Por Louis Lavelle
Tradução de Johann Alves
Notas e comentários de Helkein Filosofia
Mas não apenas buscou-se exorcizar o Ser ao considerar a relação do sujeito e do objeto como a condição insuperável de todos os atos do pensamento. Também cria-se exorcizá-lo mais decisivamente ao se afirmar a primazia do sujeito e a impossibilidade de superação dos próprios limites. Esta é a origem do idealismo clássico que justifica no espírito tanto um orgulho desvairado[1] quanto uma humildade suprema.
Talvez argumente-se contra o idealismo que ele pede o inadmissível: pois se o pensamento é obrigado a descobrir a si mesmo antes de descobrir qualquer coisa sobre o mundo, é porque ele descobre o Ser dentro de si e ao mesmo tempo que a si mesmo; assim, longe de se separar dele por uma espécie de muralha, ele está ao seu nível desde o princípio e, portanto, não precisa dar um salto perigoso para além de si mesmo a fim de tentar alcançá-lo. E uma vez que o pensamento não é nada, ele já possui em si mesmo um valor ontológico. Ele é competente para conhecer o Ser porque já o possui.
No entanto, este argumento precisa, ao que parece, receber uma forma mais precisa. Pois ele envolve a própria definição que deve ser dada ao método reflexivo e obriga-nos a questionar o seu escopo e o seu valor. Descartes o descreveu como uma espécie de recusa prévia que o pensamento deve opor à realidade sem a qual este pensamento, sujeito a mil influências que agem sobre ele para surpreendê-lo, é incapaz de conquistar a sua independência e de fazer um juízo certeiro sobre as coisas. É realmente através deste processo de separação que se constitui o pensamento: ele tem, como Mefistófeles, o poder de dizer não. No não, ele adquire consciência de si mesmo, o sentimento de sua interioridade inalienável, de sua invulnerabilidade, e também de sua superioridade em relação a esta realidade com a qual rompeu a fim de dominá-la melhor e sobre a qual ele aplicará um juízo que não pode ser forçado. Isto significa que o pensamento só consegue se libertar e criar a si mesmo no exercício de sua função crítica, que deve rejeitar a realidade exterior a ele a fim de transformá-la em um objeto, o que lhe permite experimentá-la, submetê-la a sua jurisdição, aceitá-la e torná-la sua através de um ato interior e de um consentimento que depende apenas de sua concessão.[2]
No entanto, devemos reconhecer que esta concepção de reflexão nos expõe a um duplo perigo no qual o pensamento não poderia deixar de cair tão logo quisesse: em vez de subordinar-se ao Ser, colocar-se como um primeiro termo ao qual o Ser deva estar subordinado. Pode-se até mesmo dizer que isso gera um duplo paradoxo do qual nenhum homem refletido poderia se libertar sem muitas dificuldades.
Primeiro, consideremos esta própria realidade da qual o pensamento se separou e que agora busca recuperá-la. Ela só pode ter sentido para o pensamento, uma vez que é precisamente ele que tenta apropriar-se dela. Isto significa que a realidade só pode ser uma representação ou uma ideia para ele. Mas então o pensamento fica preso em sua própria armadilha e se torna vítima da sua própria vitória. Pois ou ele sustentará numa espécie de embriaguez que esta representação ou ideia é a própria realidade e que não há nada além dela, sem que esta afirmação jamais obtenha algo mais que um consentimento puramente teórico; ou ele tentará um esforço contraditório para atravessar a representação e a ideia a fim de encontrar por detrás delas um Ser verdadeiro, mas que, em virtude da própria posição que escolheu, deve ser definido como incognoscível e cuja presença nem entendemos e tampouco suspeitamos. No entanto, se eu não posso prescindir desta presença, é porque ainda me lembro daquele Ser total que estava implícito pelo ato primitivo do meu pensamento e sem o qual ele não poderia ter sido posto.
O segundo paradoxo é que, ao querermos retirar o pensamento do Ser para que dessa forma afirmemos ainda mais o seu poder, acabamos por comprometer a sua realidade. Ao colocar-se acima da realidade, o pensamento encontra apenas o vazio que é incapaz de sustentá-lo. Será dito então que ele gera a si mesmo através da sua própria operação? Isto é sem dúvida verdadeiro, mas com a condição de não negligenciarmos duas coisas que a experiência nunca deixa de nos confirmar: a primeira é que esta operação pressupõe uma potência que deve encontrar seu próprio lugar no Ser e que depende exclusivamente de nós exercê-la; e a segunda é que esta potência deve ser atualizada, e ela só pode ser atualizada pelo próprio objeto ao qual ela se aplica e com o qual ela revela a sua solidariedade no momento em que pensava estar se libertando dele. A consequência do afastamento do pensamento é precisamente não sabermos mais que modo de existência convém atribuir a ele, o que aparece nitidamente quando o chamamos de “formal”: pois esta palavra mostra claramente que ele foi esvaziado de toda a realidade concreta, de modo que não é mais do que um ser bastardo pressupondo tanto um sujeito ontológico do qual nada nos é dito, exceto que deve fundamentá-lo, quanto um conteúdo objetivo, sem o qual ele não seria nada, nem mesmo a estrutura de algo. Assim, este pensamento que transforma o Ser em um problema que procura resolver transforma-se ele mesmo em um problema que não admite nenhuma solução. Ao se separar do Ser para pensá-lo, o eu tira a existência tanto do mundo, que não é mais do que uma aparência para ele, quanto de si mesmo, que não é mais do que uma forma, e, por uma justa contrapartida, a própria forma dessa aparência.
Assim, podemos nos perguntar se a abordagem fundamental da consciência não é precisamente o oposto da descrita. O eu não deve esperar melhor apreender a si mesmo procurando isolar-se do resto do mundo; pois esta atitude é ao mesmo tempo arbitrária e impossível: ela, em vez de nos entregar a realidade do eu, apenas a dissolve. Aquele que busca o eu antes do Ser nada encontra, ou encontra somente o ser do eu, que já é o Ser inteiro. O esforço do nosso pensamento é nos dar a consciência mais aguda do exato ponto em que o nosso eu está inserido no mundo e pô-los indivisivelmente um no outro. É através desta penetração do eu no mundo que o eu é realizado, experimentado e enriquecido indefinidamente. O conhecimento do mundo não é o trabalho de um eu já formado, mas o meio mesmo pelo qual ele se forma, pelo qual ele entra no mundo, circunscreve e amplia incessantemente o lugar que merece ocupar nele.
Devemos, portanto, deixar de opor o Ser ao Pensamento e definir o Ser como uma aspiração para um pensamento que, colocado fora dele, por assim dizer, só conseguiria fazer dele um espetáculo e, consequentemente, sempre o perderia. Pelo contrário, o pensamento deve ser visto como interior ao Ser, uma vez que fora dele não há nada; é nele que o pensamento se estabelece, que nunca deixa de se mover e de se alimentar; ele está no Ser como o Ser está nele. Portanto, em sua própria intimidade, é a própria intimidade do Ser que se torna presente para nós; é a essa intimidade que a consciência nos faz participar. Mas sabemos muito bem que o eu não é o todo do Ser; e é por isso que o mundo aparece para nós como um espetáculo que jamais terminará de nos ultrapassar e nos maravilhar. No entanto, não haveria espetáculo sem o ser secreto e íntimo do espectador. Um espetáculo não pode existir por si mesmo, como sustentam os materialistas, ou seja, independentemente daquele que o assiste e daquele que o performa. E ele não teria sentido nenhum se não criasse entre eles uma espécie de comunicação. Esta comunicação nos revelará um novo aspecto do Absoluto, que não é apenas Ser, mas também Ato, que nos permitirá compreender a aparência e o significado tanto do universo material quanto da diversidade das consciências.
É importante notarmos que as críticas que acabamos de fazer à atitude reflexiva, que muitas vezes é atribuída a Descartes, não se dirigem contra a verdadeira interpretação que deveria ser dada ao “penso, logo existo”. Pois a confiança que Descartes demonstra no pensamento vem da própria confiança com que ele se estabelece no Ser assim que descobre a sua própria interioridade. Esta interioridade é uma com a interioridade do Ser. De tal forma que o pensamento só se retraiu em si mesmo para reconhecer que ele não pode se colocar sem pôr o próprio Ser em que ele está inscrito. Isto fica claro quando ouvimos Descartes protestar que a ideia de Ser não foi envolta na dúvida universal; pois mesmo quando dúvida, ele busca um acesso ao Ser que só o pensamento é capaz de lhe oferecer. No “penso, logo existo”, não devemos esquecer que é o “existo” que dá ao “penso” o seu verdadeiro valor, e não o “penso” que o fundamenta, atenua ou limita. No argumento ontológico, é a existência absoluta e infinita de Deus que se torna o fundamento da minha existência condicional e imperfeita. E a passagem da essência à existência é realizada na criatura por uma operação do pensamento da mesma forma que ela é eternamente realizada em Deus por uma eterna criação de si mesmo. Portanto, não é surpreendente que o pensamento seja a medida do Ser; mas isto se deve ao fato de que ele está no coração mesmo do Ser como uma potência que, por direito, é coextensiva a ele.[3]
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Não é mais possível nos contentarmos em definir o Ser simplesmente atribuindo-lhe as características de universalidade, univocidade e totalidade, e depois mostrarmos que nele a extensão e a compreensão são uma e a mesma coisa. Ainda é necessário tentar fundamentar essas características e demonstrar como elas podem ser justificadas e conciliá-las com a pluralidade de seres particulares. Para isso, é importante mostrar que o Ser absoluto, de quem nada pode ser-lhe externo, só pode ser posto como um “em si”, ou seja, como uma interioridade pura da qual nossa consciência nos dá uma aproximação imperfeita e uma espécie de prova sempre precária e ameaçada. Assim, longe de considerarmos o “Ser-em-si” como um exterior inacessível que está além dos fenômenos, nós o consideraremos, no sentido oposto, como um interior que está por detrás de todas as aparências que o manifestam e com o qual a nossa consciência jamais deixa de nos fazer comunicar na medida em que ela mesma é mais atenta e mais pura. E se é verdade que a intimidade perfeita só pode residir onde o Ser age e deixa de sofrer, se, portanto, nós mesmos só existimos onde agimos, então o Ser, que é somente ser, só pode ser ele mesmo um ato sem passividade, ou seja, o ato pelo qual ele nunca deixa de fazer a si mesmo. É este ato que é o próprio interior de tudo o que é.
No entanto, nós não podemos ser confundidos com ele, uma vez que apenas o participamos. Mas, nesta mesma participação, poderemos compreender a natureza deste ato, a relação que ele mantém conosco e com todos os seres, e a própria forma como, sustentando a todos, permite que eles sejam distintos e unidos. Pois é sem dúvida muito verdadeiro dizermos que pensar e querer é dar o ser a si mesmo. Mas o poder que dispomos é limitado, e ninguém negaria que ele é sustentado por um outro poder que o excede, do qual ele toma emprestado a sua eficácia e cujo ele postula a unidade, primeiro porque nenhum poder pode receber diferenciação a não ser a da matéria à qual ele é aplicado, — e não de sua própria essência, — e segundo porque o poder mais humilde, no momento mesmo em que começa a se exercer, sente que há nele uma infinitude virtual, como há na série dos números desde que o primeiro deles foi posto; e, finalmente, porque esta unidade se encontra implicada pela própria exigência que está no fundo de cada um de nós de que o pensamento e a vontade de todos os seres sejam capazes de chegar a um acordo e cooperar entre si. Portanto, é necessário manter a univocidade do Ser sem a qual o mundo se desmorona e, ao mesmo tempo, mostrar como ele pode, sem se romper, explicar a possibilidade de todos os seres particulares, que diferem tanto do Ser total quanto uns dos outros em grau, valor e dignidade. Só a identidade do Ser e do Ato nos permite resolver este difícil problema forçando-nos a rejeitar o panteísmo para o qual poder-se-ia pensar que estávamos inclinados a princípio: mas para isso tivemos que nos render ao sentimento de que esta univocidade implicava uma tal homogeneidade entre o Todo e as partes, que as próprias partes tinham que perder toda a sua independência e a serem abolidas no Todo. Pelo contrário, pensamos que só existem verdadeiramente partes no Todo se cada uma delas for capaz de adquirir uma existência interior, ou seja, de se constituir no Todo por um ato de participação, que é o único ato que lhes permite pôr a si mesmas como o próprio Todo se põe, e permanecer unidas a ele no mesmo processo em que se separam dele.
A — O segredo da criação não deve ser procurado em um passado distante ou em um misterioso além cujo o acesso nos permanece fechado: ele está dentro de nós mesmos. Observamos a cada instante o nascimento do eu na existência; e o seu nascimento sempre acompanha a sua existência, ele é, por assim dizer, simultâneo a ela. É um eufemismo dizer que o eu é a origem de sua representação: ele é antes de tudo a origem de si mesmo. Se sua atenção vacila ou repentinamente desvanece, tudo lhe é acometido à morte e ao nada; mas desde que ela reapareça e recomece a percorrer os diferentes aspectos deste vasto mundo, o eu encontra nele uma morada. Portanto, é a mesma coisa para o eu ser e pôr a si mesmo. E nenhum outro ser pode pô-lo em seu lugar: pois ele só conseguiria colocá-lo como uma representação, só colocaria o seu corpo. O testemunho mais seguro da consciência mais lúcida é que o eu reside precisamente neste ponto interior e indivisível onde se realiza o ato pessoal e incomunicável do consentimento ao ser. Este ato é sempre um primeiro princípio: e o eu é um com ele.
Não que este ato não implique certas condições sem as quais ele não poderia ser posto: mas estas condições o limitam sem alterar a sua essência; elas lhe dão um campo de aplicação; mas não alteram seu próprio exercício.
Em todos os casos, ele permanece para mim um primeiro princípio. Mas o é somente em relação a mim. Em primeiro lugar, ele implica sempre uma possibilidade que me é oferecida e que depende de mim implementá-la. Mas esta possibilidade em si mesma não é indeterminada: ela é inseparável de certas situações em que minha vida já se encontra engajada e fora das quais eu só teria uma possibilidade vazia que não seria possibilidade de nada. Portanto, devo aceitá-las, em vez de negá-las. Elas se incorporam com o eu: e longe de considerá-las como obstáculos acumulados em seu caminho, é preciso que ele veja nelas os próprios instrumentos à sua disposição. O eu deve desejá-las como deseja a si mesmo. Assim, a natureza, longe de contradizer a liberdade, é sempre aceita por ela, seja porque não deseja senão abandonar-se a ela, seja porque se compromete em elevá-la.
B — Vemos então como o nome Ato, que agora substituímos pelo nome Ser, nos permite dar um passo à frente na concepção da relação entre a consciência finita e a intimidade infinita. Se nos limitarmos a dizer que o ser que me é próprio é um ser que recebo, que não é coextensivo ao Ser total, mas que não é, no entanto, heterogêneo em relação a ele, a unidade do todo é resguardada, mas o panteísmo ainda nos ameaça. No entanto, este ser só é meu com a condição de que eu possa dispor dele e, por assim dizer, dá-lo a mim mesmo. Nesse ponto, o meu ser torna-se interior a mim mesmo: ele se confunde com o ato pelo qual eu me criei. Mas esta interioridade nunca é perfeita: pois eu sou um ser duplo, que, no fundo de mim mesmo, encontro um objeto do qual me separo e ao qual eu sempre permaneço externo. Há apenas Ser total para aquele que, em si mesmo, não possui nada que lhe seja exterior. É penetrando nele que eu penetro em mim mesmo, mas sem jamais conseguir esgotar sua infinita ipseidade.
A mesma relação ficará ainda mais clara se considerarmos em sua essência pura o próprio ato pelo qual eu digo “eu”. Este ato nunca é livre de toda passividade. O próprio mundo dos fenômenos testemunha a sua limitação: a complexidade e a riqueza crescente deste mundo fenomenal manifesta, nesta mesma limitação, uma variedade de aspectos e uma fecundidade de renovação que nos mostra que ela é em si mesma de uma abundância desmedida. Aqui a nossa limitação já faz com que irrompa por todos os lados o infinito que nos excede.
Há mais: este ato é meu, mas sem que eu possa considerar como meu o próprio poder que ele implementa. O eu encontra diante de si uma possibilidade que exprime o próprio ser que lhe é proposto, mas que só se torna seu através da disposição que tem dele. No entanto, na vida pessoal do eu, esta disposição é tudo. Portanto, se o Ser total envolve em si todos os seres particulares, o Ato infinito, que é uma liberdade pura, só pode se tornar um ato participado se der a todas as consciências a faculdade de se separarem dele a fim de constituírem a si mesmas através de um ato que lhas seja próprio.
A participação aqui é o fundamento da independência, não a sua abolição. Pois de que outra forma uma liberdade poderia se comunicar, exceto despertando outras liberdades ao seu redor? Pensar que o ser mais perfeito inclui em si mesmo os seres menos perfeitos assim como o corpo maior contém outros corpos menores, é ignorar as relações espirituais que existem entre os seres e substituí-las por relações materiais entre as coisas. O espírito não obedece às mesmas leis que os corpos. O espírito mais poderoso e mais puro não é aquele que dita sua lei em torno de si para transformar todos os seres ao seu redor em objetos dóceis sobre os quais ele exerça seu próprio reinado. Ele não quer ser servido por escravos. E se ele pretende ser imitado, é para suscitar em todos os lugares que age liberdades semelhantes à sua, dotadas de iniciativa, capazes de responsabilidade, e que por sua vez se tornam causas de sua própria existência através da colaboração na obra da criação. A participação é o dom de uma possibilidade cuja realização cabe a nós. A palavra participação designa um ato pelo qual eu realizo o que eu sou, ou seja, pelo qual coloco a mim mesmo através de uma série de passos que nunca deixo de retomar e de modificar. Mas em que posso participar, assim como todos os seres particulares que fazem parte comigo do mesmo universo, senão de um Ato que põe a si mesmo eternamente? E a participação me obriga a colocar-me temporariamente por um ato ininterrupto de liberdade, sem o qual eu mesmo seria apenas o trabalho de outro, um testemunho aparente de sua atividade, e não um ser verdadeiro que encontra em si mesmo a própria fonte de tudo o que é e de tudo o que lhe pertence. A prova mais visível deste caráter da participação, que permite ao eu realizar sua independência pessoal com a ajuda do próprio dom que recebeu, é que ele pode captar, isolar e voltar contra a sua própria origem a liberdade de que dispõe, cujo o uso é dado em suas mãos, mas que nunca lhe pode ser tolhido.
C — Podemos compreender assim como o eu é em si mesmo um ser misto. Há nele, por um lado, um impulso interior que o solicita e o anima, mas que o ultrapassa de uma tal maneira que, quando cede a ele, parece que não é nada mais do que uma passividade pura. Há, por outro lado, um dado que o detém, um estado que parece ser-lhe imposto e com o qual ele não pode se identificar sem se entregar a uma nova passividade que é, por assim dizer, oposta à anterior. Que uma ou outra destas duas formas de passividade triunfe, e o próprio eu expira. Mas a sua originalidade própria é a incapacidade de se confundir com uma ou com outra; ele estabelece uma passagem entre elas e o vemos virar-se ora a uma ora a outra através de um consentimento puro. Entretanto, como notamos na atenção, no amor e na graça, há um certo cume da atividade onde estas duas formas de passividade parecem se unir, onde o chamado que me é dirigido se confunde com a resposta que me é dada, onde a atenção se torna uma com a própria luz que a ilumina, onde o amor se realiza além da sua própria expectativa, onde a graça e a vontade não podem mais ser discernidas. Mas é quando todos esses conflitos reaparecem que o eu adquire mais profundamente a consciência do seu papel, de seu relacionamento consigo mesmo, com as coisas, com outros seres e com Deus; isto o obriga a entrar numa dialética viva na qual a inteligência e a vontade são exercidas e associadas, mas a fim de preparar aquele sucesso perfeito no qual ambas parecem ter se tornado inúteis e quase que abolidas por si mesmas.
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A desconfiança que sentimos em relação à metafísica decorre menos de acreditarmos na impossibilidade do pensamento ultrapassar a aparência a fim de alcançar o ser do que da impotência que observamos no ser finito de abraçar adequadamente o todo de que faz parte e que o excede infinitamente por todos os lados. Mas há três motivos que nos permitem remediar este medo. O primeiro é que, por mais humildes que desejemos nos fazer, a nossa existência como tal é um absoluto que, de acordo com as palavras de Kierkegaard, está sempre de face com o Absoluto; a segunda é que nós só nos sentimos esmagados quando reduzimos o nosso ser ao nosso corpo, que se encontra perdido em meio àquela imensidão do espaço e do tempo em que ele permanece ausente, enquanto que o menor grau de liberdade que pareça nos pertencer confere-nos aquela emoção incomparável de participar da dignidade do poder criativo. O terceiro e último motivo é que se nós, ao considerarmos o Todo, procurarmos nos igualar a ele mas sem jamais conseguirmos, é nosso egoísmo que sofre, não a nossa inteligência ou a nossa vontade, que subitamente viriam a carecer de alimento. E de que forma elas poderiam se queixar de que o mundo jamais deixe de fornecê-las?
Estamos sem dúvida equivocados ao pensar que existe em nós uma ambição metafísica pela qual nosso eu individual, impaciente com seus limites, não atribui a si mesmo outro fim senão o de repeli-los, como se quisesse engolir a totalidade da realidade dentro de si. Em outras palavras, é como se ele buscasse uma solidão todo-poderosa onde todos os obstáculos teriam desaparecido, onde não haveria nada mais que ele não possuísse. Mas esta solidão seria insuportável; por mais estreitos que sejam os limites da solidão, nós sempre procuramos rompê-los, nunca ampliá-los. Quando dizemos que o atributo mais alto de Deus é que ele é criador, não queremos dizer que ele é semelhante a um artesão que admira eternamente a obra perfeita que saiu de suas mãos; mas que ele chama eternamente à existência seres distintos de si mesmo, aos quais ele dá o sopro da vida para que eles se tornem autores do seu próprio destino e procurem formar com ele uma sociedade espiritual. E nós também buscamos fora de nós mesmos aquilo que não somos nós, não para absorvê-lo em nós mesmos, mas para nos regozijarmos com sua presença e para multiplicá-la. Toda a nossa atividade, mesmo aquela do pensamento, obriga-nos a abandonarmo-nos num movimento desinteressado e generoso, em vez de pensarmos apenas em adquirir e reter algum bem que só ela desfrutaria, como faz a avareza. O ato mais elementar produz um efeito que se desprende de nós e que deve ser abandonado para que seja entregue a todos. Subsistindo sem mim a verdade da ideia buscada pelo conhecimento, posso contemplá-la, perdê-la, encontrá-la, comunicá-la aos outros.
Não é verdade que eu jamais consiga introduzi-la na minha vida subjetiva; pois é, ao contrário, graças a ela que eu consigo transcendê-la. As próprias coisas que resistem à mão ou ao olhar são também um apoio sobre o qual eles se regozijam em repousar; meu corpo não os inveja; ele os chama ao seu redor para permitir que seus sentidos sejam exercidos e que seus movimentos sejam realizados. E o que podemos dizer sobre o amor, que é a própria alegria que sinto ao encontrar fora de mim um eu que não é o meu eu, cujos movimentos mostram uma iniciativa que lhe é própria e com a qual eu estou sempre envolvido, embora ela nunca deixe de se renovar e me surpreender? Para este outro ser e o eu, toda distinção é abolida entre dar e receber, e a sua mera existência no mundo é suficiente para me preencher. A natureza do amor é me fazer sentir com extrema intensidade a presença do outro como um outro, e não fazer dele apenas uma extensão da minha própria presença para mim mesmo. Daí a singular acuidade deste sentimento que é o sinal do seu valor metafísico, pois é nele que o problema da relação entre o eu e o não-eu se põe da maneira mais urgente, e é também nele que recebe toda a luz que lhe é suscetível.
É um erro, portanto, acreditar que o eu encontra o não-eu apenas para superá-lo e assimilá-lo. Longe de rejeitar a alteridade, ele não deixa de chamá-la. Pois a natureza do Ato é fazer irromper a riqueza do mundo e não dissipá-la. Ele é a intimidade de tudo o que é. Ele nos ensina a descobrir esta intimidade e não a reduzi-la. Assim que ela se desvela, o eu não pode deixar de se comunicar com ela. A sua própria intimidade e a intimidade do mundo são uma só. E esta identidade não se revela através de uma aniquilação da intimidade do mundo em benefício da intimidade do eu, mas por uma penetração da intimidade do eu na intimidade do mundo. Então as diferenças entre as formas originais do Ser se acentuam em vez de se aniquilarem, cada uma delas assumindo dentro do Todo um papel que não pode ser cumprido por nenhuma outra. Vemos aparecer diante de nós coisas que nos limitam e que nos separam das outras consciências, mas que atuam como testemunhas e sinais que, por sua verdade e beleza, atualizam as potências que estão dentro de nós e formam os caminhos que nos levam precisamente aos outros seres. Mas é somente quando encontramos esses seres e percebemos seu parentesco conosco que temos a certeza de que conseguimos atravessar os nossos próprios limites, quando descobrimos a fonte comum da qual eles haurem conosco, que um mundo se abre diante de nós como uma pátria espiritual cujos habitantes deixam imediatamente de ser estranhos uns aos outros. E não há reflexão mais instrutiva do que aquela que pode ser feita sobre o uso mais natural da palavra intimidade. Pois sempre falamos de intimidade com os outros, mesmo sabendo que, por direito, só há intimidade conosco mesmos. No entanto, é necessária a primeira para alcançar a segunda.
Assim, todas as formas de existência que estão no mundo formam um vasto sistema de mediações. Isto significa que todas elas são necessárias umas às outras para se sustentarem e que a unidade do Ser jamais será rompida. Não nos surpreende que a existência resida sempre no exato ponto em que a mediação ocorre, ou seja, onde o ato é realizado. A vida da consciência não é um esforço de assimilação e conquista. Ela se assemelha a um diálogo, e mesmo um diálogo quíntuplo, consigo mesma, com as coisas, com as ideias, com as pessoas e com Deus. E a filosofia deve ser corretamente chamada de dialética se sua função original no mundo é precisamente a de construir uma arquitetura de conceitos, mas na qual encontramos apenas as condições de possibilidade de todos esses diálogos, onde mostramos como eles se articulam e se hierarquizam e como eles pressupõem diferentes interlocutores cuja essência mesma não é anterior ao diálogo, mas é definida e constituída com ele e por ele. É esta dialética que a vida implementa. Assim, vemos que a filosofia não é uma reflexão sobre um ser já feito, mas que, no próprio âmago do Ser, ela nos obriga a participar do Ato mesmo através do qual ele é feito. Este ato só pode ser um ato livre. Recusar-se a realizá-lo é aceitar ser apenas uma coisa para os outros e não um ser. Este ato livre não é nada mais do que uma iniciativa que eu tenho a disposição, mas é impossível não provar de uma emoção extrema quando penso que ela abala todo o universo, e que o universo inteiro não cessa de responder a ela. Ela entra no tempo porque a vida do eu deve ser limitada e progressiva para que ele não possa ser confundido com Deus e nem reduzido ao estado de uma coisa. Mas o tempo não consegue fazer com que abandonemos o Ser, no qual a nossa vida já deixou um rastro indelével. A cada instante, a representação que temos do mundo é exatamente proporcional às potências que podemos exercer, ou seja, ao nosso poder. Mas o que fizemos de nós mesmos ao nos inscrevermos no Ser não pode mais ser expulso dele. E era necessário que entrássemos no tempo para que nós mesmos pudéssemos, através do nosso próprio ato, ocupar o nosso lugar na eternidade.
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Excerto retirado da conferência Être et Acte, prounciada em 11 de junho de 1935, em Marselha, para os membros da Société d’Études Philosophiques
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Bônus: Recomendações de leitura ao interessado em Louis Lavelle.
por Helkein Filosofia
Comentário: Louis Lavelle pode ser visto como estranho a seu tempo: em um mundo prestes a afundar-se ou no niilismo ou em seus parentes, o filósofo resolveu tomar a direção inversa e fazer metafísica. O desespero, que alimenta tantos tipos de pensamento, nasce da constatação do abismo sob os pés; uma queda constante, um devir cruel, i.e, uma sensação de que nada há senão o caos que, uma vez camuflado por nossas elucubrações, volta do princípio dos tempos para nos pegar. Mas se é assim, o que a filosofia pode fazer? Ela pode fornecer bases fixas e certas, o regramento da realidade que nos mostra que o caos está antes em nossa incapacidade de compreender a ordem. O que o desesperado precisa não é constatar sua miséria e permanecer nela; ele não precisa amar sua miséria, amar seu estado decaído e crer que suportaria, impávido, um destino em que tudo se repetisse eternamente ou que fôssemos meros entes atirados no ser; o que ele [o desesperado] precisa é do instrumento final da filosofia: a disciplina do ser enquanto ser. Não sei se Lavelle pensou assim, mas o dado é que agiu como se tivesse — e talvez também por isso tenha se tornado um autor tão querido. Forneço aqui algumas sugestões de leitura ao interessado naquele que por vezes foi chamado de Platão do sec. XX.
Urge que sigamos a sugestão do autor e leiamos seus escritos populares. Sendo assim, em primeiro lugar, creio que a melhor porta de entrada seja o magnífico A Consciência de si; logo em seguida vem o tão necessário O Mal e o Sofrimento e então talvez um dos livros mais estranhos a seu tempo que saíram da pena de nosso filósofo, O Erro de Narciso. Resta então, quanto aos escritos populares disponíveis em português, a coletânea de artigos Ciência Estética Metafísica, um livro misto, dado que seu conteúdo pode, em linguagem jovem, “ir de zero a 100 muito rápido” e passar de uma simples resenha a um comentário de física quântica. Deixo o Regras da Vida Cotidiana a critério do leitor, dado que o livro é constituído de anotações que o filósofo não pretendia publicar.
Creio que todos os livros sugeridos sejam de leitura livre, i.e., podem ser lidos a qualquer momento sem que exijam muito mais do que atenção redobrada — dado que o autor é famoso por escrever pouco e dizer muito. Mas a coisa muda totalmente de figura quando falamos de A Presença Total, o “livro de divulgação metafísica” [sic] de Lavelle, em que ele busca apresentar um resumo [sic, novamente] de sua imensa Dialética do Eterno Presente, coleção de que gozamos de apenas um mísero volume em português, a saber, Do Ser. Para ambos os citados roga-se que o leitor tenha feito o dever de casa, a saber, conhecer mais ou menos os dois mil anos de filosofia que ocorreram antes de Lavelle começar a escrever suas obras. Há muitas outras obras escritas por Lavelle e principalmente muitas outras que não possuem traduções para o português; por outro lado, creio que as recomendadas aqui darão ao interessado um bom panorama das idéias do filósofo.
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Revisão de Heitor Rodrigues
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Notas:
[1] Este é, também, o ponto que possibilita o solipsismo, uma chaga específica da filosofia idealista. [N.E.]
[2] Este é o processo que apontado por Voegelin como distanciamento reflexivo: o filósofo abstrai-se em razão de res cogitans, coloca o mundo entre parênteses, mas, nisto, passa a crer que sua capacidade de prescindir do mundo o retira dele. Aqui ocorre a falácia de concreção deslocada que caracteriza o idealismo, uma retirada de si mesmo da realidade que faz com que a percamos e, a partir daqui, é possível até pensar que somos, no limite, um cérebro numa cuba. Lavelle explicará isso, a seu modo, nos próximos parágrafos. [N.E.]
[3] O editor considera a bondade com que Lavelle interpreta Descartes quase contagiante, algo como a praticada por Mário Ferreira dos Santos ao comentar outros autores que gosta. Mas não devemos notar que a interpretação lavelliana possui a curiosa virtude de inverter o cogito cartesiano numa espécie de cogito agostiniano. []N.E.
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