Por Edward Feser
Tradução de Flamel Heilige
Notas por Helkein Filosofia
Muitos, ainda hoje, operam sob a ilusão de que a realidade do sofrimento consiste numa dificuldade para o cristianismo, como se a doutrina cristã levasse seus fiéis à espera de pouco ou nenhum sofrimento, de forma que seus aderentes se escandalizem perante sua realidade [a do sofrimento]. Como discuti em artigos anteriores, eis algo contrário à verdade, visto que a fé católica ensina que o sofrimento é consequência inexorável do pecado original e do pecado atual cometido no passado, sendo parte do longo e doloroso processo de santificação e superação de hábitos, pensamentos e ações pecaminosas. É inevitável que os cristãos devam enfrentar certa perseguição enquanto pregam o Evangelho e condenam a maldade do mundo; um castigo inevitável que devemos abraçar com espírito penitencial pois, através do sofrimento, quitamos tanto nossa própria dívida temporal quanto a de outros pelos quais podemos oferecer nosso sofrimento. Por isso unimo-nos estreitamente à Paixão de Cristo e, assim, a extensão e a profundidade do sofrimento humano antes confirmam do que discordam das reivindicações do cristianismo.
Como proposto em artigos anteriores, a perplexidade perante [a realidade do] o sofrimento é antes a causa do que a consequência do que a moderna apostasia do Ocidente em relação à fé católica, e bem reflete a lenta decadência de uma civilização moribunda e habituada à abundância e que já não compreende bem superior algum para além das facilidades desta vida e em prol do qual poderíamos abraçar o sofrimento. Não são apenas os apóstatas que manifestam tal cegueira: é uma a espécie de apodrecimento espiritual que invadiu profundamente a igreja e aflige mesmo aqueles que são, de uma forma ou outra, leais à ortodoxia e à moralidade cristã. Nossa relutância em aceitar o sofrimento não passa da garantia de mais sofrimento.
Sobre isto, assim como ocorre com outros temas, o grande Sto. Agostinho enxerga claramente e nos aponta com franqueza onde nós, modernos, nos iludimos e nos cegamos. Nos capítulos 8-10 do livro I de A Cidade de Deus, [Sto. Agostinho] discute como e por qual razão o mal e o sofrimento recaem, nesta vida, tanto sobre os bons quanto sobre os maus, e na medida em que nossa própria época degenera numa desordem moral, política, social e econômica cada vez mais profunda, faríamos bem em meditar sobre seu estimulante e corajoso ensinamento. Caso os fiéis creiam que serão ou deverão ser poupados dos castigos aos pecados da civilização, segue-se que estão gravemente enganados, pois é antes provável que as coisas piorem para todos nós, mesmo que seja apenas para que a providência divina retire algo de melhor da profundeza do caos.
No capítulo 8 [de A Cidade de Deus], Sto. Agostinho observa que, ainda que haja, nesta vida, por um lado, alguma conexão entre a maldade e o sofrimento e, por outro, entre retidão e bênçãos, a situação está bem longe de ser justa. Os ímpios freqüentemente desfrutam de muitas benesses enquanto os justos caem em desgraça, e a única certeza é que a justiça será satisfeita apenas na vida após a morte, quando os bons serão recompensados com a felicidade eterna e os maus com o tormento correspondente. No entanto, escreve Sto. Agostinho, Deus quis “que estes bens e males temporais fossem comuns a todos, para que nem sejam procurados ansiosamente os bens que vemos também na posse dos maus, nem sejam evitados, como qualquer coisa de vergonhoso, os males e que também padecem frequentemente os bons.”[1]
Quando nos perguntamos o motivo de Deus permitir que soframos, apesar de nossos esforços para obedecê-lo, deve-se ter em mente que parte disso é necessário para nossa salvação, pois caso busquemos a justiça apenas quando esta for fácil, nossa virtude será superficial e perecível. Ademais, caso a conexão entre o comportamento virtuoso e as bênçãos materiais for muito estreita, é provável que busquemos a primeira por causa da segunda. Não poderemos alcançar a felicidade do mundo vindouro caso nos apeguemos em demasia ao mundo atual e, neste sentido, o sofrimento serve de prevenção. Para além do dito, Sto. Agostinho comenta que a diferença entre um homem verdadeiramente justo e um perverso é, muitas vezes, exposta, precisamente, por conta do sofrimento:
Lá porque é assim – que os bons e maus sofrem as mesmas provas- nem por isso vamos negar a distinção entre uns e outros porque distinto não é o que uns e outros sofrem. Mantém-se, na realidade, a diferença dos que sofrem, mesmo na semelhança dos sofrimentos. Ainda que estejam a sofrer do mesmo tormento, a virtude e o vício não se identificam. Assim, sob um só fogo, o ouro rebrilha e a palha fumega; sob o mesmo trilho, a palha tritura-se e o grão limpa-se; assim como a água ruça não se confunde com o azeite embora saia m espremidos da mesma prensa, – o único e mesmo golpe, caindo sobre os bons, põe- nos à prova, purifica-os, afina-os e condena, arrasa, ex termina os maus. Daí que, na mesma aflição: – os maus abominam a Deus e blasfemam, e os bons dirigem- Lhe as suas súplicas e louvam-No. O que mais interessa não é o que se sofre, mas como o sofre cada um. Agitados com o mesmo movimento – a imundícia exala um fedor insuportável, e o unguento, um suave perfume.[2]
Até o momento, Sto. Agostinho tratou do tema do sofrimento imerecido, mas há ainda aquele merecido mesmo pelo homem bom na medida em que este o atrai para si, como explicado no capítulo 9. Isso pode ocorrer de várias maneira, e a primeira causa é que, evidentemente, ninguém é perfeito e, mesmo aqueles que evitam as violações mais explícitas da moralidade cristã ainda exibem vários tipos de falhas morais:
Em primeiro lugar, ao pensarem com humildade nos pecados por causa dos quais Deus, indignado, encheu o mundo de tamanhas calamidades, embora estejam longe dos facínoras, dos dissolutos e dos ímpios, não se julgarão todavia tão isentos de faltas que se considerem a si próprios livres de sofrerem algum mal temporal por sua causa. Efetivamente, além do caso de que todo o homem, por mais louvável que seja a sua vida, por vezes cede à concupiscência da carne e, sem cair em crimes monstruosos, nem no abismo da devassidão, nem na abominação da impiedade, deixa-se todavia arrastar para certos pecados, quer raras vezes quer, quando são mais leves, com mais frequência…[3]
Há ainda a atitude do homem bom para com aqueles que levam vidas perversas. Há muitos que desaprovam a maldade do perverso e nunca praticariam eles mesmos tais iniqüidades, mas, por covardia, abstêm-se de criticá-las quando praticadas por outros e, acerca disto, Sto. Agostinho possui algumas observações especialmente relevantes para nosso tempo; vale a pena citá-lo extensivamente:
Deus esmagou a terra como já ameaçadoramente tinha predito? Quem é que vive com tais pessoas como deveria viver? A maior parte das vezes, quando devíamos adverti-las, instruí-las, e por vezes mesmo repreendê-las e corrigi-las, dissimulamos culposamente, quer porque nos custa o esforço, quer porque receamos ofendê-las, quer porque procuramos evitar inimizades que podem tornar-se um estorvo ou até um dano para os bens temporais que a nossa cobiça procura alcançar ou que a nossa fraqueza receia perder. E assim, embora a vida dos maus desagrade aos bons e por isso estes não cheguem a cair na condenação que os espera após esta vida, – todavia, porque são indulgentes para com os seus condenáveis pecados, porque os temem e caem nos seus próprios pecados, embora leves e veniais, – justamente são atingidos pelo mesmo flagelo temporal, sem todavia sofrerem as penas eternas. É justo, pois, que sintam a amargura desta vida quando a divindade justamente com aqueles os castiga – pois foi por amor das doçuras desta vida que eles não quiseram causar amargura aos que pecavam.[4]
Aqui Sto. Agostinho ensina que não basta que nos abstenhamos do pecado do homem perverso; o cristão deve também criticá-lo por sua maldade a fim de fazer com que ele se arrependa. Sto. Agostinho reconhece que pode haver ocasiões em que é possível justificar o adiamento de tal crítica até o momento oportuno ou até mesmo abster-se dela por um medo razoável de fazer mais mal do que bem. Entretanto, ele também ensina que não é justificável abster-se da crítica devido à sua dificuldade ou por temor de ofender, perder amigos ou por não queremos arriscar a perda de status ou outros bens mundanos. Isso se dá porque os ímpios correm risco de serem condenados caso não se arrependam, e nós nos “cegamos perversamente” quando fugimos do nosso dever de incentivá-los ao arrependimento. Mesmo que evitemos a condenação, sofreremos junto deles quando a providência divina castigar-nos neste mundo (com desordem social e econômica, desastres naturais e eventos similares).
Sto. Agostinho destaca, ademais, que Deus permite que os bons sofram ao lado dos maus, em parte, para afastá-los do apego a este mundo, visto que sua relutância em criticar os ímpios advém enquanto sintoma desse apego.
Mas há culpa quando as pessoas, que vivem de maneira diferente dos maus e aborrecem a sua conduta, são todavia indulgentes para com os pecados dos outros quando os deviam corrigir e exprobar. Têm o cuidado de os não ofenderem com medo de por eles serem lesados nos bens de que usam os bons, sem dúvida legítima e honesta mente, mas mais avidamente do que convinha aos que peregrinam neste mundo e mostram a esperança da pátria superna.[5]
Sto. Agostinho é especialmente severo com cristãos que, (tal qual o clero) não tendo obrigações familiares e afins para se preocupar, ainda assim evitam seu dever de condenar a iniqüidade que os cerca:
E, embora não os temam tanto que cheguem a praticar ações idênticas, cedendo a qualquer das suas ameaças ou perversidades –, evitam porém censurar os desmandos que não cometem como eles, quando a sua censura pode ria talvez corrigir alguns. Receiam pôr em perigo e perder a sua integridade e reputação no caso de falharem no seu intento – e isto, não porque as considerem indispensáveis para o serviço de ensinar os demais, mas sim em consequência daquela doentia fraqueza em que caem a língua e os juízos humanos quando se comprazem nas adulações e temem a opinião pública, os tormentos da carne ou da morte, isto é, por causa dos grilhões de certas paixões e não por causa do dever de caridade.[6]
A aplicação do texto aos dias é óbvia. Considerando os pecados sexuais, nossa sociedade mergulhou, sem dúvida, neles mais profundamente do que qualquer outra. A fim de evitar a crítica severa desses pecados ou sequer falar sobre eles, muitos cristãos conservadores mentem para si mesmos acerca de sua gravidade, fingindo que são leves quando, na realidade e como sempre insistido pela tradição, são extremamente graves. Tais pecados têm, entre suas diversas consequências: o [o ainda mais grave] homicídio sob a forma de aborto, a orfandade, a pobreza e o colapso social enquanto sequelas; o vício em pornografia e suas conseqüências, assim como os problemas conjugais; a solidão e a insegurança econômica das mulheres que, em sua juventude, foram utilizadas pelos homens enquanto objetos de prazer e, mais tarde, têm dificuldade em encontrar maridos; e, por fim, um colapso geral na racionalidade que, agora, atinge um ponto em que até mesmo a diferença objetiva entre homens e mulheres foi estridentemente negada em prol de uma ideologia de gênero que possibilita a mutilação do corpos de crianças.
Ademais [e piorando a situação], muitos cristãos enganam a si mesmos crendo que o amor ou a compaixão pelo pecador os impede de condenar seus pecados quando, de fato, tendo em vista a gravidade dos danos causados por tais transgressões e a dificuldade que muitos têm para se livrar delas, abster-se de alertá-los contra tais erros é precisamente o oposto de alguma compaixão. Entretanto, nossa era é tão viciada em tais iniqüidades que, de todos os pecados, os sexuais são aqueles cuja crítica coloca o crítico em maior perigo: tendo em vista que as pessoas temem por suas reputações e até por seus meios de subsistência, segundo o dito agostiniano, o fazem “por causa dos grilhões de certas paixões e não por causa do dever de caridade”. A conseqüência disto, ensina Sto. Agostinho, é que muitos pecadores que poderiam ter-se arrependido caso tivessem sido alertados, acabarão condenados, e aqueles que falharam por não avisá-los sofrerão pelo menos punições temporais junto deles por conta de seu apego em demasia aos confortos desta vida para que ajudassem os outros a se prepararem para a próxima. Sto. Agostinho escreve:
Parece-me pois que não é pequena a razão por que são castigados os bons juntamente com os maus quando apraz a Deus castigar, mesmo com penas temporais, os maus hábitos. Junto s são castigados, não porque juntos levem má vida, mas porque juntos amam a vida temporal, não igualmente mas juntamente. Os bons deviam desprezá-la para que os outros, repreendidos e corrigidos, alcanças sem a vida eterna. E, se eles se recusam a acompanhá-los para a conseguirem, deveriam suportá-los, como inimigos, e amá-los porque, enquanto vivem, nunca se sabe se não se decidirão a mudar para melhor.
Neste caso, têm responsabilidade não já igual mas muito mais grave aqueles de que fala o profeta: Perecerá por sua culpa, mas do seu sangue pedirei contas à sentinela. (Ez. 33:6)
Sto. Agostinho insiste, no capítulo 10, sobre o tema de que o tesouro cristão deve ser encontrado antes no céu do que nos bens mundanos e que, portanto, sofrimento algum poderá prejudicá-lo:
Também houve aqueles que, não possuindo bens alguns para entregarem, sofreram torturas por neles se não acreditar. Também desejavam talvez possuir: eram pobres mas não por vontade santa. Neles se verificou que não foi a posse mas sim a paixão das riquezas o que lhes valeu tais torturas. Se alguns, resolvidos a levarem uma vida mais perfeita, não tinham escondidos nem ouro nem prata, – ignoro se lhes sucedeu algo de parecido, isto é, serem torturados até neles acreditarem. Ainda mesmo que tal tenha acontecido, o que confessava a santa pobreza no meio daqueles tormentos, evidentemente que estava a confessar Cristo. E portanto, mesmo que não tenha conseguido que os inimigos nele acreditassem, conseguiu sim, com os seus tormentos, uma celestial recompensa como confessor da santa pobreza.[7]
Como indicado nesta última observação, a perda das bênçãos mundanas – bens materiais, reputação, amizades, saúde, subsistência e até mesmo a própria vida – é permitida por Deus para que possamos aprender a desapegar-nos dessas coisas em prol da visão beatífica – cujo valor a tudo supera. Deus, portanto, permite o sofrimento não apesar de sua bondade mas por causa dela. Como afirmado por Sto. Agostinho, não há “mal algum que ocorra aos fiéis piedosos que não possa ser aproveitado”, de modo que, tal qual São Paulo, “Ora nós sabemos que todas as coisas concorrem para o bem daqueles que amam a Deus” (Rm. 8:28).
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Notas:
Trechos de Sto. Agostinho retirados de A Cidade de Deus Vol.I da Editora Calouste Gulbenkian. Original aqui
[1] A Cidade de Deus p.118 [N.E.]
[2] A Cidade de Deus p.119 [N.E.]
[3] A Cidade de Deus p.121 [N.E.]
[4] A Cidade de Deus p.121-2 [N.E.]
[5] A Cidade de Deus p.122 [N.E.]
[6] A Cidade de Deus p.123 [N.E.]
[7] A Cidade de Deus p.131 [N.E.]
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