Por Louis Lavelle
Tradução de Johann Alves
Se atualmente testemunhamos em todo o mundo um renascimento do pensamento metafísico, é porque ele atende a uma exigência do espírito que o positivismo e a teoria do conhecimento fizeram-nos esquecer longamente, mas a qual jamais conseguiram suprimir por completo. E para satisfazê-la, não devemos hesitar em afirmar que a essência filosofia é nos remeter à fonte movente do nosso ser individual e secreto, que constantemente busca, como disse Kierkegaard, a sua absoluta relação com o Absoluto.
É possível que nutramos uma desconfiança com em relação à filosofia e que a consideremos como um esforço estéril e impotente para alcançar uma realidade que nos é escondida. Entretanto, também reconhecemos que é necessário que a realidade nos seja escondida e que só possamos penetrá-la através de um ato pessoal, de forma que, pelas poucas revelações que nos são concedidas, sejamos capazes de adquirir tudo o que podemos ter de ser e de vida: pois tudo o mais é para nós como se não fosse.
Podemos ainda censurar a filosofia e considerá-la um mero jogo de conceitos destinado a tapear nossa curiosidade e a exercer nossa subtileza. No entanto, tal censura é menos uma crítica que se faz a ela do que uma exigência; pois assim esperamos que ela não seja apenas um jogo, mas a consciência mesma da nossa vida no processo de criar a si mesma; uma vida cujas raízes se aprofundam em todo o universo, que contribui para mudar a sua face, mas sobre a qual pretendemos escolher a direção e assumir a responsabilidade. A filosofia nasce com a consciência e com ela termina. Sua sede é coração humano no momento em que questionamos não o que as coisas são, mas o que somos nós e a vocação à qual somos chamados em um universo do qual dependemos, mas que também depende de nós. A dificuldade da filosofia, a ansiedade e o estremecimento que ela nos provoca, decorrem do fato de que ela nunca é exclusivamente teórica, de que ela envolve o destino do nosso eu mais íntimo na concepção mesma que faz do mundo, de que ela sempre nos remete à origem do movimento pelo qual o nosso ser cria a si mesmo, de que ela só pode dar um sentido à vida se este sentido for não apenas compreendido, mas também aceito, desejado e, por assim dizer, realizado a cada instante através do nosso pensamento e da nossa ação. E todos os escárnios direcionados à filosofia são apenas o efeito de uma frustração que sentimos no impulso mesmo que nos conduz até ela: são a marca de um amor desiludido.
Também não se deve pensar que a filosofia possa ser servida ao enclausurá-la na pesquisa de certos problemas particulares, limitando as suas pretensões e a subordinando à investigação positiva, de onde ela tomaria a certeza e o rigor que, de outra forma, parecem lhe faltar. Desse modo, não se faz mais do que defraudá-la. E podemos até mesmo, numa tentativa de salvá-la, vinculá-la à ciência e pedir-lhe para somente interpretar os seus métodos e resultados. Mas quem não percebe que todos afastam-se dela precisamente porque assim ela deixa de nos interessar pelos únicos problemas com os quais ela começou a nos tocar e comover, que ela deixa de nos prometer a única coisa que dela esperávamos, e também que as conquistas sempre novas e imprevisíveis da ciência trazem-nos uma satisfação imediata e direta, diante das quais os comentários que a filosofia se propõe a acrescê-las são sempre pálidos e desbotados? Não que a filosofia possa romper todas as relações com a ciência, uma vez que, pelo contrário, cabe a ela demonstrar como nascem diante dos nossos olhos todas as aparências que a ciência estuda, e como a ciência é capaz de estabelecer entre elas aquelas ligações abstratas pelas quais a nossa consciência adquire uma posse sobre um mundo que lhe era estranho, mas do qual ela fará o veículo do seu destino. Contudo, a ciência não tem privilégio sobre este ponto: pois a filosofia deve considerar igualmente a arte, a moral e a religião, isto é, todos os testemunhos desta potência criativa infinita pela qual o espírito procura libertar e possuir a si mesmo através de todas as obras que produz.
Não há cético, agnóstico, cientista apegado ao fato ou indiferente confinado à busca de utilidade e entretenimento que possa abafar em si esta questão essencial que cada um de nós sempre coloca sobre seu próprio ser: pois é esta questão que constitui o nosso próprio ser. Até então, ele não é mais do que uma possibilidade. O que somos e o que seremos depende da solução que dermos a ela. E mesmo evitá-la já é resolvê-la, pois às vezes ela se resolve sem nós. Mas isso porque nos faltou a coragem que permitir-nos fixar nosso olhar, tanto em nós mesmos como no mundo, naquele ponto de supremo interesse que silencia todas as demais preocupações assim que é evocado e fora do qual todos os objetos habituais da atenção e do desejo perdem todo o sentido e tornam-se as marcas da nossa frivolidade ou do nosso desespero.
Não é de se surpreender que, numa época conturbada como a nossa, a alma humana, que quase sempre se sente ameaçada, deixada à sua própria sorte no abandono ou na insegurança, e que talvez esteja provando de um estado violento e doloroso no qual muitas vezes parece se comprazer em vez de procurar se libertar, volte-se mais uma vez à filosofia para pedir-lhe as chaves desta aventura na qual se sente arrebatada.
Não que a filosofia possa se tornar uma espécie de esquecimento ou refúgio para nós. Isso seria precisamente essa filosofia conceptual que deixa o contato com a realidade para substituí-la pelo conhecimento. No entanto, esse conhecimento já não nos contenta mais. A própria amplitude dos acontecimentos em que estamos envolvidos, a intensidade dos sentimentos que nos afetam, a falta de conexão entre um presente que nos ultrapassa, um passado que nos recusa qualquer ensinamento e um futuro que nos interdita todos os projetos, a impossibilidade daquela paz interior onde a reflexão outrora comprazia em se estabelecer, obrigam-nos a encarar face a face o próprio sentido da existência que recebemos, a implementar no instante as potências mesmas pelas quais nossa vida se enraíza na realidade e cujo exercício muitas vezes esquecemos ou adiamos. O mistério do Ser é um com o mistério do nosso próprio ser: e ele só pode ser penetrado uma vez que o pensamento tenha se tornado lúcido e agudo o suficiente para alcançar o ponto de união com o Absoluto; ou seja, esse ponto de supremo interesse em que desejamos o que somos com uma vontade eterna que ilumina cada um dos nossos atos particulares, e no qual estamos prontos para realizar com alegria qualquer sacrifício.
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Mas é precisamente a palavra “absoluto, que vai nos causar todas as dificuldades. Primeiramente, devemos reconhecer que a essência da filosofia, o que buscamos dela e o que ela nos promete, é nos fazer sentir a presença do Absoluto que transfigura o evento mais humilde da vida e lhe confere uma profundidade desmedida. E é ainda ao evocar o Absoluto, embora o negando, que o pensamento relativista é um pensamento filosófico. Entretanto, alguns argumentarão que o Absoluto está, por definição, além do nosso alcance, que nunca o colocamos senão como a origem e o suporte de todas as nossas ações, ou como um objeto de fé ou esperança, mas que não poderia se concretizar para nós sem que a nossa existência individual fosse abolida. Outros esperam que o Absoluto lhes seja revelado como um termo que suspenderia e satisfaria simultaneamente todos os nossos esforços e desejos, e no qual poderíamos obter o repouso e a posse de todos os bens que alguma vez nos serão oferecidos. Mas não é dessa maneira que o absoluto deve ser compreendido. Pois o Absoluto não é um fim situado fora de nós cujo aspiramos; ele é o terreno mesmo sobre o qual a nossa vida deve aceitar se estabelecer desde o seu primeiro passo. Ele não é o ponto onde a nossa atividade, ao se consumar, viria a morrer, mas o princípio vivo donde ela nunca deixa de extrair toda força de que dispõe e toda eficácia de que é capaz. Nunca nos afastamos do Absoluto por prudência ou por humildade, como se acredita, mas sempre por falta de coragem. Pois a palavra Absoluto não é usada para designar uma ambição ilegítima de um pensamento puro, mas sim essa atitude de suprema gravidade interior que traduz um compromisso de todo o nosso ser, que lhe impõe a responsabilidade pelo o que ele pode ser e exige dele que a carregue. Todos os homens sentem que é por meio deste compromisso de sua vontade mais constante e profunda, ainda mais do que pelo conhecimento, que a sua relação com o Absoluto é estabelecida. Somente então eles descobrem a sua vocação metafísica, que é tomar seu lugar no mundo contribuindo para criá-lo, ao invés de permanecerem exteriores a ele como espectadores curiosos ou indiferentes. Todos os homens sentem que deles depende realizar esta vocação ou perdê-la: e assim que deixam de se iludir sobre a sua própria vida, provam de um sentimento de angústia se o Absoluto parece lhes escapar, e recebem uma luz e uma alegria incomparáveis se o menor dos seus pensamentos ou a menor das suas ações manifesta o seu caráter e revela a sua presença, em vez de escondê-la.
Nada mais fácil do que repetir os argumentos tradicionais contra o Absoluto. Pois será dito que esse pensamento do Absoluto é a própria marca da nossa impotência e da nossa miséria; o Absoluto só aparece em nossa consciência para nos mostrar até que ponto estamos separados dele. Vivemos no relativo; nunca conhecemos o objeto tal como ele é, mas apenas as relações sensíveis que ele tem conosco; nunca penetramos na consciência nem mesmo do amigo mais íntimo: temos com ele apenas relações afetivas imperfeitas e precárias, que permanecem sempre ilusórias até certo ponto; e se há um absoluto por trás das nossas representações, elas são uma relação entre ele e nós que o esconde ainda mais do que o revela. Daí também esta oposição clássica que começa a surgir a partir da própria origem do pensamento filosófico, entre um mundo de fenômenos, que é aquele em que falamos e vivemos, e um mundo de realidades, no qual mergulharíamos através da parte mais essencial e mais misteriosa do nosso ser, mas sobre o qual jamais teríamos conhecimento algum. Entretanto, ninguém pode negar uma comunicação entre estes dois mundos. O relativo e o absoluto, por sua vez, só fazem sentido um em relação ao outro, uma vez que eles formam os dois termos de um mesmo casal; o fenômeno e o ser só se opõem porque o fenômeno pertence ao ser e também o possui de certa forma. Além disso, estes contrários não são colocados no mesmo plano: um deles é privilegiado em relação ao outro; pois o relativo não é a negação do Absoluto, e deve até mesmo estar inscrito nele, uma vez que nada pode ser excluído do Absoluto, que é a origem e a síntese de todos os relativos. Da mesma forma, há um ser do fenômeno, que não é externo ao Ser total, mas que faz parte dele, embora seja necessário uma infinidade de fenômenos para atingir sua totalidade.
Desde modo há, se assim se pode dizer, uma experiência do Absoluto que deriva, antes de tudo, de uma determinada direção que damos ao nosso pensamento. Rejeitar o Absoluto fora do mundo é recusar elevar até ele o que nos é solicitado. É uma abdicação e uma fuga. E para esta fuga, o tempo fornece uma espécie de pretexto. Pois o Absoluto deve ultrapassar o tempo, uma vez que não há nada nele cuja presença possa ser retirada ou adiada, ao contrário do que acontece no mundo da sucessão, onde todos os acontecimentos da nossa experiência fluem incessantemente. Deveríamos dizer então que não podemos encontrar o Absoluto sem que o fluxo do tempo fosse interrompido? Nós sempre vivemos no instante, e se somos a todo momento rechaçados de um instante ao outro, é porque não conseguimos encontrar o Absoluto em lugar nenhum. Mas se não cabe a nós pararmos o instante fugaz — como pediu Goethe — depende de nós não fugirmos com ele, mas acessarmos a eternidade através dele. E como nenhuma relação pode ser destacada do Absoluto em que ocorre, nem nenhum fenômeno do ser sem o qual ele não teria realidade nem mesmo como fenômeno, todos os instantes transitórios, que variam incessantemente em seu conteúdo, devem encontrar um lugar em um eterno presente que os separa e que os concilia, que é o meio comum de todas as consciências e do qual nenhuma delas jamais saiu e jamais sairá. Esta é a experiência que temos do Absoluto: neste ponto indivisível onde a relação, ao colocar a si mesma, coloca também a sua própria dependência; onde o fenômeno pede para se firmar no ser; onde, no presente, o instante é sempre renascente.
O retorno a uma filosofia do Absoluto é para nós a condição de seriedade do pensamento e de profundidade da vida. Mas tememos que, ao nos darmos de imediato o termo que é para o espírito o objeto mais elevado e mais inacessível, fechemos logo em seguida todos os caminhos da reflexão, como Parmênides é censurado de tê-lo feito; e que, esmagados por esta aparência de sucesso, tenhamos bloqueado e paralisado para sempre o próprio ímpeto de consciência que desejávamos fornecer. Mas este ímpeto não parece depender, ao contrário, do sentimento que temos da nossa própria insuficiência e do esforço pelo qual tentamos repará-la? Portanto, será necessário demonstrar como o Absoluto se revela para nós alternadamente na forma de Ser e na forma de Ato, e como esta dupla revelação permite que a nossa própria vida constitua a si mesma por uma operação independente que, em relação a si mesma, é um primeiro começo, ou seja, um testemunho da sua liberdade, e que, em relação ao Absoluto, apresenta as características de uma participação.
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Não há nenhum problema que tenha solicitado tanto a atenção dos filósofos quanto o do primeiro termo. E, no entanto, sabemos que esta expressão carrega em si uma espécie de contradição: pois a primazia que lhe atribuímos já implica uma subordinação da reflexão a uma ordem temporal, enquanto esta ordem temporal em si mesma ainda está em questão. Mas esta antinomia será superada se lembrarmos que, pelo nome de primeiro termo, nada mais entendemos do que aquela pura presença da qual nenhum dos instantes da sucessão pode ser separado e sem a qual nenhum deles poderia ser pensado.
Além disso, devemos evitar o preconceito que poderia nos conduzir a confessar que este primeiro termo é obtido pela força de um pensamento que, renunciando ao único método a que tem direito, e deixando de remontar pouco a pouco do condicionado à sua condição, nos obrigaria, no que lhe diz respeito, a inclinar-nos diante de um milagre sem explicação. Mas existem dois tipos de explicações: uma que convém apenas aos fenômenos e nos mostra como cada um deles depende de outro que o preceda e o determine, e outra precisamente adequada aos princípios, que mostra como eles mesmos produzem as razões que os justificam ao fundamentar tudo aquilo que, sem eles, não poderia existir.
Em ordem dessa dupla razão, somente o Ser merece o nome de termo primeiro: pois existe uma solidariedade tão estreita entre o Ser e o presente que não podemos imaginar o nada senão na forma de uma ausência, e assim que uma das formas de presença desaparece, como a presença sensível, temos a impressão de que o próprio Ser se desvaneceu. Por outro lado, não podemos prescindir do Ser sem aniquilar tanto o objeto quanto os meios de toda explicação: pois só pode haver dedução de certos aspectos do Ser, mas não do Ser em si mesmo, que contém todos estes aspectos, bem como a lei que os distingue e os unifica.
Contudo, não apenas o pensamento do Ser deve receber uma forma mais precisa, também deve ser demonstrado como ele é pressuposto e implicado por todas as operações do nosso espírito. Ora, para este fim, é importante submeter à crítica dois postulados que são tacitamente reconhecidos como verdadeiros pelas mais diferentes doutrinas que contribuíram para nos fazer esquecer toda reflexão sobre o Ser, embora façam dele, por assim dizer, determinações iniciais: a primeira é a oposição do sujeito e do objeto, que é posta tanto como um fato da experiência quanto como a condição sem a qual toda experiência seria impossível; a segunda é aquela volta do sujeito a si mesmo da qual Descartes, no “penso, logo existo”, deu uma descrição imperecível, incorporada para sempre na consciência da humanidade, mas que logo em seguida tornou impossíveis todos os movimentos pelos quais o sujeito tenta sair de si mesmo a fim de alcançar uma realidade que o ultrapassa.
Em certo sentido, a oposição do eu e do não-eu é, para todos os seres, mais simples e mais familiar do que aquela distinção pela qual o eu coloca a si mesmo, considerando o não-eu como uma idéia ou uma representação, ou seja, como uma de suas modificações. Pois afirmar o eu primeiro é tanto pressupor o não-eu quanto proibir a si mesmo de afirmá-lo. Mas podemos nos perguntar se o objetivo essencial da reflexão não é superar esta oposição do eu e do não-eu, sem a qual a própria consciência seria impossível, não, como tem sido feito até aqui, para dar ao eu uma espécie de privilégio e tentar deduzir o não-eu a partir dele, mas, seguindo um caminho completamente diferente, para reconhecer que o eu e o não-eu são especificações do mesmo Ser. Sem dúvida, será dito que isso é um retorno ao estado de indistinção que a oposição do sujeito e do objeto precisamente aboliu: mas não é isso o que queremos. Basta-nos que essa oposição não esconda a unidade do Ser dentro da qual ela se originou e na qual não deixa de se refazer a todo momento, permitindo-nos descobrir e desenvolver a sua riqueza e constituir o nosso próprio ser através de uma relação com o Ser total, que é sempre posto em questão e sempre inesgotável. O eu e o não-eu não introduzem no Ser uma dualidade que nunca conseguiríamos superar: não produzem nele ruptura alguma; ambos são afirmados nele e o elo que os liga é o próprio testemunho de sua indivisibilidade. É notável que, precisamente por não querermos ver o eu, o não-eu e a sua relação como inscritos no mesmo ser, imaginamos que o Ser verdadeiro, cujo a consciência nunca pode prescindir e jamais deixa aspirar, está além dessa relação; escondido e não revelado por ela, de modo que, ao procurá-lo onde ele não se encontra, impedimos a nós mesmos de encontrá-lo no lugar em que está.
A distinção entre sujeito e objeto expressa, por conseguinte, uma primeira análise do Ser. Mas o que é admirável e o que não foi suficientemente notado, é que o sujeito sempre permanece no Ser e não tem necessidade abandoná-lo. Empreender uma tal análise é, para todos nós, afirmar o ser mesmo que nos pertence e estabelecer a singularidade de todas as relações que o unem ao Todo do qual ele faz parte. E este Todo deve sempre nos ultrapassar, fornecendo-nos incessantemente o poder pelo qual buscamos nos igualar a ele. Por outro lado, a nossa originalidade mais profunda reside precisamente nesse poder pelo qual assumimos, em cada ponto do universo, uma consciência original do Todo em que estamos inseridos. E também é necessário que encontremos nosso lugar nele, revelando-nos a ele sob uma perspectiva única e privilegiada; descobrindo entres as suas partes relações que só têm sentido para nós e das quais somos, até certo ponto, sempre os artífices e os criadores.
É nesse contacto entre o eu e o não-eu que tomamos consciência do ser em seu ponto extremo. É essa união e essa identidade, sempre buscada e sempre perdida, que se realiza em certos momentos abençoados através da atenção, da graça ou do amor. Todos demais estados da nossa vida dispersam essa consciência, mas sem jamais abolir a comunidade do ser, sem a qual as suas diferenças nem sequer seriam percebidas. Isso torna-se evidente quando observamos como o eu e o não-eu limitam-se mutuamente, mas ao mesmo tempo se superam, como se, assim que um é colocado, o outro testemunhasse imediatamente a infinitude do Ser do qual o primeiro teve de ser destacado para defini-lo. É assim que, por um lado, o objeto parece-nos necessariamente limitado e imperfeito, enquanto o sujeito o domina e o envolve com seu poder virtual que sempre transcende tudo o que pode lhe ser dado. Por outro lado, todo ato do sujeito permanece abstrato, ineficaz e incompleto na presença do objecto mais humilde, que ele busca penetrar e reduzir: este último possui uma riqueza real, cuja representação mais completa e mais sutil jamais será adequada.
Mas esta dupla superação do eu pelo não-eu e do não-eu pelo eu é singularmente instrutiva, porque ela nos revela que, se a atualidade do objeto e a potencialidade do sujeito são ambas infinitas, elas se sobrepõem, mas é ao se oporem que fazem aparecer a multiplicidade de formas finitas de existência, que permitem que cada consciência finita percorra pelo mundo em um itinerário que deve ser traçado tanto por sua natureza, quanto desejado por sua liberdade.
Podemos assim responder todas as objeções clássicas que têm sido dirigidas contra a ideia do Ser como o objeto e a origem de toda reflexão. De fato, não devemos esperar da ontologia uma nova revelação que nos colocaria repentina e milagrosamente na presença do Ser. Seu papel é mais simples, mais vivo e mais belo. A revelação do Ser começa com a vida; ela nunca deixa de se renovar, diversificar e aprofundar. Mas não há nenhuma experiência possível cujas características ainda não estejam presentes nesta experiência que temos diante dos nossos olhos. Quem ainda não soube descobri-las aqui e agora não as descobrirá em lugar nenhum. Pois o Ser nunca é um objeto separado que podemos opor ao que vemos e fazemos para contemplá-lo separadamente: ele é a própria revelação do que nós sempre vimos e fizemos, que dá a todas as coisas que temos diante de nós esse significado, essa luz, esse relevo e essa intensidade que fazem com que nós sempre nos maravilhemos de que seja essa realidade tão familiar que nos revele, por assim dizer, não apenas o Ser sob a aparência, mas o próprio ser da sua aparência. É a continuidade e a unidade desta experiência que não deve ser nem fragmentada nem interrompida que nós expressamos ao dizermos que o Ser é unívoco: isto poderia ser aceito sem dificuldade se pensássemos que, em primeiro lugar, ao distinguirmos na palavra ser acepções distintas, faríamos surgir mundos inferiores semelhantes ao limbo, aos quais a sua própria presença no Absoluto deveria ainda garantir-lhes o mínimo de ser que consentíssemos em lhes conceder, pois não há zona intermediária entre o Ser e o Nada; e, em segundo lugar, que o ser que atribuímos às formas particulares da realidade não é um ser separado que gozaria de existência própria se igualando de alguma forma ao Absoluto, mas que é comum e oferecido a todos ao mesmo tempo, como o lugar que os contém e como a fonte da qual eles haurem todos os bens que poderão algum dia possuir e que será sempre proporcional à pureza da intenção e ao ardor do desejo que há neles.
Tampouco deixaremos nos deter por outras objeções, como a de que a noção de Ser é tão evidente e tão comum que não existe uma consciência que não a reconheça implicitamente como a condição mesma da sua possibilidade; este é, de fato, o sentido de nossa tese: no entanto, pensamos que esta confissão não nos permite dispensar rapidamente este Ser implícito em toda parte e esquecê-lo, o que então privaria o pensamento e a vontade de todos os seus fundamentos. Tampouco o aceitaríamos como a mais vazia e abstrata de todas as noções, uma vez que o Ser é justamente aquilo a que não se pode acrescentar nada e a fonte mesma de tudo que pode ser descoberto; não podemos sequer considerá-lo como o termo onde todas as outras noções convergiriam e se reuniriam, pois, ao contrário, elas dividem-no e tomam dele emprestado tanto a sua realidade quanto todas as relações que as unem. A busca do Ser não é, portanto, a busca de um objeto distante que fugiria constantemente de nós e que poderia sempre nos escapar. É um esforço para tomar posse de uma realidade que está sempre presente e sempre dada, mas é tal que é através dessa tomada de posse que a nossa realidade se constitui. Esta observação já nos permite suspeitar de que a descoberta é uma participação e que esta, através da união do participante e do participado, é o próprio Ser.
Fim da Primeira Parte
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Excerto retirado da conferência Être et Acte, prounciada em 11 de junho de 1935, em Marselha, para os membros da Société d’Études Philosophiques
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Bônus: Recomendações de leitura ao interessado em Louis Lavelle.
por Helkein Filosofia
Comentário: Louis Lavelle pode ser visto como estranho a seu tempo: em um mundo prestes a afundar-se ou no niilismo ou em seus parentes, o filósofo resolveu tomar a direção inversa e fazer metafísica. O desespero, que alimenta tantos tipos de pensamento, nasce da constatação do abismo sob os pés; uma queda constante, um devir cruel, i.e, uma sensação de que nada há senão o caos que, uma vez camuflado por nossas elucubrações, volta do princípio dos tempos para nos pegar. Mas se é assim, o que a filosofia pode fazer? Ela pode fornecer bases fixas e certas, o regramento da realidade que nos mostra que o caos está antes em nossa incapacidade de compreender a ordem. O que o desesperado precisa não é constatar sua miséria e permanecer nela; ele não precisa amar sua miséria, amar seu estado decaído e crer que suportaria, impávido, um destino em que tudo se repetisse eternamente ou que fôssemos meros entes atirados no ser; o que ele [o desesperado] precisa é do instrumento final da filosofia: a disciplina do ser enquanto ser. Não sei se Lavelle pensou assim, mas o dado é que agiu como se tivesse — e talvez também por isso tenha se tornado um autor tão querido. Forneço aqui algumas sugestões de leitura ao interessado naquele que por vezes foi chamado de Platão do sec. XX.
Urge que sigamos a sugestão do autor e leiamos seus escritos populares. Sendo assim, em primeiro lugar, creio que a melhor porta de entrada seja o magnífico A Consciência de si; logo em seguida vem o tão necessário O Mal e o Sofrimento e então talvez um dos livros mais estranhos a seu tempo que saíram da pena de nosso filósofo, O Erro de Narciso. Resta então, quanto aos escritos populares disponíveis em português, a coletânea de artigos Ciência Estética Metafísica, um livro misto, dado que seu conteúdo pode, em linguagem jovem, “ir de zero a 100 muito rápido” e passar de uma simples resenha a um comentário de física quântica. Deixo o Regras da Vida Cotidiana a critério do leitor, dado que o livro é constituído de anotações que o filósofo não pretendia publicar.
Creio que todos os livros sugeridos sejam de leitura livre, i.e., podem ser lidos a qualquer momento sem que exijam muito mais do que atenção redobrada — dado que o autor é famoso por escrever pouco e dizer muito. Mas a coisa muda totalmente de figura quando falamos de A Presença Total, o “livro de divulgação metafísica” [sic] de Lavelle, em que ele busca apresentar um resumo [sic, novamente] de sua imensa Dialética do Eterno Presente, coleção de que gozamos de apenas um mísero volume em português, a saber, Do Ser. Para ambos os citados roga-se que o leitor tenha feito o dever de casa, a saber, conhecer mais ou menos os dois mil anos de filosofia que ocorreram antes de Lavelle começar a escrever suas obras. Há muitas outras obras escritas por Lavelle e principalmente muitas outras que não possuem traduções para o português; por outro lado, creio que as recomendadas aqui darão ao interessado um bom panorama das idéias do filósofo.
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