Por Edward Feser
Tradução de PasX
Notas e comentários de Helkein Filosofia
Tenho enfatizado com alguma frequência que o motivo pelo qual a consciência se apresenta como um problema tão persistente para o materialismo tem menos que ver com ela mesma do que com a concepção simplória de matéria que herdamos da filosofia e da ciência dos primórdios da modernidade. Barry Dainton defende a mesma tese em seu livro Self. Por exemplo, ele escreve:
A convicção cartesiana de que a consciência não poderia ser física enraíza-se numa concepção rigorosa acerca da natureza fundamental das coisas materiais que endossada por ele [Descartes] e por outros revolucionários científicos. Um dos principais avanços da Revolução Científica foi a adoção de uma concepção atomista e mecanicista do mundo físico de moro que as formas escolásticas de animação [animating scholastic forms] foram exclusas do mundo físico, assim como todas as propriedades fenomênicas encontradas em nossa experiência ordinária. De acordo com a nova cosmovisão científica, as coisas físicas possuiriam apenas propriedades “primárias” como massa, movimento, carga, formato e assim por diante, destituídas de propriedades experienciais como cor, som, calor ou dor.
Caso Descartes tenha sido o primeiro a percebê-lo, se o mundo físico for de fato da maneira descrita pela nova ciência, as experiências dos sujeitos conscientes foram banidas dele e, neste caso, o dualismo – de alguma forma – parece ser inevitável.[1] (p. 153)
Dainton prossegue e observa que, ao mesmo tempo em que a física contemporânea não atribui à matéria exatamente a mesma lista de propriedades atribuídas a ela por Descartes e outros modernos, ainda assim põe de fora de seu escopo qualquer propriedade experiencial. Portanto, o materialismo contemporâneo enfrenta, diante da consciência, a mesma dificuldade enfrentada pelos materialistas do tempo de Descartes. Dainton conclui:
Então o relacionamento entre o mundo físico e a consciência permanece profundamente enigmático. Foi dito, de fato e repetidas vezes, que este é o maior de todos os mistérios que nos restaram (embora, talvez, aqueles que operam nas fronteiras da cosmologia e da física de partículas possam querer discordar). (pp. 158-9)
Isso salta aos olhos – ou ao menos salta aos meus. Segundo Dainton, os três maiores mistérios enfrentados pela ciência são:
- O relacionamento entre o mundo físico e a consciência
- As fronteiras da cosmologia
- As fronteiras da física de partículas
Eu expandiria a lista, mas fiquemos, por enquanto, com a de Dainton. Todos os três mistérios, eu diria, são uma consequência da troca do aristotelismo escolástico pelo mecanicismo naturalista. Mas como assim?
A conquista da abundância
A concepção aristotélico-escolástica acerca da matéria é muito mais rica e pluralista do que a oferecida pela cosmovisão mecanicista e possui a vantagem de estar de acordo com o senso comum, ainda que o sistematize e lhe adicione algumas noções jamais sonhadas pelo cidadão médio. [A concepção postula que] é necessário que natureza consista em, como roga o senso comum, inúmeras e distintas substâncias físicas dotadas de [como diz o senso comum] qualidades como a cor; sustenta-se ainda que existam vários tipos de substâncias físicas irredutivelmente diferentes e, particularmente, que objetos inanimados, seres vivos não-sencientes e seres vivos sencientes sejam irredutivelmente distintos ainda estejam inclusos num mesmo gênero [materialidade]. Para que suas concepções façam sentido, o aristotelismo escolástico emprega noções como ato e potência, forma substancial e matéria prima, causas eficiente e final, substância e atributos, essência e acidentes próprios, causalidade imanente versus transeunte e assim por diante. Argumenta-se ainda que nós simplesmente não podemos fazer jus ao mundo físico e real da experiência cotidiana, em toda a sua riqueza e diversidade, sem que reconheçamos essa estrutura conceitual enquanto o esqueleto da ordem natural.
O que o mecanicismo fez foi drenar e aplanar toda essa riqueza, substituindo o esqueleto orgânico por uma armação de aço, como se fosse um taxidermista, num processo que negou a distinção entre as coisas físicas: todos os objetos materiais se tornaram, assim, variantes da mesma coisa, a saber, de partículas em movimento, sem cor, som, cheiro ou gosto mas dotadas de naturezas e interações descritíveis em termos puramente matemáticos. Suas diferenças tornaram-se tão superficiais e quiçá tão ilusórias quanto suas diferenças típicas. Neste sentido, todo o mundo físico passa a ser visto como um vasto caroço que contém objetos internos enquanto modos de uma mesma substância ou, alternativamente, como um vasto mar de partículas englobando objetos aparentemente diversos como se fossem suas ondas. O senso comum diz que uma pedra, uma árvore e um cão são objetos claramente distintos e pertencentes a espécies distintas, mas para o mecanicismos eles são apenas variantes locais de um mesmo tipo num mesmo sistema – redemoinhos diversos dum mesmo mar de átomos, estruturas geométricas dispostas num mesmo espaço cartesiano coordenado – ou o que mais se quiser.
O filósofo da ciência Paul Feyeraband tem caracterizado, apropriadamente, tal concepção como a “conquista da abundância” da ciência moderna na medida em que substitui a “riqueza do ser” por uma “abstração”, um modelo matemático em que tudo pode ser encaixado, redefinido, desconversado ou simplesmente eliminado: cor, som, gosto, cheiro, calor, frio, dor e prazer são todos removidos da natureza e realocados no sujeito consciente e, caso este sujeito seja identificado como algo de material, a realidade dessas qualidades será efetivamente negada, seja implícita (em versões reducionistas de materialismo) ou explicitamente (em versões eliminativistas). A abstração mencionada também reduz todas as mudanças ao movimento local e este, por sua vez, a certa sucessão de pontos num espaço abstrato e coordenado; a mudança e o tempo (que, para o aristotelismo, é a medida da mudança) desaparecem, juntos, da realidade.
Uma nova metafísica, ainda que seja velha metafísica
Feyerabend, ao rastrear a tendência da tentativa de substituir a riqueza do mundo natural por uma abstração estática, chega a Parmênides; e para aqueles que puderem ver, vive, hoje, em cada físico que creia seriamente numa concepção do universo como um bloco quadridimensional ou na noção de que uma função de onda universal possa abarcar a completude do mundo natural, um Parmênides.[2] Tais construtos não são mais ou menos fantásticos em relação à realidade concreta do que o monismo parmenídico, mas isso não quer dizer que sejam totalmente falsos. Eles, de fato, abarcam a realidade, ainda que de maneira parcial e distorcida como é natural que o seja quando nos referimos a abstrações e, precisamente por não serem tão abstratos como o foi o monismo parmenídico, que são fonte do sucesso tecnológico e preditivo que fornece a força retórica (ainda não lógica) dos argumentos daqueles que lhes fazem uso para nos conceber uma imagem metafísica da completude da natureza.
De volta à listagem daintoniana, ele entende por “fronteiras da cosmologia” o estado mais avançado de uma ciência que tem sido definida, nos tempos modernos, como relatividade geral; por outro lado, entende por “fronteiras da física de partículas” o estado mais avançado da ciência, que nos tempos modernos, tem sido definida como mecânica quântica. A relatividade geral, ainda que de forma meramente aproximativa, nos fornece um modelo quasi-parmenídico acerca da natureza na medida em que é possível sugerir que descrevamo-la como uma estrutura puramente atualizada e privada de quaisquer potencialidades. Por outro lado, a mecânica quântica, novamente de forma meramente aproximativa, nos fornece um modelo quasi-heraclítico na medida em que é possível sugerir descrevê-la como uma estrutura puramente potencial e desprovida de qualquer ato – ou melhor, assim o são algumas das interpretações da mecânica quântica, visto que a versão dos “muitos mundos” de Everett atualiza todas as suas potencialidades a transforma em uma variante quasi-parmenídica. Por outro lado, a realidade material verdadeira e concreta consiste, de fato, num misto de ato e de potência; logo, caso tentemos representar sua completude em termos de atos enquanto privamo-la de suas potências ou de potências privando-a de seus atos, estaremos fadados a nos deparar com vários enigmas e paradoxos – em especial aqueles próprios de cosmovisões parmenídicas ou heraclíticas. Uma cosmovisão que comprima toda a realidade em termos atuais será, naturalmente, muito difícil de se harmonizar com uma cosmovisão que comprima a realidade em termos potenciais. Eis, a meu ver, a razão metafísica capital acerca do motivo de a fronteira entre a física de partículas e da cosmologia permanecer misteriosa e, como dito por Dainton, é por isto que a relatividade geral e a mecânica quântica mostram-se tão difíceis de se harmonizar. Caso Aristóteles retornasse dos mortos e visse todo esse neo-parmenidismo e neo-heraclitismo, talvez diria, enquanto esfrega as mãos, algo assim: “Bom… e o que vocês esperavam?”
Empalhando o cadáver
Dainton foca no primeiro mistério, a saber, da relação entre a consciência e o mundo físico. Ele comenta que há duas maneiras de lidar com ele sem necessidade de compromissar-se com o materialismo e que têm ganho relevância na filosofia recente: o dualismo naturalista e o monismo russelliano (batizado assim em homenagem a Bertrand Russell), ambas aceitando a concepção mecanicista da natureza ao mesmo tempo em que tentam incorporar em seu escopo, ainda que de diversos modos, propriedades fenomênicas como o som ou a cor, características que hoje em dia são referidas como “qualia” da experiência consciente – de forma que a questão é normalmente apresentada como o problema do encaixe dos qualia no mundo material.
O dualismo naturalista defende que os qualia não são físicos (e por isso é um dualismo) mas que estão correlacionados a certos atributos físicos do cérebro em virtude de leis da natureza das quais ainda não tomamos conhecimento (e por isso é um naturalismo). Já o monismo russelliano defende que a física nos fornece apenas uma descrição matemática da natureza mas não da estrutura intrínseca das coisas que ela contém (e este é componente russelliano da cosmovisão), sugerindo, por conseguinte, que os qualia conhecidos por nós, via introspecção, como advindos de nossas experiências conscientes não apenas nos fornecem algum conhecimento da natureza intrínseca da matéria que compõe nossos cérebro mas também um modelo universal para a totalidade da matéria (e eis o componente monista). O monismo russelliano por vezes é acusado de levar a algum tipo de pampsiquismo, e isso advém da concepção de que dado os qualia são mentais e dita cosmovisão os considera como modelo universal para a natureza intrínseca da matéria, então segue-se que toda entidade material possui propriedades mentais – e que a mente está em todos os lugares. Por mais que ambas as visões sejam superiores ao materialismo na medida em que reconhecem, francamente, a realidade a irredutibilidade da consciência, em última análise, são, entretanto, antes variantes do mesmo erro mecanicista do que sua correção; elas antes vestem o cadáver da natureza interpretada pelo mecanicismo do que levam a cabo um processo de ressurreição.
Mais uma vez, o senso comum e o aristotelismo escolástico consideram a matéria como sendo mais ou menos da forma como ela nos aparece – reparemos, com cuidado, que isso não serve para negar que a ciência revele que há mais na matéria do que o senso comum ou a filosofia aristotélica sabem, mas serve meramente para que insistamos que a ciência não mostra que há menos na matéria do que o sabido pela filosofia aristotélica e pelo senso comum. Uma das implicações disto é que a consciência, de fato, reside em animais não-humanos exatamente da mesma forma como o senso comum supõe que o seja, e isso não o é por eles possuírem alguma propriedade não física, pois não possuem, mas por eles simplesmente serem de um tipo diferente de matéria das coisas inanimadas. Nem toda matéria é igual, ao contrário do pressuposto pelo mecanicismo, e é por isso que Descartes defendeu, com certa notoriedade, que os animais estão privados da consciência. Visto que ele estava comprometido com a – simplória – concepção mecanicista de matéria, é forçoso que considerasse que os animais não são feitos de nada mais do que dado tipo de matéria e conclui – de forma bastante razoável, caso aceitemos tal concepção – que lhes falta a consciência. O único lugar onde a consciência pode estar é, segundo o cartesianismo, no res cogitans ou substância pensante – e como animais não possuem intelecto então também não possuem res cogitans.
É também por isso que, na filosofia da mente contemporânea não-materialista, geralmente supõe-se que atribuir qualia a animais não-humanos – como morcegos, segundo o famoso exemplo de Thomas Nagel – é atribuí-los qualidade não físicas. Isto faz sentido apenas àqueles que operam segundo um modelo essencialmente mecanicista mas, por outro lado, caso se entenda a matéria segundo o ponto de vista do senso comum e do aristotelismo, isso não fará qualquer sentido; animais não-humanos possuem qualia e são conscientes mas isso não implica em qualquer coisa não-material neles: implica apenas que a matéria não é não simplória quanto uma concepção matemática e puramente quantitativa como a mecanicista supõe que o seja. Entretanto, nenhuma das duas fornece quaisquer razões para que creiamos (contra o monismo russelliano) que toda matéria possua qualia. A matéria animal o possui, mas a que compõe as pedras, o cobre e a água não. É possível ainda supor, por outro lado que partindo de uma concepção mecanicista e percebemos que a remoção dos qualia da natureza é um problema e, então, tentássemos recolocá-los na matéria – por vezes em lugares indevidos. É algo análogo a matar um animal, estripar seu corpo e, então, após arrepender-se, enfiar de volta as tripas de forma bizarra – recolocando os rins no lugar dos olhos, os intestinos na garganta, os músculos das pernas no lugar dos músculos dos braços e assim por diante. A abordagem correta quando se quer um animal em bom estado é começar por não matá-lo da mesma forma que a melhor abordagem caso se queira uma concepção segura acerca dos qualia é começar não partindo do mecanicismo.
Se o monismo Russelliano assemelha-se ao preencher um cadáver, o dualismo naturalista é como pendurar os órgãos fora do corpo, ao melhor estilo Ed Gein. Assim o é pois o dualismo naturalista aceita, essencialmente, o mecanicismo e, após arrepender-se da exclusão dos qualia, simplesmente os anexa na matéria pelo lado de fora em vez de simplesmente ver que, em primeiro lugar, eles não deveriam ter sido expulsos. O mecanicismo é um erro puro e simples, ao menos enquanto metafísica ou filosofia da natureza; assim como outras abstrações ele possui sua utilidade metodológica mas é antes uma ferramenta do que uma representação verdadeira do mundo natural e concreto em toda a sua riqueza e diversidade. Fingir o contrário é como confundir um cadáver com um ser vivo e, tentar remediar as coisas assim como o dualismo naturalista e o monismo russelliano fazem, é algo como um exercício de taxidermia ou de profanação de cadáveres. A verdadeira solução do problema de como relacionar a consciência com o mundo físico é ressuscitar o senso comum e a concepção aristotélica de natureza.
Ed Gein foi um assassino que estripava suas vítimas e usava as peles e outros componentes para fazer ou decorar utensílios domésticos. Inspirou filmes como O Massacre da Serra Elétrica.
Atente que falo aqui apenas do tipo de consciência que compartilhamos com os animais não-humanos; as capacidade intelectuais características do homem consistem numa história diferente: elas são incorpóreas. Mas eis uma questão para outra hora. O leitor interessado em pesquisar de maneira mais aprofundada as questões discutidas aqui deve considerar-se exortado a consultar o meu livro A Vingança de Aristóteles: Os Fundamentos Metafísicos das Ciências Físicas e Biológicas.
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Bibliografia Citada e/ou recomendada:
- Edward Feser — A última superstição: Uma refutação do neoateísmo
- Edward Feser — Filosofia da Mente: Um Guia para Iniciantes
- Edward Feser — Aristotle’s Revenge: The Metaphysical Foundations of Physical and Biological Science
- Edward Feser — Scholastic Metaphysics: A Contemporary Introduction
- Edward Feser — All One in Christ: A Catholic Critique of Racism and Critical Race Theory
- Paul K. Feyerabend — Ciência, um Monstro: Lições trentinas
- Paul K. Feyerabend — Contra o Método
- Paul K. Feyerabend — Adeus à Razão
- Paul K. Feyerabend — A Ciência em uma Sociedade Livre
Notas:
[1] O dualismo que nasce em Descartes, chamado de dualismo substancial ou moderno, advém da cisão abismal entre a res cogitans e a res extensa. É uma concepção filosófica especificamente moderna na medida em que a concepção de matéria bruta e todo o framework que permite que a pensemos desta forma é algo totalmente estranho aos antigos. Postas as duas substâncias enquanto mônadas, sistemas fechados postos em reinos separados, postula-se o problema da interação entre a mente e o corpo. A partir disto podemos perceber que a acusação normalmente voltada a Platão, a saber, aquela que o aponta como aquele que criou uma cisão entre o mundo físico e o mundo não-físico, deveria ser antes voltada a Descartes. Daqui também podemos entender o motivo de Leibniz ter tentado resolver o problema da interação a partir de uma harmonia pré-estabelecida, solução que, creio eu, tenha sido corretamente acusada por Kant de mero ad-hoc ineficiente para que se sustentasse algo que, fundamentalmente, não possui salvação. Para mais informações recomenda-se a leitura do livro de Edward Feser, Filosofia da Mente: Um Guia para Iniciantes [N.E.]
[2] O ser parmenídico não se tratava de um conceito abstrato, mas de um símbolo compacto referente às coisas que são; por outro lado, em Zenão, as coisas passaram a degringolar. [N.E.]
Do mesmo autor:
Nietzsche, Cristo e o Sofrimento
O Pecado do Juízo Precipitado Segundo Sto. Tomás de Aquino
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