ordem lógica dos diálogos seria Timeu, República e Crítias. A alusão desta passagem parece mostrar que se trata, de fato, da República, única obra em que Sócrates fala, explicitamente, de métodos educacionais. Posta a ausência de um discurso de Hermócrates e a falta de assunto sobre o qual ele poderia falar, infiro que Platão não intentou estender as coisas para além do Crítias – Hermócrates seria, portanto, antes um ouvinte do que um orador.
C. O Discurso de Timeu (20c-25d). – A exposição de Timeu abrange todo o escopo da ciência natural, desde a astronomia até a medicina e psicofísica, sendo impossível tratar apenas de seus aspectos marcantes. Ela se inicia com duas posições fundamentais: a) o mundo físico, enquanto tal, “vem a ser” ou, noutros termos, é plano do “acontecer” ou dos “eventos” e b) tudo o que “vem a ser” tem uma causa, i.e., é produto de um agente (28a-c). O “artesão” ou “artífice” (δημιουργόσ) que produz o mundo é suposto, na história, enquanto Deus; mas se trata de um operador que trabalha conforme um modelo ou arquétipo e, assim, nos perguntamos se a referência da produção do mundo é eterna ou algo que “veio a ser”.[5] Uma vez que o criador é a mais excelente das causas e as coisas que faz são as melhores entre os efeitos, fica claro que o arquétipo do qual o mundo é “cópia” ou “semelhança” (εικὠν) é eterno (29a) (em termos modernos, isto significa que o mundo não é composto apenas por “eventos”, mas também por, no sentido do Prof. Whitehead, objetos postos nos eventos e, daí, sua inteligibilidade). Isto estabelece uma importante norma de precisão para as ciências naturais: os enunciados sobre os arquétipos imutáveis devem ser exatos, definitivos, e, nisto, possuem primazia sobre seu objeto; já aqueles referentes à sua cópia sensível, submissa ao fluxo do devir, logram apenas uma certeza aproximada. Portanto, na ciência natural, não podemos exigir mais do que “conjecturas”;[6] a finalidade reside apenas na metafísica e na matemática, enquanto as disciplinas da physis devem se contentar com resultados aproximados ou provisórios, ainda que sua tarefa seja precisá-los até o limite do possível (29b-d). Noutros termos, a física progride num sentido alheio ao da metafísica e da matemática (a fórmula newtoniana da gravitação universal pode ser uma “aproximação” passível de aperfeiçoamento segundo descobertas posteriores; mas uma fórmula, feito cos θ=½ (eθι+e-θι), não é aproximada e, nisto, não pode ser lapidada).[7] Proposições físicas são, a princípio, sempre aproximadas, de forma que nenhuma jaz para além da possibilidade de correção; isto é tão importante que Timeu toma o cuidado de repeti-lo algumas vezes, conectando-o com as hipóteses científicas especiais que propõe como explicação para conjuntos específicos de fatos. Podemos tomar como exemplo moderno a consideração de que todas as medidas reais de grandezas físicas são aproximadas e que nenhuma determinação experimental é confiável senão atenuada por uma “margem de erro”. Quando se diz que o conhecimento natural é meramente “provável” isso não significa que a ciência pode ser substituída por historietas, mas que embora devamos sempre precisar seus resultados, é preciso ter em conta que todos são passíveis de aperfeiçoamento.[8] Nossas melhores medições podem ser substituídas e as melhores hipóteses podem ser modificadas à luz de novos fatos. O que Timeu formula não é mero conto, mas uma ciência geométrica da natureza.
Podemos nos perguntar, logo em seguida, sobre o motivo da criação do mundo; a resposta é que o Criador, sendo perfeitamente bom, não quis guardar a bondade apenas para si e, nisto, decidiu criar algo à sua semelhança.[9] Então assumiu o controle de todo o “visível”, situado em estado caótico, e o transformou num sistema ordenado – uma vez que a ordem é superior ao caos.[10] Na mesma clave, lhe conferiu razão (νους) e, uma vez que esta pode existir apenas numa alma(ψυχἡ), também lhe foi concedida; assim, o mundo “veio a ser como um ser vivo dotado de alma e de inteligência pela força da providência divina” (30b). O modelo da criação do mundo é, claramente, νοητόν, inteligível, completo (τέλεον) em si mesmo e vivo; o plano sensível é, portanto, a materialização de um vivente ou organismo (ζῷον) do qual todas as criaturas são componentes. Há apenas um “mundo” sensível (em oposição à tradição milesiana dos “inúmeros” mundos), pois o modelo é único e sua cópia perfeita espelha sua singularidade. (30c-31b).
Assim, na estrutura do Timeu, vemos que a “causa eficiente” do mundo é considerada, definitivamente, um Deus “pessoal” e este “criador” (ou “produtor”) é, a rigor, o único Deus.[11] Encontraremos, mais adiante, o nome Θεός conferido tanto ao mundo quanto às duas partes, mas isto não deve nos iludir: tais Θεοί são todos criados e sua razão de ser é a vontade do δημιουργόσ (29e-41b) que, aqui, se distingue deles da mesma forma que Deus é distinto das “criaturas” na teologia cristã. Entretanto, a causa formal do mundo não é Deus, mas a “criatura viva e inteligente”, o αὺτò ὂ εστι ζῷον que Deus contempla, enquanto modelo, para sua obra. A linguagem utilizada neste modelo revela que devemos pensá-lo como “forma” de um organismo que engloba outros organismos; nisto, sua peculiaridade consiste em conter apenas um “sensível” como seu “participante”.
Podemos, naturalmente, nos perguntar que parcela disto é séria e qual consiste em mera metáfora. No entanto, não há quem possa responder com precisão e, o que é possível, o próprio Platão não poderia distinguir rígida e rapidamente o conteúdo filosófico da forma mítica. Mas alguns pontos são importantes: seguir o exemplo dos intérpretes que procuram algo de Spinoza em Platão, tomando o “artífice” como símbolo mítico de seu “modelo”, o νοητόν ζῷον, distorceria todo o filosofema; isto pode ser, ou não, boa filosofia ou teologia, mas decerto não é o que Platão quis dizer, como conferiremos durante o tratamento de Deus no As Leis. Deus deve ser mantido distinto das formas por conta da operação do Demiurgo como produtor de um mundo “como” a eidos; esta é a única explicação que Platão oferece acerca da maneira pela qual as coisas “participam” das idéias. Se Deus fosse identificado com as formas (ou com a suprema entre elas), seria um mistério o motivo de haver qualquer coisa para além delas, a saber, o plano do “devir”.[12] Até que ponto a explicação de que Deus “produz” um mundo conforme o modelo arquetípico foi tomada por Platão como expressão literal da verdade é uma questão que pode ser deixada para qualquer um que seja ousado o suficiente para proclamar o mesmo que Leibniz pretendeu com a “escolha do melhor” enquanto razão para que Deus criasse o mundo.[13] A única coisa que fica clara, nas Leis, é que o Deus de Platão é uma “alma” e não uma idéia.[14]
Uma questão mais coerente é se Deus, no Timeu, é o que queremos dizer com “criador”; devemos levar a sério a descrição da ação divina como imposição da ordem num caos primordial? Platão quis dizer que o mundo foi produzido a partir de materiais preexistentes? Neste ponto, há interpretações discrepantes logo na primeira geração da Academia; Aristóteles, como se sabe, insiste em ver no Timeu a doutrina de que o mundo é γεννητός (“gerado”) e, então, a critica com todas as forças. Por outro lado, a maioria dos platônicos – e todos os neoplatônicos – adotam a perspectiva de Xenócrates e interpretam que a geração do mundo é adotada por “conveniência expositiva” (διδασκαλίας χάριν) da mesma forma que, quando um geômetra “desenha” uma linha, tudo o que faz é apontar a existência de uma [linha] que já estava implícita nos primeiros postulados.[15] Nisto, a especulação do estado do mundo antes do início da obra divina é espúrio – e, no limite, tentar pensar para além de todos os sinais de ordenamento presentes nas coisas geradas por Deus. Apenas dois platônicos adotaram a perspectiva aristotélica: Plutarco e Ático, um escritor do período antonino. É notório que tal leitura literal do Timeu acarrete dificuldades; como é indubitável que a doutrina platônica, exposta de maneira mais completa nas Leis, é de que a “alma” é a causa de todo movimento, Plutarco é forçado a ver, ali, a afirmação da existência de uma alma do mundo “má” que, supõe, animou o caos primevo. Ainda que tal interpretação tenha sido seguida, nos tempos modernos, por estudiosos feito Zeller, ela é, decerto, um “ninho de égua”. O dito nas Leis é que, uma vez que há ordem e desordem no mundo, deve haver alguma alma – ou almas – que não sejam Deus e, nisto, causem desordem.[16] Podemos afirmar com certeza que Aristóteles não teria silenciado ao topar com uma doutrina que, para ele, seria pura blasfêmia – em especial se fosse de cepa platônica.
Fica visível, durante o exame do conteúdo do Timeu, que Platão não quer dizer que houve um tempo antes de Deus produzir o mundo. O que ele nos diz, como concede Aristóteles,[17] é que o tempo e o mundo “começaram” juntos na criação divina. Nisto, a perspectiva da existência de um estado primordial de puro caos não deve ser levada em conta e, assim, Xenócrates parece estar correto (o que permite a possibilidade lógica de que a série de eventos possua um membro primeiro e que o intervalo entre ele e o próximo, que é a escrita deste texto, seja um número finito de anos; mas não creio que qualquer estudioso familiarizado com o pensamento grego suponha que Platão tenha contemplado tal alternativa). Novamente, como ficará claro durante o tratamento da noção de “necessidade”, parece crível que o Timeu não contém limitação alguma à vontade de Deus senão suas condições intrínsecas. A bondade do “criador” explica completamente a existência do mundo, e isto deve justificar o dito que o “Demiurgo” é considerado Criador em sentido pleno. Xenócrates pode estar correto, ainda, quando considera que o diálogo implica uma “eternidade do mundo” num sentido mais ou menos preciso, i.e., de que a série dos eventos não possui um primeiro membro, uma vez que, na terminologia do próprio Platão, o mundo é γεγονός “algo que veio a ser” – e não um ὰΐδιον, eterno. Mesmo que não tenha havido um primeiro evento, tudo o que há de sensível “surgiu” como resultado de um processo e, na concepção platônica, está em constante “evolução” mesmo que nunca tenha começado ou chegue a um fim. É por isto que o mundo, ao contrário de Deus, tem uma história: ele está sempre em formação – e não há ponto em que esteja totalmente formado.
Não podemos detalhar toda a história da criação, mas, uma vez que as entidades naturais podem ser vistas e tocadas, devem ser compostas de fogo (luz) e terra;[18] todavia, para combiná-los de maneira estável, é preciso um medium. Mas ambos possuem volume e três dimensões; segue a necessidade de não apenas um, mas dois mediadores, [19] demanda atendida pela água e pelo ar: o fogo é, para o ar, o que este é para a água e esta para terra. Tal aplicação lúdica da doutrina da média geométrica efetua uma transição da matemática pitagórica para as quatro “raízes” de Empédocles e veremos, em breve, que, para Timeu, elas não são “elementos” (31b-32c). Já o Demiurgo, utilizando estes materiais para produzir o cosmo, não excreta ou assimila nada, o que o impede de adoecer ou envelhecer. A figura do universo é feita esférica, pois, uma vez que é aquela que possui o maior volume entre os corpos de mesmo perímetro, é também que pode conter o todo. Não lhe foi concedido órgão sensível algum, pois nada há fora dele; nem digestivos, pois nada há para comer; e nem locomotores, pois não há para onde ir, ou mãos, pois não precisa agarrar ou afastar. Uma vez vivo, o cosmo opera o mais uniforme entre os movimentos, a rotação sob seu próprio eixo. Por fim, devemos acrescentar que ele foi animado mediante uma ψυχή; eis a produção de um “deus abençoado” (32c-34b).
No entanto, iniciamos a explicação pelo lugar errado, uma vez que deveríamos ter descrito, primeiro, a produção da alma do mundo – dada sua precedência e nobreza na ordem da “feitura” demiúrgica (pois, em Platão, a alma é princípio e movimento). A alma do mundo tem três componentes: a) um Ser intermédio entre o que é sempre “o mesmo” e aquilo que “vem a ser enquanto divisível” nos corpos; b) uma espécie de similaridade intermédia com o Idêntico e c) com o Diferente. Portanto, Deus cria a alma como tertium quid entre o eterno e o temporal.[20] Em seguida, como descreve Timeu, o Demiurgo “divide” seu produto conforme os intervalos de uma escala cromática[21] (devemos imaginar, aparentemente, uma longa faixa com intervalos determinados conforme a distância correspondente às notas da escala). Por conseguinte, a escala é dividida, longitudinalmente, em duas metades postas transversalmente, em cruz, e, então, ambas dobradas de modo a formar dois círculos em planos reciprocamente perpendiculares, com duplo contato, feito um equador e um meridiano numa esfera. O círculo externo é chamado de Idêntico; o mais interno, Diferente; o primeiro move-se “para a direita”, enquanto o segundo, subdividido em sete círculos concêntricos a distâncias desiguais, os move, em velocidades desiguais, para a esquerda (34c-36d). Nos é dito, mais tarde, que a inclinação dos dois círculos foi feita oblíqua (39a) de modo a representarem o equador sideral e a eclíptica, sendo suas revoluções e a (aparente) revolução diurna dos, respectivamente, “céus estrelados”, órbita do sol e planetas do zodíaco. Devemos notar, cuidadosamente, que nada é dito acerca de “esferas” e, novamente, como usual no período clássico, a órbita de um corpo celeste é considerada giratória, como uma roda de carroça levando um corpo anexo. Já foi mencionada a órbita do cosmo e dos planetas, mas não a dos corpos que “giram” nelas; então somos, finalmente (36e), informados de que o Demiurgo produziu o mundo “na” alma [cósmica] e, então, ajustou-os; assim foi iniciada a “vida incessante e inteligente” do κόσμος enquanto organismo. O círculo do Idêntico e do Diferente, sendo primariamente “na alma” do mundo, possuem significado epistemológico e astronômico: suas revoluções, absolutamente uniformes, simbolizam – e talvez Timeu queira dizer que incorporam –, por um lado, a ciência do eterno e imutável e, por outro, a convicção (δόξα) acerca do temporal (37a-c) (e devemos, aqui, nos lembrar que o cosmo animado é racional).
Então, quis o Demiurgo que sua obra fosse o mais próxima possível do modelo original; mas, uma vez que fora impossível fê-la eterna como seu arquétipo (άίδιος), – característica proibida a qualquer sensível –, produziu algo tão eterno quanto pôde: uma “imagem móvel da eternidade”, o tempo. Este, enquanto forma do sensível, está para a eternidade semelhante ao número para a unidade e espelha, em seu movimento absolutamente uniforme, ainda que imperfeitamente, sua identidade com o eterno. Falamos do eterno como aquilo que “foi, é e será”, mas, a rigor, ele simplesmente “é”; não devemos dizer que “foi” ou “será”, pois esta terminologia vale apenas para o que “ocorre”. Nisto, dizemos que o passado é passado, o futuro está por vir e o que não existe é inexistente – mas tais expressões, que atribuem o ser ao que é mero “vir a ser” (e até ao que “não-é”), não é científica (37c-38b).[22] O caso é que a incorporação do modelo eterno nas coisas sensíveis acontece, incessantemente, no tempo (38c) e, para que sua passagem ocorra, é necessário haver corpos dotados de movimento[23] uniforme que lhe sirvam de medida; por isto Deus produziu o sol, os “planetas” e os dispôs em órbitas conforme a divisão do círculo do Diferente. A ordem planetária, a partir da Terra, é a seguinte: Lua, Sol, Héspero, “a estrela de Hermes” e, depois, os três planetas exteriores que Platão não nomeia. O Sol, Héspero[24] e a “estrela de Hermes”[25] possuem o mesmo período, mas os dois últimos são, de alguma forma, opostos ao primeiro, de modo que estão sempre alcançando e sendo alcançados por ele. Explicações detalhadas sobre o aparente comportamento dos outros astros exigiram mais tempo, mas o que importa reter é que suas velocidades diferem e cada um possui dois movimentos, um voltado ao círculo externo, do Idêntico (que gira de Leste para Oeste num período de 24 horas), e outro, oblíquo, de período mais longo (o “ano” planetário), de Oeste para Leste. Resulta que os movimentos visíveis se parecem com intrincadas “hélices” (έλικες). Os homens deveriam, mas não entendem que os componentes do movimento são perpetuamente uniformes, regulares, e são “tempo” tanto quanto um mês lunar ou ano solar. Há um grande período, o mais longo de todos, em cuja completude os planetas retornam às mesmas posições em relação ao céu e reciprocamente; “para que pudessem ver seu caminho” nestes circuitos, foi acesa uma grande luz (o sol) nos arredores da Terra (37c-39d).[26]
Esquema do Cosmo do Timeu no comentário de Calcídio
Deus criou, então, os vários seres animados que habitam as diferentes regiões do universo; isto foi feito reproduzindo as várias formas de organismos que a razão percebe sob a alcunha de “vivente”. Há quatro deles, cada qual habitando sua própria região: os deuses que vivem no céu, as criaturas aladas que habitam o ar, as criaturas aquáticas e os animais terrestres. Os “deuses” eram feitos próximos do fogo puro, sob forma esférica e distribuídos pelo céu que gira em torno do círculo do Idêntico, num movimento duplo (i.e., uma revolução diurna) e uma revolução axial própria (os “deuses” do Timeu são, portanto, as estrelas). Deduzimos, a partir de sua composição ígnea, que são luminescentes e, partindo do comparativo da menção de sua rotação axial com a ausência de qualquer descrição correspondente acerca dos planetas, podemos, quiçá, inferir que não supõe que os planetas rotacionem da mesma forma. Quanto à Terra, nossa mãe, o Demiurgo a criou enquanto “guardiã e artífice da noite e do dia, oscilando (ιλλομένην) no caminho em torno do eixo do universo” (τὴν περì τòν διά παντòϛ πόλον τεταμένον, 40c).[27] Descrições mais detalhadas, para além de sua irrelevância, exigiriam um modelo real (39e-40d).
Não é possível esmiuçar, completamente, os pormenores astronômicos do Timeu, mas podemos destacar alguns pontos. a) Não há referência alguma à famosa teoria de Eudoxo, concebida no seio da Academia, sobre os aparentes movimentos dos corpos celestes combinados com as rotações axiais de “esferas imaginárias” cujo centro é a Terra. Timeu nunca menciona “esferas”, mas, nos termos de Anaximandro, “círculos concebidos para girar em torno de seu centro. Embora se diga que cada um dos movimentos “estelares” é “controlado” pelo círculo do Idêntico (40b), a moção é atribuída à própria estrela e não a uma “esfera” externa – presumimos que isto ocorra por Timeu ser um astrônomo do séc.V a.C., especulando muitos anos antes da hipótese de Eudoxo. b) As estrelas não são, à moda aristotélica, feitas de material “celeste”; são de “fogo” da melhor qualidade, mas ainda assim o mesmo encontrado nos corpos em geral – incluso o nosso. Não é demais recordar que a distinção entre “matéria celeste” e “matéria elementar” não existia no imaginário científico grego até sua introdução, por Aristóteles, como conseqüência direta da reificação, em globos físicos, das esferas puramente matemáticas de Eudoxo. c) É notória, ainda, a completa ausência, em todo o escopo teórico, de quaisquer traços da astrologia que, mais tarde, infestará o imaginário helenístico.[28] O posto dos planetas é muito humilde: não são chamados de deuses, à maneira das estrelas, e a interpretação natural da expressão de Timeu é que não se supõe que possuam almas; servem meramente como relógios dirigidos pela alma do κόσμος – e isso é tudo. A observação de Timeu (40d) de que, embora os movimentos planetários sejam calculáveis, seus ocultamentos, reaparições e conjunções assustam “aqueles incapazes de operar uma soma” e, assim, supõem que sejam presságios; [aqui,] provavelmente intenta ridicularizar as superstições astrológicas orientais, e é divertido notar que a chacota “não conseguem fazer uma soma”, preservada em A e garantida pela versão de Cícero, foi supressa e nossas melhores MSS[29] e marcada para eliminação da diorthotes de A – no tempo dos copistas, supunha-se que apenas o astrônomo, capaz de realizar as somas, que se assusta com o que prevê! d) Quanto à teoria astronômica em si, concorda com a versão de Eudoxo quanto ao movimento planetário “duplo”, supondo que cada um “mova-se” através do zodíaco, de leste a oeste e, além disto, seja afetado pela revolução diurna no mesmo sentido, resultado no retorno diário quase à mesma posição ocupada vinte e quatro horas antes. Nisto, a lua, que resiste melhor à “revolução diurna”, é o mais rápido e Saturno como mais lento entre os planetas, visto que a primeira pode percorrer o Zodíaco em apenas um mês e o segundo leva cerca de trinta anos. Neste sentido, ambas as teorias contradizem uma versão mais antiga, remontada até Anaximandro, de que todas as revoluções possuem o mesmo sentido; caso procedesse, diríamos que a lua fica mais para trás e Saturno um pouco à frente em relação à revolução diurna. [30] Uma vez que a teoria da revolução dupla é explicitamente empregada no Mito de Er (República 617a), deduz-se que seja de origem pitagórica e, quiçá, tão antiga quanto o próprio Pitágoras.
e) As observações sobre a Terra sugerem uma questão muito mais importante: Timeu lhe atribui, ou não, algum movimento? Houve, em meados do século passado, uma forte controvérsia, entre Grote e Boeckh, acerca deste ponto: o primeiro encontrou, no diálogo, um movimento terreno, enquanto o segundo o negou. Num ponto, Boeckh estava certo: Timeu não pôde atribuir, como quis Grote, uma rotação axial com período de vinte e quatro horas à Terra, uma vez que contradiria a atribuição de tal período ao “círculo do Idêntico” em 39c. Se as estrelas se movessem em nosso entorno uma vez a cada vinte e quatro horas e a Terra girasse em sentido oposto no mesmo período, o intervalo entre os trânsitos sucessivos da mesma estrela sobre o meridiano ocorreria na metade do tempo e não poderíamos supor, feito Grote, que Platão tenha se esquecido de algo tão óbvio; por outro lado, embora quase todos os editores posteriores seguissem Boeckh, é igualmente claro que ele errou ao tornar a Terra do Timeu imóvel. Tal interpretação cai imediatamente após a restauração do texto correto da passagem τὴν πετι τὀν διά παντός, κτλ. O τὴν, aqui, pode significar apenas τὴν όδόν ou τὴν περίοδον, um acusativo do caminho percorrido. Ademais, o verbo ιλλουμένην é, notoriamente, um verbo de movimento e, acrescentando o testemunho de Aristóteles, que comenta esta passagem duas vezes, sua interpretação afirma alguma forma de movimento – e, uma vez que sequer apresenta argumentos que provem o ditame, supondo que não será contestado, creio que possamos crer que esta era a exegese aceita pela primeira geração da Academia.[31] Segue que Timeu considera que o centro do cosmo seja vazio e atribui à terra um movimento de “vai e vem” em torno deste. Tal movimento oscilatório deve, certamente, ser considerado linear e reto, e não circular ou cicloidal, como se fosse um pêndulo. Isto explica porque Aristóteles, discutindo o movimento da Terra em De Caelo, b13, distingue a perspectiva pitagórica – de algumas outras escolas não nomeadas –, de que esta gira “em torno do centro”, daquela to Timeu, de uma que se move “no centro”.
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Notas:
[1] Não posso concordar com aqueles que disputam as intenções de Platão em representar Timeu como pitagórico. Toda a sua doutrina pode ser rastreada em fontes pitagóricas, excerto o uso das quatro “raízes” e o teor empedocleano de sua fisiologia e medicina, ponto que tentei estabelecer noutro lugar. Quanto à combinação entre a matemática pitagórica e a biologia empedocleana, ver Burnet, E.G.Ph.³ 278-279, Greek Philosophy, Part I., 88-89. Procurei completar, alhures, as provas apresentadas. O nome não é dado como o de um lócrio feio Jâmblico, mas ele menciona Timeu entre os croniatas e, novamente (se for o mesmo homem) entre os parianos – antecedentes, nesta lista, dos lócrios. Parece que o nome foi deslocado por algum copista. O fato de Platão evitar o nome de Pitágoras é habitual; tem sem dúvida, algo que ver com a disputa, em torno de seu nome, introduzida pelos membros mais supersticiosos da ordem. [N.A.]
[2] É impossível imaginar tal encontro ocorrendo após o despache da armada ateniense para Siracusa. Como sabemos via Xenofonte e Diodoro, Hermócrates serviu contra Atenas, no Leste de 413 a.C até a Sicília, em 409 ou 408 a.C. Não podemos supor como provável que, neste intervalo, visitasse Atenas e se encontrasse amigavelmente com Sócrates – menos que ainda que, Sócrates o encontrasse, enquanto homem com carreira pela frente, junto de Timeu e Crítias, homens de vida feita. [N.A.]
[3] Isto é, de qualquer forma, sugerido no discurso proferido durante as panatanéias, que não ocorrem a menos de dois meses do dia mencionado na República (a festa de Bendis). Este fato nos impede de estabelecer uma ligação mais estreita entre os diálogos. [N.A.]
[4] René Guénon é um entre muitos que, por quaisquer razões, creram que Atlântida fosse um relato histórico real “escondido” sob forma de mito – cometendo o erro no início do capítulo 2 e A Crise do Mundo Moderno. O mesmo autor incorre em outros problemas, como misturar a opinião de Aristófanes, quando trata do mito do andrógino no Banquete, com uma tese platônica – novamente, tomando o ditame como símbolo advindo de uma suposta tradição primeva; esta confusão ocorre no capítulo 6 de O Simbolismo da Cruz, logo após afirmar, gratuitamente, a universalidade do símbolo do andrógino. [N.T.]
[5] Este ponto do Timeu prefigura a idéia de quadri-causalidade aristotélica: a chora (matéria caótica, disforme) é a causa material, as idéias são a causa formal, o Demiurgo a causa eficiente e o Bem e causa final. [N.T.]
[6] Estamos, aqui, muito próximos da idéia de paradigma expressa por Thomas Kuhn. [N.T.]
[7] A idéia de gravitação pode ser expressa com maior ou menor precisão tanto num escopo newtoniano quanto no da relatividade geral de Einstein. Neste caso, o fenômeno real representado por fórmulas que expressem melhor seu acontecer. Todavia, no caso matemático, a mesma fórmula, uma vez adquirida, expressa exatamente seu objeto. Isto ocorre, em Platão, por conta da estrutura matemática da idéia. [N.T.]
[8] O que Timeu quer dizer pode ser expresso, em termos modernos, tanto na idéia de falseabilidade popperiana quanto, mais precisamente, na noção de quasi-verdade postulada por Newton da Costa. O tema da imperfeição intrínseca do mundo sensível, frente à perfeição própria da idéia, pode ser expresso na onipresença do erro em qualquer medição real frente à idealidade das medidas “no papel”. [N.T.]
[9] Eis, exposta, o quão brusca é a diferença entre o Demiurgo platônico, um deus benevolente, com o demiurgo gnóstico, corruptela do Deus do Antigo Testamento e que, a depender do sistema em questão, aprisiona as almas numa matéria “má”. Neste ponto a cosmologia platônica não apenas rejeita o gnosticismo como é inversa à perspectiva gnóstica. [N.T.]
[10] Esta é a origem do provérbio Ordo ab Chao, que não tem natureza propriamente esotérica. Em Platão, todo aquele que realiza um trabalho ordenador, como o professor que ordena a alma do aluno em direção ao bem (periagogé) realiza um trabalho análogo ao do Demiurgo. [N.T.]
[11] O “criacionismo platônico” difere do criacionismo cristão devido ao fato de o Demiurgo não “criar”, apenas produzir o sensível mediante o estampilhamento da forma na matéria. O Deus cristão, por outro lado, cria tudo o que há sem necessidade de material prévio. [N.T.]
[12] Isto ocorre, em parte, pela causalidade da idéia, formal, diferir da causalidade do demiurgo, eficiente. [N.T.]
[13] “Disso resulta que Deus quer antecedentemente o bem e, consequentemente, o melhor.” G.W. Leibniz – Ensaios de Teodiceia Parte I §23. Também ocorre em Monadologia , 45. [N.T.]
[14] Como comenta Voegelin, em Ordem e História Volume III: Platão e Aristóteles p.258: “O agente que cria o cosmos é designado como o Demiurgo. Ele cria o cosmos por uma razão (aitia). A razão é a sua bondade. E como o bom é livre de ciúmes, ele deseja que todas as coisas sejam como ele mesmo. Essa bondade livre de ciúmes é o “princípio supremo [arche] que governa o vir-à-existência [genesis] e a ordem da existência [kosmos]” (29E). A substância divinamente criativa no Demiurgo é o nous; assim, a construção do cosmos à semelhança do deus torna-se uma obra do nous.” [N.T.]
[15] Para a interpretação aristotélica, ver Física 251b 17, Do Céu 280a 30 e Metafísica 1072a1. Uma vez que comenta o fato de, no diálogo, o tempo e o mundo principiarem juntos, infere-se que atente ao fato de Timeu atribuir um início à natureza em sentido corrente. As explicações de Xenócrates podem ser vistas em Plutarco, De Animae ProCreatione in Timaeo, 1013a-b, onde admite, neste ponto, que a Academia em geral seguiu a Xenócrates. [N.A.]
[16] Leis, X, 896e, onde é dito que, por haver desordem e “disteleologia” no mundo, a alma perfeitamente boa não pode ser a única existente; segue-se a existência de uma ou mais almas defeituosas. Nem Plutarco e nem Zeller tinham o direito de fabricar uma “alma cósmica maléfica” a partir desta rejeição direta do panteísmo. [N.A.]
[17] Física, 251b 17; Metafísica, 1072a1. [N.A.]
[18] O fogo é símbolo da visibilidade (feito ocorre quando dizemos que algo fica claro); a terra, de solidez. Segue que tudo aquilo que pode ser visto e tocado deve conter ambos os elementos. O problema de fundo consiste em encontrar um elemento que sirva de princípio unificador entre as propriedades das criaturas compostas pelos elementos fundamentais. A água e o ar cumprem esta função. Não devemos nos esquecer que na cosmologia antiga não se compreende os elementos da mesma forma que em seu correspondente moderno. [N.T.]
[19] Alusão ao famoso problema da “duplicação do cubo”, conectado, mais tarde, com uma anedota posterior a Platão. Seu significado, no Timeu, é o seguinte: nenhuma “média” racional pode ser inserida entre dois números inteiros quando cada um deles for o produto de três fatores primos e não mais. [N.A.]
[20] Adoto a exegese de Mt. Cornford, vista em Plato´s Cosmology. [N.A.]
[21] Para a construção desta escala – cujo compasso é de quatro oitavas e uma sexta – ver Timeu 35b-36b. Os editores e tradutoras modernos foram, a meu ver, levados ao erro por um exagero de Boeckh que, no caso, foi induzido ao erro devido a um problema no Timaeus Locrus acerca da soma dos tempos na progressão. O erro de Boeckh e seus seguidores pode ser demonstrado pelo fato de terem introduzido duas vezes, em sua escala, o intervalo chamado αποτομή, ou semitom maior. Como dito por Proclo, o silêncio de Timeu demonstra que ele não pretende admitir este intervalo, aceitando apenas o cuidadosamente descrito semitom menor, ou λεῖμμα. [N.A.]
[22] Timeu, vemos, não está autorizado a demonstrar qualquer noção dos resultados obtidos por Platão no Sofista. Isto ocorre, presume-se, por conta de seu discurso manter-se nos limites referentes à consciência de um pitagórico do século V a.C. Devemos nos lembrar, no decorrer do diálogo, que o orador não é Platão e que não é correto inferir que as afirmações do expositor sejam também suas. [N.A.]
[23] Isto ocorre pelo tempo, na cosmologia antiga, não ser uma dimensão, correlata ao espaço, sob cujo escopo alocamos entidades – concepção derivada, a saber, da geometria analítica. Para os antigos, o tempo é medida do movimento e não pode haver tempo se não houver objetos móveis. O mesmo ocorre com o espaço: em vez de ser tratado como dimensão vazia onde alocamos corpos, o espaço é aquele existente entre objetos. [N.T.]
[24] Vênus [N.T.]
[25] Mercúrio [N.T.]
[26] I.e., todos os planetas refletem a luz solar, feito Empédocles inferiu no caso da Lua. [N.A.]
[27] Taylor referencia Timeu 40b; entretanto, nas versões críticas atuais, a referência correta é Timeu 40c. [N.T.]
[28] A infecção astrológica no ecúmeno helênico, resultante da destruição das várias sociedades cosmológicas devido às guerras alexandrinas, possui análogo no Renascimento; da queda da cosmovisão medieval pelas mãos da revolução científica, foi aberto um rombo na forma como as pessoas compreendiam o cosmo. Esta analogia, que é a chave interpretativa da idéia e relação entre gnosticismo, existencialismo e niilismo, exposta por Hans Jonas em seu Gnostic Religion, é também, em parte, exposta por Olavo de Carvalho em sua apostila Introdução à Paralaxe Cognitiva (p.5ss) e comentada por Ronald Robson em seu Conhecimento por Presença p.466, de onde vem o trecho: “O momento que marca o surgimento da ciência moderna é o de maior difusão das astrologia ao longo de toda a história européia. A ruptura parcial com a cosmovisão cristã atirou intelectuais, pregadores e nobres à busca novos meios de guiamento para a vida; isso afetou muitos protestantes, que na astrologia e nos simbolismos correlatos buscavam um meio de forjar uma nova cosmovisão que lhes permitisse ignorar a igreja.” [N.T.]
[29] Podemos conferir o trecho, em inglês, em Plato in Twelve Volumes, Vol. 9 translated by W.R.M. Lamb. Cambridge, MA, Harvard University Press; London, William Heinemann Ltd. 1925; em grego, Encontramos em Platonis Opera, ed. John Burnet. Oxford University Press. 1903. [N.T.]
[30] Tudo isso está em Burnet, E.G. Ph.³ 110-111 [N.A.]
[31] A interpretação de Aristóteles está em Do Céu b293b-30ff e em 296a 26. O ponto importante é que a gramática do Timeu exige um verbo de movimento, algo que Aristóteles explica acrescentando και κινεισθαι. Parece incrível que ele tenha se enganado, ou dito de mala fide algo assim. Ver Burnet, Greek Philosophy, Part l., 348 e notas. O resumo de D.L. (III. 75) também atribui um movimento à terra, embora erre quanto à sua natureza (κινεῖσυἁι περἰ τὸ μέσον). [N.A.]
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