Por Edith Stein
Tradução, notas e comentários de Helkein Filosofia
O que denominamos qüididade[1], [Washeit], quid da essência [Wesenwas][2] ou quid essencial [Wesenhaftes Was] é o que está, de quaisquer formas, relacionado ao que a escolástica entendia pelo termo Universal. Segundo o sentido original do termo, tal significa unum versus alia seu unum respiciens alia; um contraposto ou em relação ao outro. E posto que um pode estar em diferentes relações com outro, i.e., em relação de expressão, representação, de causa ou de ser, assim se distinguem quatro sentidos diferentes do “universal”: nomes universais[3], conceitos universais, causas universais e naturezas universais[4].
A disputa acerca da verdadeira interpretação dos universais é quase tão antiga quanto a própria filosofia. Desde o tempo dos pré-socráticos, houve os nominalistas, que não queriam admitir mais do que a universalidade dos nomes e consideravam as coisas singulares como o designado por eles; os conceitualistas, que, apesar de reconhecerem uma universalidade conceitual, não viam nos conceitos mais do que formações mentais às quais nada corresponderia na realidade [Wirklichkeit]; e por fim os realistas, convictos de que havia na realidade uma natureza correspondente ao nome e aos conceitos universais. Entretanto, o realismo se divide em diferentes correntes. A escola tomista qualificou como “realismo extremo” a concepção segundo a qual o universal existe a parte rem. O platonismo (segundo o sentido concedido pela escolástica, invocando Aristóteles) jaz incluso nesta doutrina; com efeito, atribui-se ao universal uma existência externa ao espírito. Inversamente, Duns Scotus ensina que há a presença de um ser do universal das coisas. Seu próprio ponto de vista, baseado na autoridade de Aristóteles, Boécio, Santo Anselmo e Santo Tomás, é chamado pelos tomistas de realismo moderado. Esta corrente distingue a matéria ou contido no conceito universal, i.e., a natureza, e a forma da universalidade. À matéria atribui-se um ser na coisa particular, mas à forma atribui-se apenas um ser no espírito.
Tentemos encontrar nessas concepções algum esclarecimento do que chamamos de “quid essencial” e de seu ser essencial[5]. É patente que não temos em mente um mero nome, mas algo objetivo[6]. Pode-se, de fato, pensar em interpretar o “quid essencial” que se distingue do real como um “conceito”. Como algo da mente, o conceito é algo de irreal[7] e, em certo sentido, pode-se dizer que ele é “realizado”[8] aqui e ali na medida em que uma série de coisas individualmente postas lhe correspondam; afinal, ele possui certa independência do pensamento em que é pensado: o mesmo conceito pode ser pensado por muitas pessoas. Mas este possui também certa palidez e falta de vida em relação ao ser real[9] e da qual também falamos em relação ao ser essencial[10]. Quando se tenta apreendê-lo separadamente da palavra que o expressa e do objeto que designa, este facilmente desvanece perante a vista. Entretanto, é impossível considerar o quid e a essentia irrealizados ou o quid e a essentia[11] abstratos de sua realização, como um conceito. Conceitos são feitos, são “produtos do pensamento”, e deixam brechas para arbitrariedades; por outro lado, as quidittas[12] e as essentias são encontradas – assim como previamente determinado pelos entes[13] – e, assim, exclusas de nossas arbitrariedades. Pfänder diz que o que constitui o conteúdo do conceito de um objeto é o significar um objeto específico: “o conteúdo do conceito não é formado pelos próprios objetos visados, nem por nada acerca deles”.
Mas por “essentia” e “quid” queremos dizer algo encontrado nos objetos ainda que os abstraiamos de seu ser efetivo [wirklichsein]. Ainda assim, não podemos subscrever sem restrições a afirmação de Pfänder acerca do conteúdo dos termos. Falaremos mais disso em breve. Retenhamos o seguinte: essencialmente, o “quid” não é mero nome nem mero conceito; é algo de factual (aliquid a parte rei). Agora nos encaixamos no “realismo moderado”? Acompanhando a distinção entre a “matéria” e a “forma”, a matéria é o quid do ser independente de seu ser efetivo ou essencial. Concordamos com o realismo moderado na medida em que diz que há um ser nos particulares. Mas e quanto à “forma” da universalidade, que deveria jazer apenas como “secundum rationem”[14]? Para entender o que significa ser secundum rationem, precisamos ver um pouco mais de perto o que Sto. Tomás diz sobre isso[15]:
“[…] o universal (universale) pode ser considerado em dois sentidos. Primeiro, considera-se o universal como a própria natureza, à qual o intelecto atribui a intenção de universalidade (intentionem universalitatis). E, assim, universais, gêneros e espécies significam as substâncias das coisas, enquanto são predicados na qüididade. `animal’ significa a substância da coisa, da qual se predica também e de modo semelhante ‘homem’. Segundo, pode-se considerar universal enquanto universal, e em relação à referida natureza sob a intenção de universalidade, isto é, enquanto se considera ‘animal’ e ‘homem’ como um em muitos. E, assim, os platônicos afirmaram que ‘animal’ e ‘homem’ em sua universalidade são substâncias.
Isto é o que Aristóteles pretende refutar neste capítulo, mostrando que ‘animal’ ou ‘homem’ comum (animal commune, homo communis) não é uma substância na natureza das coisas (in rerum natura). Mas esta comunidade (communitas) tem a forma de animal ou de homem, enquanto está no intelecto, uma forma considerada como comum de muitos abstraída de todos os princípios individuantes (ab omnibus individuantibus)”.
[…] pois o intelecto entende a coisa por abstração, e a torna símile a si pela espécie inteligível, que a coloca em ato, e não é preciso que aquilo seja aquela espécie inteligida no real, pois tudo que existe em algo é pelo modo desse em que existe. Por isso, pela natureza do intelecto, que é outra natureza da coisa inteligida, é necessário que um seja o modo de entender, pelo qual o intelecto entende, e outro seja o modo de ser, pelo qual a coisa exista. Apesar de existir no real, é preciso que o intelecto a entenda de outro modo[16].
A última frase é especialmente importante para nós. Sto. Tomás fala “daquilo” [demselben] que jaz na coisa e que é apreendida pelo intelecto[17]. Para ele, “ser conhecido” equivale a “estar posto no espírito” [Geist sein] (no espírito – intellectus). A coisa é um “inteligível”, i.e., algo que pode ser posto no intelecto; se é conhecido então se torna actu inteligibile (objeto real do conhecimento); por conseguinte, é possível um duplo modo de ser: ser na coisa (ser efetivo, se a coisa for efetivamente real) e ser no espírito[18]. Parece-me que o que até o momento chamamos de quid essencial é precisamente o que pode ser de diferentes maneiras e o que se pode apreender desconsiderados seus diferentes modos de ser. Se está “no intelecto” ou “no conhecimento efetivo”, isso não significa que seja parte do intelecto que conhece ou do conhecimento real como unidade de experiência. Nesse sentido, o princípio que tantas vezes se repete em Sto. Tomás, a saber: quidquid recipitur ad modus recipientis recipitur –, é em certo sentido equívoco[19]. O intelecto cognoscente é um todo real; aquilo que ele conhece nunca se torna do mesmo modo quando é conhecido, mas se torna algo que o pertence na medida em que é englobado por ele. O intelecto o abraça e o possui, mas sempre como algo que está além de si. O que é reconhecido é “meu” num sentido completamente diferente do reconhecimento. Minha cognição é somente minha: não pode ser, ao mesmo tempo, a cognição de outra pessoa. Mas o que conheço, não apenas enquanto objeto do conhecimento, mas enquanto conhecido, por exemplo, certa formulação conceitual, também pode ser conhecido por outros; não retiro de forma alguma, de ninguém, a capacidade de conhecê-lo. O “ser no espírito” ou “ser abrangido pelo intelecto” é acrescentado ao que é conhecido, do mesmo modo que o ser real é acrescido ao que se torna real[20]. “Ser real” e “ser inteligível”[21] são diferentes modos daquilo que, sendo in rerum natura se torna in intellectu, enquanto actu inteligibile, quid essencial[22]. De fato, o que o espírito abraça é o mesmo que ele encontra no esse reale como seu quid. Diante de sua “realização” bem como de sua “espiritualização”, ele preserva uma integridade e uma intangibilidade peculiares. É o que é, quer seja efetivado ou não, quer seja conhecido ou não. É precisamente esse ser, indiferente à “realização” e à “intelecção”, o que chamamos de seu próprio, seu ser essencial. Deve-se ter em mente que a “espiritualização” [vergeistgung] envolve outra coisa que “agarrar com o espírito”; atente-se que o pensamento “significa” o objeto por meio de um conceito com o qual busca apreender o que ele é. O conceito idealmente realizado seria completamente congruente com a essência sem conflitar-se com ela. O conceito que o homem concreto produz visa esse conceito ideal (quando visa sua essência e não qualquer “determinação única” e arbitrária), ainda que fique aquém dele por incompletude ou talvez por falsidade. Todo ser humano tem seu “mundo conceitual”, que pode coincidir mais ou menos, não apenas com o mundo real, mas também com o “mundo dos conceitos ideais” e com os mundos conceituais dos outros.
Dado que o quid da essência reconhecida é o mesmo que encontramos numa multiplicidade de singularidades, podemos dar-lhe o “sentido universal”; e por isso que é possível que desconsideremos suas condições individuantes, a saber, no processo que chamamos de abstração. Com “em si” não digo [o quid] nem “universal” nem “individual”. Não há igual no reino do ser essencial – assim como ocorre com o indivíduo. Mas é “comunicável” e admite singularidades – o que o distingue, strictu sensu, do indivíduo e possibilita que se lhe atribua “universalidade”[23].
As últimas observações deixam claro que o conceito desenvolvido aqui vai um pouco além do “realismo moderado”, mas não o suficiente para ser chamado de “realismo platônico” (segundo a interpretação convencional do platonismo). Não atribuímos ao quid essencial um ser à maneira das coisas reais [Wirklichen Dinge], não o consideramos como indivíduos ou “substâncias” (num sentido a ser explicado posteriormente e que que foi, até o momento, cuidadosamente evitado). Nossa visão se aproxima, assim, da de Duns Scotus[24].
No âmbito do que tentamos enfatizar como “ser essencial“, em contraste com o ser real, por um lado, e “ser no espírito” (sob seus diferentes modos de ser conhecido, pensado etc.) por outro, os seres são os elementos a partir dos quais se constroem as qüididades como estruturas compostas; estas, por sua vez, inserem-se na completude das coisas como componente central. As essencialidades só se relacionam com o mundo real através das qüididades e das essentias. As qüididades e as essências tornam-se reais nas coisas como componente fixo de sua existência, e o quid como seu componente fluido[25]. Abordaremos detidamente todo esse campo a partir da “atitude natural” que intenta o mundo das coisas efetivas – por meio da eliminação de seu ser real –, como o quid das coisas ou como seu significado “côisico” [sachlichen]. Se, retrocedendo, partirmos do abrangido pelo espírito, como a compreensão, o pensamento, o reconhecimento, o entendimento, encontraremos o mesmo conteúdo de nossa “consciência” [Bewußtseins] objetivamente intentada para os objetos num sentido espiritual. Caso dissequemos a expressão linguística, encontraremos o sentido linguístico.
***
Nota do Tradutor.
A presente tradução prova que não apenas que meu alemão está em frangalhos mas também o ponto de Schopenhauer, a saber: “Finalmente, dos antigos termini techni pende a imediata necessidade do aprendizado das línguas antigas, que, devido ao uso das línguas vivas para a investigação científica, correm o risco cada vez maior de serem deixadas de lado”. Foi um verdadeiro martírio verter para o português a festa de termos steinianos que, em verdade, são, em boa parte, versões alemãs de termos latinos. Temos, então:
Washeit/Quidditas/Qüididade
Wesenwas/ “Quid da essência”
Wesenheiten/ens, entitas/ente, entidade
E daí por diante. Comentei sobre o terrível “wirklichsein” com um amigo que apontou que traduzir por ‘ser real’ ou ‘ser efetivo’ muda o sentido do termo; não seria mais fácil usar logo, a la Suárez, esse reale? Deixo essa como lição de casa. Sei que os autores afeitos à fenomenologia são por vezes forçados a criar termos novos, mas também devo admitir que caso mantivessem a terminologia latina a vida do tradutor – e do leitor – seria mais fácil…
Espero que gostem da tradução.
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Bibliografia:
- Edith Stein – Endliches und wiges Sein.
- Edith Stein – Obras Completas III: Escritos Filosóficos (Etapa de pensamento Cristiano: 1921-1936)
- Edith Stein – Ser Finito e Ser Eterno
- Sto. Tomás de Aquino – Comentário à Metafísica de Aristóteles Vol.I
- Sto. Tomás de Aquino – Comentário à Metafísica de Aristóteles Vol.II
Notas:
[1] Quidditas: Aquilo que é [N.T.]
[2] Ou, aquilo que se dá como sendo. [N.T.]
[3] Os nomes universais são também chamados de nomes comuns; normalmente os conhecemos como unívocos, equívocos ou análogos. [N.T.]
[4] […] allgemeine Worte, allgemeine Begriffe, allgemeine Ursache (Gott), allgemeine Naturen. [N.T.]
[5] Wesenhaftes Was e wesenhaften Seins. Was equivale ao latino quid e Seins ao latino esse. [N.T.]
[6] Edith Stein afasta aqui a possiblidade nominalista. [N.T.]
[7] Unwirkliches. Wirklichkeit refere-se à realidade efetiva, dada, posta defronte; seria a realidade, por exemplo, dos objetos físicos. Unwirkliches seria a negação desse tipo de realidade mas não de uma realidade mais ampla; caso contrário o conceito seria nulo, o que não se segue. [N.T.]
[8] Verwirklicht. [N.T.]
[9] Wirklichen sein; é o ser efetivo, posto. A comparação que Stein aponta é a mesma, por exemplo, entre o conceito de caneca e a caneca real; o conceito desvanece, é esquecido, é modificado, mas a caneca permanece como dada, imposta, efetiva. [N.T.]
[10] Wesenhaften Sein. [N.T.]
[11] Seguindo o conselho de Schopenhauer, que dizia que a tradução dos termini techni latinos para o alemão foi um erro, traduzo Was e Wesen como quid e essentia. [N.T.]
[12] Washeiten. Para Stein, a qüididade é algo muito semelhante à Idéia platônica. [N.T.]
[13] Wesenheiten. [N.T.]
[14] No alemão aparece como Sein im Geiste, “ser no espírito”, “estar posto no espírito”, em suma, ser ente enquanto no espírito, tido aqui como contido no intelecto. Verto para o vocábulo latindo, a saber, secundum rationem, termo específico para o conceito enquanto universal e, a saber, tendo sua existência na razão. Sendo assim, impõe-se, após secundum rationem, sua contraparte nas coisas, a saber, secundum rem. Seguiremos o mesmo procedimento no decorrer do texto. [N.T.]
[15] Os trechos seguintes derivam do Comentário à Metafísica de Aristóteles, Livro 7, Lição 13. Valho-me aqui da tradução indicada na bibliografia. [N.T.]
[16] Comentário à Metafísica de Aristóteles Vol.1 p.122. As edições consultadas apontam para o mesmo trecho mas o texto steiniano não bate com as versões consultadas. Pode-se imaginar que tenha sido uma tradução de próprio punho feita por Stein. [N.T.]
[17] Verstand é um termo complicado de traduzir pois pode ser vertido para intelecto, razão ou entendimento. O problema é que, em textos técnicos, para além de razão ser uma tradução mais adequada para vernunft, entendimento e intelecto não são equivalentes. Como o contexto é uma discussão de Sto. Tomás e seguindo a dica de Stein, verstand será traduzido como intelecto, ou melhor, intellectus.
[18] Respectivamente, Seins in Dimge e Seins im Geist. [N.T.]
[19] O que é conhecido o é à maneira do que conhece. [N.T.]
[20] Essa acreção refere-se à propriedades adicionadas a algo que passa da potência ao ato. Ao que se torna real acresce-se a propriedade “ser real” e daí por diante. [N.T.]
[21] Respectivamente, Wirklichsein e Erkanntsein. [N.T.]
[22] Aqui vemos, perfeitamente, a distinção entre as ordens do ser e do conhecer. [N.T.]
[23] Isso foi um esforço tremendo para separar a “universalidade” da forma [platônica] participada pelas coisas concretas e o conceito universal que jaz na mente humana. [N.T.]
[24] Temos, então, algo como um “platonismo” diluído, dado que o quid essencial é, funcionalmente, uma eidos. [N.T.]
[25] Ou seja, uma parte consiste na forma, o componente estrutural que torna a coisa o que ela é e não pode mudar, e a outra parte na matéria, o componente estrutural que está submetido ao devir. [N.T.]
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