Por Matteo Liberatore S.J.
Tradução e Notas de Helkein Filosofia
Compreendemos propriedade como significando aquela coisa submissa à vontade e ao controle exclusivo de alguém. Tal posse (ou direito de ter) vale apenas para entidades [quantitativamente] limitadas e, pertencendo a um, não podem pertencer a outro. [1] Coisas inesgotáveis, como o ar e a luz, não podem ser propriedades, pois são “possuídas” ou desfrutadas igualmente, por muitos.[2]
Artigo I. Os tipos de propriedade e seu significado.
A concepção de propriedade inclui tanto sua modalidade pessoal quanto real. O armador, o capitalista e o comerciante são [exemplos de] proprietários. Mas a palavra é, comumente, entendida como significando propriedades reais, em especial a [posse] de terra; “quando”, diz Droz, “falamos de proprietários, quase sempre queremos dizer os donos da terra.” E Rossi: “Dos agentes naturais, incluídos sob o nome de terra, aquele particularmente interessante para os economistas é o solo. Geralmente, o solo é propriedade privada, e isso é uma característica de toda sociedade civilizada.”[3]
A propriedade é, neste sentido (privada, de terra), objeto de ódio pelos socialistas, que a chamam, feito Proudhon o fez, de roubo: La propriété c’est le vol. A terra, dizem, com seus tesouros e fertilidade, não foi concedida pela natureza para ninguém em específico, mas dada a todos em comum — e aquele que a reivindica para si, excluindo os outros, tomam em flagrante injustiça e traição à humanidade, o de outrem, sendo então digno de vingança e esta virá ferozmente caso uma restituição seja recusada. Os Socialistas — não a ralé das ruas, afeita ao saque, mas os cultos e sábios — propõem abolir a propriedade privada e substituí-la pela coletiva, regulada e administrada pelo Estado.
Os economistas são quase unânimes em defender a propriedade contra as acusações e argumentos socialistas; eles sustentam que tomar a propriedade de seu dono — seja por valorizá-la com seu trabalho, por comprá-la ou herdá-la — é iníquo e, evidentemente, um roubo. Eles defendem uma causa justa; mas sua defesa é frequentemente ineficaz pela fraqueza de suas razões.
Artigo II. Defesa Insuficiente.
Say deriva os direitos de propriedade do estado social dos homens. Contra Germain Garnier, que disse, “Tout ce qui n’est pas propriétaire d’une portion du sol national, n’y peut exister que comme étranger”,[4] ele escreve:
“Eis apenas um sofisma especioso que assume direitos de propriedade anteriores à sociedade; todavia, ele [o direito de propriedade] existe devido ao contrato social e é, portanto, posterior à ordem política que o garante. Prova disto é a sociedade poder existir sem reconhecer propriedades fundiárias, como testemunhado por numerosos exemplos: não há, entre os árabes e os nômades tártaros, proprietários de imóveis, e suas leis reconhecem apenas propriedades móveis, como carroças e rebanhos — o que, como vimos, é uma das razões pelas quais eles não podem se tornar industriosos ou muito ricos.”[5]
Isto não pode ser, de forma alguma, admitido. O dito de Garnier estava, sim, errado; a sociedade é formada por bens maiores e mais amplos que a mera posse de propriedade — portanto, todos os seus membros, de forma ou outra, por riqueza, habilidade ou trabalho, ajudam a movê-la. Mas, rejeitando um erro, Say decai em outro mais grave. Como pode a sociedade conceder direitos de propriedade, quando tais direitos internos resultam dos indivíduos nela associados? A sociedade concederia, então, o direito de possuir uma parte da terra; mas quem deu a terra à sociedade? O dito para mostrar o direito de possuir da sociedade é aplicável, a fortiori, aos indivíduos.[6]
Mas a sociedade, diz Say, consagra e protege a propriedade. De fato, mas consagrar e proteger não é criar. A sociedade consagra e protege a vida e a personalidade dos indivíduos nela inclusos, mas isto não implica que a sociedade os crie como pessoas e lhes conceda o direito de viver. Em suma, se a sociedade cria os direitos de propriedade, então pode anulá-los; e deveríamos ser, assim, calados pelo socialismo.[7]
Outros economistas explicam de outra forma o direito de propriedade. A maioria deles encontra justificativas em duas vantagens, sendo útil até mesmo para os destituídos de propriedade. “Quando a terra”, diz Droz,
“[…] está sem donos, quem se importará em cultivá-la cuidadosamente — devotar seu próprio trabalho e ganhos a ela? Um pouco de trabalho apressado — i.e., tudo o que os homens se arriscariam a fazer sem a certeza de colheitas — acrescenta pouco às produções espontâneas do solo. A população é escassa e pobre. Mas quando a propriedade territorial é estabelecida, uma nova era começa. Os produtos se multiplicam, e a multiplicação [da raça humana] aumenta com isso. Neste novo estado da sociedade, uma grande divisão do trabalho é formada entre os homens que extraem as matérias-primas da terra e aqueles dedicados às artes necessárias para trabalhá-la. Essas duas classes, igualmente trabalhosas, vêem seu bem-estar como resultante de sua atividade laboral e de suas trocas. Resumindo, os produtos materiais se tornam suficientemente comuns, de modo que certos homens podem se dedicar inteiramente a produzir bens imateriais. À propriedade territorial, portanto, devemos o aumento da população e do conforto e o exercício das mais nobres faculdades. Devemos a ela o desenvolvimento das forças, da riqueza e da inteligência humana.”[8]
Tudo isso é verdade: mas um socialista argumentaria, apesar de tudo, que vêem a sociedade tendendo à divisão cada vez maior em duas classes, os muito ricos e os muito pobres. “Se”, eles diriam, “você chama de legítima a propriedade privada por ela trazer vantagens, nós temos, igualmente, o direito de chamá-la de injusta pelos males que causa.”
Além disso, a utilidade não constitui um direito. Eles “enganam-se gravemente,” como Minghetti:
“[…] aqueles que baseiam sua defesa da propriedade fundiária apenas em razões econômicas; pois, uma vez que os socialistas estão errados não apenas em economia, mas principalmente em moral e equidade, devemos recorrer a estas para refutá-los. Razões econômicas podem nos mostrar as vantagens privadas e públicas — e eu diria até a necessidade — da propriedade fundiária: mas elas não podem ir além disto. Um conhecimento superior deve informar esse princípio material com sua sanção.”[9]
Até mostrarmos o direito de propriedade como proveniente da natureza, todo argumento será vão.
Outros Economistas tentam fundamentar o direito de propriedade na ideia de trabalho. Todo homem, dizem, possui o direito de considerar seu aquilo produzido com seu próprio trabalho, algo admitido pelos próprios socialistas. O efeito pertence ao dono da causa, e o trabalho ao trabalhador. O trabalho é a origem da propriedade; ele tornou desertos e pântanos férteis, então é justo o trabalhador desfrutar dos resultados de seu trabalho.
Isso é verdade, mas não é toda a verdade. O trabalho é, sem dúvida, a fonte da propriedade, mas não sua fonte originária. A casa por ti construída é tua; mas sua posse pressupõe também a da terra onde ela está. De onde (diriam eles) obtiveste o direito de chamar de sua aquela terra dada a todos pela natureza? Cultivaste um certo número de acres: mas se eles pertenciam à raça humana, não eram seus. Disseste que os tornou férteis: mas quem lhe pediu isto? Além disso, a fertilidade estava no solo. Apenas fizeste uso das forças naturais, que, como a terra, foram presentes da natureza. Como provarás o direito de possuir tal presente? Mostre-nos o título de propriedade.
Para afastar esse ataque, Carey inventou uma teoria engraçada, posteriormente desenvolvida por Bastiat. “Você supõe”, disse ele, dirigindo-se aos Socialistas,
“[…] que um proprietário de terras usurpa os lucros advindos de sua fertilidade natural? Você está errado. Ele só recebe um retorno pelo trabalho. O resto ele dá gratuitamente. O que constitui o valor de troca de um objeto é simplesmente o trabalho de produzi-lo. Nenhuma parte do valor é atribuída à utilidade.”
Já mostramos a falsidade dessa teoria.[10] Os objetos negociados são oferecidos e procurados por sua utilidade e, então, vendidos a preço de mercado, independente do trabalho empregado em sua confecção. Caso alguém aumentasse o preço de um artigo devido à quantia de trabalho nele empregado, um comprador responderia: “e eu com isso? Pagarei o que a coisa vale”, considerando por “valor” o preço pelo qual ela é comumente avaliada — numa avaliação relativa não ao trabalho investido no produto, mas à sua utilidade e raridade. Quando um homem concorda em pagar vinte francos numa garrafa de clarete, ele está reconhecendo o trabalho de produzi-la? Se assim fosse, ele a valorizaria um pouco mais do que cinco sous, v.g., o custo de uma garrafa de Asprino,[11] porque na confecção de ambas é praticamente o mesmo.[12]
Já falamos dessas coisas antes; só resta apontar essa teoria como proposta socialista. Ela admite a não-apropriabilidade dos agentes naturais ao negar sua inclusão na negociação, pois todos sabem que o apropriável é passível de troca. Pelos agentes naturais não serem apropriáveis, esvai-se a justificativa de reclamar a posse de qualquer pedaço de terra para si, excluindo a posse por outros.
Também não é possível escapar da questão dizendo, como numa piada sinistra, “eu não excluo ninguém da terra enquanto agente natural, mas apenas dos frutos do meu trabalho. Quando vendo o produto do solo, somente me reembolso pelo meu trabalho. A utilidade advinda da fertilidade da terra eu dou de graça.” Pois a resposta seria: “Muito bem, então; se tua propriedade não está no solo, e apenas cobras pelo trabalho, tomarei posse dos seus campos, os trabalharei e devolverei o produto a ti nos mesmos termos.” O primeiro sujeito protestaria veementemente, querendo ser pago por todo o trabalho e capital investidos por ele e seus antepassados; mas a resposta sinistra seria: “Seu trabalho e capital já foram suficientemente pagos pelos teus lucros anuais. E se achares teus gastos excedentes aos lucros (o que eu não acredito), só posso dizer que o mereceste por despendido tanto trabalho e capital em algo que não era naturalmente seu.”
Mas não devemos perder mais tempo com teorias cuja refutação advém de um pouco de bom senso. Precisamos encontrar melhores argumentos para provar os direitos de propriedade.
Artigo III. A propriedade privada é natural ao homem.
Chamamos de natural não apenas o posto em ato pela natureza, mas o correspondente a seus desígnios. Assim, quando dizemos que a sociedade civil é natural ao homem[13], não queremos dizer que a natureza colocou a humanidade nesse estado; pois, de fato, a raça humana originou-se de um único par. Queremos dizer que a natureza destinou a humanidade a não se dispersar em famílias isoladas, mas a viver num intercâmbio civil. Podemos ver as intenções da natureza nas condições e tendências naturais do homem e nos meios necessários para satisfazê-las.
Fica fácil entender, daí, a propriedade independente como naturalmente humana, pois é do intento natural dos homens possuírem coisas frutíferas, utilizáveis licitamente e sem prejuízo de outrem. O homem precisa de animais inferiores e plantas, pois a natureza não permite estados imperfeitos ou coisas inúteis. É evidente, portanto, que a natureza fez os animais e as plantas para o sustento do homem. Mas, quando alguém adquire o feito pela natureza, a aquisição é natural. É natural, portanto, a apropriação pela qual as pessoas adquirem as coisas necessárias à vida humana.
Et sic manifestum, diz Sto. Tomás em seu comentário sobre a “Política” de Aristóteles:
Et sic manifestum est quod homo indiget ad suam vitam aliis animalibus et plantis. Sed natura, neque dimittit aliquid imperfectum, neque facit aliquid frustra; ergo manifestum est quod natura fecit animalia et plantas ad sustentationem hominum. Sed quando aliquis acquirit id quod natura propter ipsum fecit, est naturalis acquisitio: ergo possessiva qua huiusmodi acquiruntur, quae pertinent ad necessitatem vitae, est naturalis, et pars eius est praedativa, qua oportet uti et ad bestias quae naturaliter sunt subiectae homini, et ad homines barbaros qui sunt naturaliter servi, ut supra dictum est, ac si hoc sit primum iustum bellum secundum naturam.[14]
O santo Doutor passa da naturalidade da aquisição de coisas necessárias para a da posse ou apropriação daquilo de onde essas coisas provêm. Ergo possessiva (como Sto. Tomás geralmente expressa propriedade, qua hujusmodi acquiruntur, quae pertinent ad necessitatem vitae, est naturalis.[15] O homem, sendo racional, é providente; mas um homem não pode ser providente se não providenciar não apenas para suas necessidades presentes, mas também para as futuras, algo impossível sem a posse permanente de coisas frutíferas. Se as necessidades da humanidade cessassem após satisfeitas de uma única vez, tal posse não estaria nos desígnios da natureza. Mas, pelo homem conter necessidades diárias, busca apropriar-se do local onde estes desejos são supridos; e, assim, a permanência do desejo leva à permanência da posse. Isto é evidenciado pela consideração, não do homem isolado, mas do doméstico, dotado de filhos para prover. Ademais, a terra e os animais nela residentes requerem cuidado e trabalho, algo que ninguém daria senão mediante a certeza de mantê-los seus; nisto, o trabalho destina-se à apropriação de terra, mas, como antedito, não é a origem da propriedade.
Há temas a distingüir nesta matéria: a causa eficiente, o fim e a determinação concreta. A causa eficiente da propriedade é a natureza, que produziu os campos, não para o propósito absurdo e prejudicial de pertencerem a todos os homens em comum, mas para se tornarem propriedade legítima de indivíduos. A determinação concreta dessa concessão genérica da natureza procede da ocupação originária através da qual esta ou aquela porção de terra se torna propriedade de alguém que, por um ato livre, a torna sua. A finalidade desta ordenação natural é multiplicar os frutos da natureza por meio do trabalho. Deus disse ao homem, personificado em Adão: Crescei e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a, e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves do céu, e sobre todos os animais que se movem sobre a terra.[16] Agora, submeter a terra significa obrigá-la a produzir, abundantemente, os frutos necessários ao homem, e daí a necessidade do trabalho.
Sto. Tomás faz, para mostrar a naturalidade da propriedade privada, as seguintes observações: Em primeiro lugar, os homens são mais cuidadosos com seus bens do que com os possuídos em comum com outros, pois a inclinação de evitar o esforço os leva a legar o trabalho a outras pessoas. Em segundo lugar, as coisas são melhor ordenadas quando cada um tem, razoavelmente, cuidado consigo. Em terceiro lugar, é mais fácil preservar a paz quando cada homem está contente com seus bens. Sabemos empiricamente que, numa situação de propriedades comuns, as pessoas reivindicam para si grande parte desta e, assim, fomentam disputas.
É evidente, então, que o argumento dos economistas a favor da propriedade privada pode se tornar, se usado corretamente, demonstrativo. “A história”, diz Pellegrino Rossi,
“[…] nos ensina que a apropriação da terra é desconhecida para todos, exceto para populações selvagens e tribos nômades. Moradias fixas, apropriação do solo e sociedade regular são três ideias que nunca foram separadas na mente do homem — três fatos que a história sempre apresenta unidos… Sem a apropriação do solo, não há sociedade regular, não há civilização. Propriedade incerta e barbarismo são fatos dedutíveis um do outro em todos os lugares e sempre.”
É verdade; mas para provar o direito [de propriedade] devemos conectá-lo com as intenções da natureza. Eis o raciocínio correto: nem uma sociedade bem ordenada e pacífica e nem a civilização são possíveis sem a propriedade privada. Mas a natureza intenta uma sociedade bem ordenada, pacífica e civilizada; portanto, pretende haver propriedade privada. E o pretendido pela natureza é um direito natural. Portanto, a propriedade privada é um direito natural. Ou poderíamos argumentar assim: aquilo que tem o consentimento de todas as nações civilizadas, deve proceder da natureza. Mas a propriedade privada tem o consentimento de todas as nações civilizadas. Portanto, deve proceder da natureza. Isso ficará mais claro quando examinarmos as objeções.
Artigo IV. Respostas a algumas objeções
Primeira Objeção. — Os antigos juristas ensinaram que a propriedade não pertence ao Direito Natural, mas ao Direito das Nações. Portanto, não procede da ordem natural.
Resposta. — Esta objeção advém da confusão entre o direito natural e o das nações no ensino dos antigos jurisconsultos. Sua distinção ocorre não na origem, como se não procedessem da natureza, mas no objeto. Neles, o direito natural refere-se às coisas correspondentes ao instinto animal comum aos homens e aos animais brutos; já o direito das nações se refere às entidades correspondentes ao discurso racional e, portanto, apenas ao homem. Assim é a propriedade.
“Jus naturale”, lemos na institutas de Justiniano,
“est quod est quod natura omnia animalia docuit; nam illud non humani generis proprium est, sed omnium animalium, quæ in cœlo, quæ in terra, quæ in mari nascuntur. Hinc descendit maris atque feminæ conjunctio, quam nos matrimonium appellamus ; hinc liberorum procreatio, hinc educatio ; videmus etenim cetera quoque animalia istius juris perita censere… Quod vero naturalis ratio inter omnes homines constituit, id apud omnes peræque custoditur, vocaturque Jus Gentium, quasi quo jure omnes gentes utuntur.”[17]
O direito das nações é, aqui, atribuído à natureza: “quod naturalis ratio inter omnes homines constituit”. O instituído na razão é um instituto natural, pois a razão jaz na natureza humana.
No entanto, trataremos disto — i.e., qual a distinção entre o direito natural e os das nações e como a propriedade, pertencente a este último, é dita natural — no próximo capítulo.
Segunda Objeção. — A propriedade é derivada da ocupação; mas a ocupação é um fato e fatos não constituem direitos.
Resposta. — É necessário operar distinções. Que [a propriedade] seja derivada da ocupação enquanto princípio determinante, eu admito; que seja derivada da ocupação como princípio de autorização, eu nego. Seu princípio de autorização é a natureza, que concede ao homem o domínio sobre as coisas inferiores e este, sendo providente e social, é capaz de posse permanente. A ocupação determina a posse enquanto algo pode ser tomado sem danos a outrem e por não pertencer a outra pessoa. Isto é próprio de qualquer direito, pois, este advindo da natureza de maneira indeterminada e abstrata, necessita de um fato para se tornar concreto e individuado. O consentimento dos noivos é o fato determinante concretizador do direito conjugal. A geração é o fato determinante que concreta as instâncias do direito paternal, e o mesmo com a propriedade, pois a ocupação é o fato que serve para determinar um direito dado, pela natureza, ao homem.
Se a legalidade da ocupação for negada, todo o direito de propriedade, tanto pessoal quanto real, cai em pedaços.
Terceira Objeção. — A terra foi feita fértil por Deus para todos poderem viver de seus produtos; é, portanto, instituição divina e patrimônio comum. Quem a toma para si comete um crime contra a ordem divina e rouba a raça humana. Ao excluir apenas um homem de sua posse, o privamos de seu direito à vida, pois o destituídos dos frutos da terra.
Resposta. — Este discurso contém idéias confusas. Distingüí-la-emos em poucas palavras. Deus fez, inegavelmente, uma terra fértil passível de fornecer alimento ao homem; mas não pretendeu que isto fosse feito sem a tornar propriedade privada dos indivíduos. Se fosse assim, nem as nações, nem os indivíduos poderiam se apropriar de qualquer parte dela, e os estrangeiros teriam um direito divino de invasão. Os invasores poderiam dizer: “não fazemos mal algum a vocês, pois a terra é herança comum”. É preciso ter mais cuidado, pois não podemos negar o direito de propriedade privada sem negar o direito de propriedade nacional: a justificativa de ambos é a mesma, e para cada um deles precisamos reconhecer a legalidade da ocupação.
A terra, diz Sto. Tomás, pode ser dito patrimônio comum, em sentido negativo, por nenhuma de suas partes foi dada por Deus a esta ou aquela pessoa; mas não pode ser dita em sentido positivo, como se Ele tivesse ordenado sua posse coletiva. Ele a fez, de fato, apropriável, pois caso seu cultivo seja eficaz, ordenado e pacífico, ela deve ser dividida em propriedades permanentes de indivíduos. A propriedade não é, portanto, contra o direito natural primitivo, mas é adicionada pelo curso natural da razão humana:
Communitas rerum attribuitur juri naturali, non quia jus naturale dictat omnia esse possidenda communiter, et nihil esse quasi proprium possidendum; sed quia secundum jus naturae non est distinctio possessionum… Unde proprietates possessionum non est contra jus naturale, sed juri naturali superadditum per inventionem rationis humanae.[18]
É calunioso dizer que a propriedade tira dos não proprietários o direito de viver, pois muitos proprietários de terras são pobres, enquanto homens de negócios são ricos sem possuir um pedaço de terra. É verdade, certamente, que o homem não pode viver sem pão; mas ele pode tê-lo sem possuir a terra necessária para seu crescimento. Quando Deus disse In sudore vultus tui vesceris pane,[19] por “do suor do teu rosto”, Ele quis dizer “trabalho”. Este é o verdadeiro meio de vida comum a todos, e os trabalhadores freqüentemente alcançam riqueza pelo trabalho. Se toda a mercadoria é pão, porque pode ser trocada por pão, então, a fortiori, o trabalho que produz o pão dá o direito de recebê-lo em troca. O trabalho fornece o sustento, mas a posse da terra não é uma condição necessária para participar desse suprimento. Trabalhos de todos os tipos permitem às pessoas participarem dele, e há, como veremos adiante, uma obrigação moral de apoiar aqueles que não podem trabalhar.
Quarta Objeção. — Não podemos negar que a propriedade causa desigualdade entre os homens; ora, isto é contra natureza, cuja requisição é a igualdade entre os homens.[20]
Resposta. — A propriedade traz tanta desigualdade entre os homens quanto a indústria, o comércio e qualquer operação onde um homem empregue suas energias. Quem trabalha mais, se esforça mais, ajuda mais a si, ganha melhor e, se for econômico, honesto e inteligente, poderá poupar mais e, assim, erigir uma fortuna que lhe renderá mais riqueza. Há, sim, desigualdade nisto, mas não uma causada pela posse de terra; devemos, então, pelo bem da igualdade, abolir a economia, as habilidades, a temperança e a conduta honesta? É curioso ouvir os defensores da igualdade glorificarem a liberdade sem perceberam que está é incompatível com a igualdade. Duas entidades livres não permanecem iguais por sequer um dia; suas ações, por serem livres, diferem e causam efeitos distintos, sejam de ordem moral, jurídica ou econômica.
Fica evidente, então, que a igualdade não é natural. Se fosse, os homens seriam naturalmente iguais, enquanto, na realidade, são naturalmente desiguais em capacidades mentais e corporais.[21] Ademais, se a natureza exigisse uma igualdade de condições, o homem seria inapto a viver em sociedade, a qual, como sabido, é essencialmente desigual, pois não é um agregado de partes, mas um organismo e, portanto, o resultado de componentes dissimilares. A única igualdade requerida pela natureza é a referente à dignidade pessoal e os direitos invioláveis conservados pelas pessoas. Mas esta não é uma questão econômica, mas jurídica.
Bibliografia citada e/ou recomendada
- Bernardo Veiga – A Ética das Virtudes Segundo Tomás de Aquino
- Erik Von Kuehnelt-Leddihn – Liberdade ou Igualdade
- Immanuel Kant – Metafísica dos Costumes
- Ludwig Von Mises – Ação Humana
- Mircea Eliade – Mitos, Sonhos e Mistérios
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Notas
[1] Segundo Mises, o conceito econômico de propriedade radica em “o poder de desfrutar de todos os serviços que um bem possa proporcionar […] ao controle que o proprietário tem sobre sua propriedade e não a conceitos, termos e definições legais.” Ação Humana p.776-777. [N.T.]
[2] A apropriação ocorre, segundo Kant, desta forma (Metafísica dos Costumes 259): “Os momentos (attendenda) da aquisição originária são, portanto: 1. A apreensão de um objecto que não pertence a ninguém; o contrário estaria em oposição à liberdade de outros segundo leis universais. Esta apreensão é a tomada de posse do objecto do arbítrio no espaço e no tempo; a posse em que me coloco é, portanto, uma posse física (possessio phaenomenon). 2. A declaração (declaratio) da posse deste objecto e do acto do meu arbítrio de afastar qualquer outro dele. 3. A apropriação (appropriatio) como acto de uma vontade universal e exteriormente legisladora (na ideia), com que se obriga os outros à concordância com o meu arbítrio. – A validade do último momento da aquisição, no qual se apoia a conclusão «o objecto exterior é meu», quer dizer, que a posse é válida como algo meramente jurídico (possessio noumenon) funda-se no seguinte: que a conclusão «o objecto exterior é meu» se infere correctamente da passagem da posse sensível à posse inteligível, uma vez que todos estes actos são jurídicos, e, por conseguinte, dimanam da razão prática, e, portanto, na pergunta sobre o que é de Direito pode abstrair-se das condições empíricas da posse. A aquisição originária de um objecto exterior do arbítrio chama-se ocupação (occupatio) e não pode ter lugar senão em relação a coisas corpóreas (substâncias). Quando, pois, uma tal aquisição tem lugar necessita, como condição da posse empírica, de ter a prioridade temporal perante qualquer outro que queira apoderar-se da coisa (qui prior tempore potior iure). Enquanto originária, é so mente a consequência do arbítrio unilateral; porque se para tal fosse necessário um arbítrio bilateral, então derivaria do contrato entre duas (ou mais) pessoas, por conseguinte, do seu de outros. – Não é fácil compreender como um tal acto do arbítrio pode fundamentar o seu para alguém. Não obstante, a primeira aquisição não é apenas e só por isso a originária. Pois que a aquisição de um estado jurídico público mediante a unificação da vontade de todos com vista a uma legislação universal seria uma tal aquisição, à qual nenhuma outra pode anteceder e, bem assim, derivaria da vontade particular de cada um e valeria em relação a todos os outros: ora, uma aquisição originária só pode decorrer da vontade unilateral.” [N.T.]
[3] A aquisição originária deve ser, para Kant, de terra (Metafísica dos Costumes 262): “A terra (entendendo-se por tal toda a superfície habitável) há-de considerar-se em relação a todas as coisas móveis nele jacentes como substância, enquanto que a existência destas há-de considerar-se apenas como inerência, e, tal como em sentido teórico os acidentes não podem existir fora da substância, também em sentido prático as coisas móveis jacentes na terra não podem ser consideradas como suas por quem quer que seja, se previamente não se aceitar que esta terra se encontra na sua posse jurídica (se não se aceitar que é seu).” [N.T.]
[4]“Todos que não sejam proprietários de uma parte do solo nacional só podem existir ali como estrangeiros” [N.T.]
[5] Cours d´Économie Politique. Tome I., 4º Pt. Ch.5. [N.A.]
[6] Por isto Kant distingue o direito de propriedade enquanto efetivo e provisório. Provisório, quando num estado “de natureza” antes da inserção do proprietário na sociedade/estado; efetivo, quando garantido pelas leis de uma sociedade/estado. Ver Metafísica dos Costumes 257. [N.T.]
[7] Stuart Mill não se envergonha de dar à sociedade tal direito. Tratando da distribuição de riqueza, nos diz que, num estado social, incondicionalmente (exceto numa situação de total solidão), toda riqueza disponível requer o consentimento geral da sociedade. Mesmo o produzido por um homem através de seu próprio trabalho, sem ajuda, não pode, diz, ser mantido a menos que a sociedade o permita. Pode até ser exigido por indivíduos, ele diz, e de fato seria, se a sociedade como um todo não se opusesse a isso, e pagasse pessoas para preveni-lo. Ver Principles of Political Economy, Bk. II. Distribution, Chap.1. Para dizer a verdade, muitos de nossos economistas modernos abriram as portas para o socialismo. [N.A.]
[8] Économie Politique, Liv. II Chap.2.
[9] Dell´Economia Pubblica, Lib.II., p.147 [N.A.]
[10] Parte I, Capítulo VI, Art. IV deste mesmo livro. [N.A.]
[11] “Quel d´Aversa orrido Asprino, Che non so s´è agresto o vino.” – Redi, Ditirambo. [N.A.]
[12] Grosso modo, a lei da utilidade marginal funciona distinguindo dois conceitos de utilidade, um objetivo e um subjetivo. A utilidade objetiva refere-se à maneira como valoramos de que forma uma entidade é objetivamente útil, como o urânio para o setor nuclear ou algum alimento devido a seu valor nutricional. A utilidade subjetiva refere-se à valoração que considera apenas a redução de um desconforto e a promoção de uma satisfação. Esta última distinção refere-se ao antigo “valor de uso subjetivo”. Quando consideramos comprar algo (relação quantitativa), avaliamos de que maneira aquele produto nos trará sal satisfação e estampilhamos isto numa quantia monetária que, comparada com o várias outras avaliações conhecidas (e outros fatores), compõem o preço de mercado. Ver Ludwig Von Mises, Ação Humana, Cap.7. [N.T.]
[13] Referência à tese aristotélica (Política 1253a 1-3) do homem como animal político, i.e., animal em cuja natureza jaz a conveniência de viver na organização conhecida como pólis; é possível dizer, em termos modernos, que a tese engloba não apenas a vivência numa cidade mas também o convívio em sociedade e a presença de interação humana. [N.T.]
[14] Sententia Politic., lib. 1 l. 6 n. 9-10. [N.A.] “E assim é manifesto que o homem precisa, para viver, de outros animais e plantas. Mas a natureza não deixa nada imperfeito, nem faz algo em vão; portanto, é manifesto que a natureza fez os animais e as plantas para o sustento dos homens. Mas quando alguém adquire aquilo que a natureza fez para ele, é uma aquisição natural: portanto, a posse pela qual tais coisas são adquiridas, as quais pertencem à necessidade da vida, é natural, e parte disso é a predação, pela qual é necessário usar tanto os animais que naturalmente estão subjugados ao homem, quanto os homens bárbaros que são naturalmente escravos, como foi dito acima, como se isso fosse a primeira guerra justa segundo a natureza.” [N.T.]
[15] Ou, na explicação de Bernardo Veiga (A Ética das Virtudes Segundo Tomás de Aquino p.128-9): “Porém, há outro aspecto, enquanto uso, e então o Aquinate defende que há um domínio natural sobre as coisas, para utilidade humana. Ele defende a legitimidade e conveniência da propriedade privada, em conformidade com o direito natural, por três motivos: primeiro, porque cada um é mais solícito com o que lhe pertence; segundo, as coisas são mais ordenadas quando são confiadas a uma pessoa determinada; e terceiro, a paz é mais garantida se cada um está contente com o que é seu. Porém, ele faz uma ressalva importante, pois não defende um total liberalismo individualista; antes, diz que se deve considerar o aspecto do uso desses bens também voltado para o bem comum, assim “sob esse aspecto, o homem não deve ter as coisas exteriores como próprias, mas como comuns, neste sentido que, de bom grado, cada um as partilhe com os necessitados”. Há, portanto, uma função social na propriedade privada mesmo sendo gerida por um, seu uso deve visar também o bem da comunidade.” [N.T.]
[16] Gn. 1:28 [N.A.]
[17] Institutionum Lib. I. tit. II. [N.A.]
[18] S. Th. IIª II, Q.LXVI a.2. ad.1[N.A.]
[19] Gn. 3:19 [N.A.]
[20] Mircea Eliade atribui o ‘fetiche de igualdade” dos socialistas (e utopistas) à reabilitação, algo gnóstica, de mitos antigos: “Os séculos XVI, XVII e XVIII inventaram um tipo de “bom selvagem”, à medida das suas preocupações morais, políticas e sociais. Os ideólogos e os utopistas empanturraram-se de “selvagens”, sobretudo com o seu comportamento em relação à família, à sociedade, à propriedade; invejaram as suas liberdades, a sua judiciosa e equitativa divisão do trabalho, a sua existência beatífica no seio da Natureza. Mas esta invenção do “selvagem”, combinada com a sensibilidade e a ideologia dos séculos XVI-XVIII, não era senão a revalorização, radicalmente secularizada, de um mito muito mais antigo: o mito do paraíso terrestre e dos seus habitantes nos tempos fabulosos que precederam a História. Mais do que uma “invenção” do bom selvagem, deveria falar-se da recordação mitificada da sua imagem exemplar.” Mitos, Sonhos e Mistérios p.31-32 [N.T.]
[21] Esta também é a opinião de Erik Von Kuehnelt-Leddihn em seu Liberdade ou Igualdade (p.10-11) “Quando falamos em liberdade e igualdade, devemos ter em mente que estamos lidando com conceitos relativos e não com princípios absolutos; são melhor entendidos como predisposições e tendências do que como normas imutáveis. Para nós, a liberdade é uma grande força de vontade que, num dado contexto, encontra meios viáveis e plausíveis de efetivar-se. É um fim intermediário, uma parte essencial do bem comum, sem a qual o homem não consegue viver uma vida feliz nem desenvolver a sua personalidade. Não pode a liberdade, portanto, ser simplesmente descartada em nome da eficiência absoluta ou do máximo bem-estar material. O homem não vive só do pão. […] Falar em igualdade não é falar em eqüidade (o que é outra palavra para justiça). Mesmo a assim chamada “igualdade cristã” não se manifesta de maneira mecânica, e significa somente que todo mundo está sujeito a uma mesma lei — trata-se, antes, de isonomia. Para o cristão, dois bebês recém-nascidos possuem uma igualdade espiritual, apesar de todos os fatores físicos e intelectuais que os diferenciam no momento da concepção (ainda que só em potência). Não pretendemos elaborar muito os motivos psicológicos por trás das tendências igualitárias e identitárias de nosso tempo, das quais já tratamos em outra ocasião; basta-nos dizer que a imposição artificial da igualdade é tão pouco compatível com a liberdade quanto a imposição de leis injustas de discriminação […] Se a ambição, o orgulho e a soberba são a base das discriminações, os combustíveis da moda identitária são a inveja, o ciúme e o medo. A “natureza” (ou seja, a ausência de intervenção humana) não é nada igualitária. Se quiséssemos deixar tudo realmente nivelado, deveríamos começar demolindo as montanhas e preenchendo os vales. E como a igualdade pressupõe a intervenção contínua de uma força artificial que, a princípio, é opressora, os conceitos de igualdade e liberdade se contradizem.” [N.T.]
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