Por Edward Feser
Tradução, notas e comentários de Helkein Filosofia
Erwin Schrödinger pertence ao grupo de pensadores do início do século XX que estiveram cientes do caráter profundamente problemático do mecanicismo herdado do início do período moderno – e, em especial, que tal concepção da matéria, ao invés de viabilizar uma solução materialista para o problema da cisão entre a mente e o corpo, na verdade, cria o problema e impossibilita sua resolução em termos materialistas.
A razão não tem (como supõem alguns), essencialmente, nada que ver com a mecânica quântica da qual Schrödinger foi um dos pais. Por outro lado, tem algo que ver com um tema filosófico relativamente simples, apresentado pela primeira vez por filósofos feito Malebranche e Cudworth e, nos últimos anos, propagado por Nagel e Swinburne. Dois textos relevantes são o ensaio de Schrödinger, Sobre a Peculiaridade da Cosmovisão Científica (de O que é a Vida? E outros Ensaios Científicos) e o capítulo 6 de seu Mente e Matéria, intitulado “O Mistério das Qualidades Sensoriais” (reimpresso em O Que É Vida? Seguido de Mente e Matéria e Fragmentos Autobiográficos – há um volume recente que não contém o ensaio anterior).
Resumindo o que comentei em publicações anteriores, o tema em questão é que o movimento dos modernos em direção a uma redefinição da matéria como desprovida de cor, odor, sabor, som, etc., (características pelas quais o sensus communis a compreende) tornou estas qualidades inexplicáveis em termos materialistas. Caso alguém afirme a existência tanto da matéria (conforme modernamente definida) quanto das qualidades sensíveis (“qualia”, como passaram a ser conhecidas e transferidas do mundo para a mente), então parece que se compromete com uma forma de dualismo entre a mente e o corpo (seja de substância ou propriedades).[1] A única maneira de evitar tais dualismos é rejeitar a existência da matéria (a solução de Berkeley), dos qualia (como faz o faz, explicitamente, o materialismo eliminativista e, implicitamente, os outros materialistas) ou a concepção mecanicista que origina o problema (via aristotélica geral, ainda que o aristotelismo contenha uma forma não-cartesiana de dualismo – aquele que David Oderberg chama de hilemórfico – que nada tem de ver com qualidades sensíveis).[2]
É certo que Schrödinger não chega, explicitamente, a uma conclusão anti-materialista; apenas observa que a “objetivação da matéria” – remoção conceitual de tudo aquilo que remeta ao sujeito ou à mente (Cf. distinção de Thomas Nagel entre “objetivo e subjetivo”) – torna a mente mesma profundamente misteriosa. Isto é compatível com perspectivas como o “misterianismo” de Colin McGinn ou a “lacuna explanatória” de Joseph Levine, que afirmam o materialismo, mesmo negando que possamos entender (ou, no caso de Levine, que entendamos) as razões de sua veracidade.[3] Não que Schrödinger afirme algo assim; ele meramente destaca, sem tentar resolver, o problema levantado pela concepção moderna de matéria (considero as posições descritas como inviáveis; seria o mesmo que responder a Gödel: “talvez a consistência de um sistema formal com aritmética computável seja internamente comprovável; o negócio é que nossas mentes são incapazes de saber como se prova”).
O foco de Schrödinger jaz antes no paradoxo epistemológico da “objetivação” da matéria do que no problema da cisão entre a mente e o corpo; como comentado em Sobre a Peculiaridade da Cosmovisão Científica:
Estamos enfrentando uma situação estranha: enquanto todos os elementos que constituem a cosmovisão [científica moderna] são fornecidos pelos sentidos enquanto órgãos da mente, enquanto o quadro do mundo permanece para todos um construto mental, nele, a mente não tem existência demonstrável; [a mente] permanece estranha nesta concepção, não tem lugar nela e não pode ser encontrada em lugar algum. (p.216)
Ou seja, o quadro que a ciência moderna pinta (imbuída numa concepção mecanicista) do mundo natural é desprovido de qualidades sensoriais ou qualquer coisa “subjetiva.” Entretanto, o quadro em si existe apenas na mente das pessoas – dos cientistas – e é baseado na evidência sensível, i.e., nas qualidades que se recusa a localizar na natureza.[4]
Este paradoxo epistemológico foi um dos principais temas do livro de E.A. Burtt, Os Fundamentos Metafísicos da Física Moderna (Burtt é, como já comentei, um dos vários estudiosos do século XX que destacaram o caráter problemático da revolução mecanicista antes que o tema fosse esquecido, pelos acadêmicos, n´algum ponto da década de 1960). Mas sabe-se disto há muito tempo – na verdade (como nos recorda Schrödinger) remonta até o século V a.C. e, em especial, a Demócrito, um dos pais do atomismo. Num fragmento célebre, o filósofo imagina um diálogo entre o intelecto, que deve (como naturalmente se supõe) defender o banimento dos qualia pelos atomistas, e os sentidos, que defendem o modus probandi dos atomistas:
Intelecto: “A cor é por convenção, da mesma forma que o doce e o amargo; há, na verdade, apenas átomos e vazio”.
Sentidos: “Pobre espírito, é de nós que receber as tuas certezas e agora nos [sc. os sentidos] derrubas? O nosso derrube é tua ruína”.[5]
Devemos ter em conta que Demócrito está, louvavelmente, apontando uma dificuldade da teoria que ele mesmo defende, e não sabemos como ou mesmo se ele tentou resolvê-la. Não é evidente que algum entre os materialistas (vulgares) posteriores tenha feito melhor, embora muitos tenham feito pior; de fato, aqueles do tipo Novo Ateu normalmente não demonstram saber que há, em primeiro lugar, um problema, situação que inclui, infelizmente, Daniel Dennett, um famoso filósofo da mente. Ele endossa, explicitamente, uma posição eliminativista (confira, por exemplo, seu ensaio Quining Qualia) referente aos qualia – algo meritório, uma vez que qualquer materialista consistente deve, em última análise, defender esta posição. O que não podemos elogiar é sua cegueira para os enigmas filosóficos de sua própria posição e também a caricaturização das perspectivas anti-materialistas em geral, assim como sua recusa em admitir que os oponentes do materialismo possuem motivos robustos para sua discordância.
Schrödinger descreve plausivelmente as origens de tal cegueira (ao menos nos cientistas; filósofos como Dennett deveriam ser exemplos melhores) em O Mistério das Qualidades Sensoriais, onde escreve:
Teorias científicas são úteis para facilitar o exame de nossas observações e achados experimentais. Todo cientista sabe o quão difícil é memorizar um grupo moderadamente extenso de fatos antes que ao menos algum quadro teórico acerca deles tenha sido formado. Não é, portanto, de estranhar, e de forma alguma deve – se censurar os autores de ensaios originais ou de livros – texto, que depois que uma teoria razoavelmente coerente tenha sido formada, eles não descrevam os fatos nus que encontraram ou que desejam levar ao leitor, mas os vistam na terminologia daquela teoria ou teorias. Esse procedimento, ao mesmo tempo em que é útil para que memorizemos os fatos em um padrão bem – ordenado, tende a obliterar a distinção entre as observações reais e a teoria que vem delas. E, uma vez que as primeiras sempre são algum tipo de qualidade sensorial, facilmente se pensa que as teorias dão conta das qualidades sensoriais, o que, é claro, elas nunca fazem. (p. 164)[6]
Em situações semelhantes, neurocientistas que partem, como é normal que o façam os cientistas empíricos, de observações – i.e., de experiências conscientes cujo caráter é determinado por vários tipos de qualia – confeccionam descrições teóricas de processos neurais associados à percepção. Mas tais descrições assumem, por assim dizer, vida própria, parecendo mais reais do que as experiências que as originam; assim, a linguagem utilizada para tratar da experiência passa para o modelo teórico. Nisto, explicações do “calor” como movimento molecular passam a parecer, em especial quando associadas a dados neurocientíficos, explicações do calor como forma de qualia tátil; explicações do “vermelho” enquanto luz num certo comprimento de onda se passa por explicações da cor como qualia visual e assim por diante.[7]
Mas isto é confundir as coisas e incorrer em falácia de equívoco.[8] Os principais conceitos teóricos – movimento molecular, comprimento de onda, disparo neural, etc. – são sempre compreendidos à luz do mecanicismo, advindo dos primeiros modernos, e exclui, de pronto, causas finais, qualia e tudo o que não se encaixe numa definição de matéria em termos matemáticos. “Explicar” qualidades sensoriais em termos “científicos” (i.e., mecanicistas, “objetivados”) é, na verdade, mudar de assunto. Filósofos anteriores perceberam isto e por isso tão poucos foram materialistas – pois viram que os qualia não poderiam, por definição, serem “materiais” em sentido moderno. Mas gerações posteriores – e, em especial, a atual geração de cientistas, tão especializada que, muitas vezes, aparenta ser menos educada filosoficamente do que seus antecessores – esqueceram a história deste conceito. Este esquecimento, a superficialidade filosófica, aliada ao sucesso prático da ciência moderna, lhes – ou ao menos entre os mais populares de seus escritores – solidificaram num cientificismo grosseiro que pressupõe a inexistência de problemas filosóficos ou ao menos a ausência daqueles que a ciência não possa responder.
Assim, quando surgem filósofos – sejam dualistas ou naturalistas sofisticados feito Searle, Nagel ou Chalmers – apontando que as “explicações” neurocientíficas sobre a consciência não dão conta de fenômenos relevantes, parece que estão inventando um novo problema, numa tentativa desesperada e obscurantista de salvar a crença na dignidade humana, quando, na verdade, estão apenas mostrando um problema muito antigo, criado pelo próprio modelo mecanicista e do qual os filósofos das gerações anteriores estavam cientes. A verdade é que o cientificismo promove o obscurantismo, na medida em que ignora distinções conceituais claras, e força toda a vida intelectual num escopo metodológico preguiçoso. A concepção mecanicista, herdada dos primeiros modernos, é antes uma posição filosófica problemática e aporética, que cria querelas insolúveis, do que uma descoberta científica.
Não viso, aqui, grandes postulados – uma vez que este é, em grande medida, o que busquei no livro A Última Superstição. Há, obviamente, diferentes vias pelas quais um materialista pode seguir para desviar dos problemas postos (embora eu mesmo não creia que algum deles seja bem-sucedido). O importante é que os problemas existem. Qualquer naturalista que os descarte como motivados por fanatismo religioso ou irracional é, decerto, ignorante ou desonesto, uma vez que Demócrito, Schrödinger, Burtt, Searle, Nagel, Chalmers e outros não tinham [nesta questão] interesse teológico. Não precisamos recordar que nosso conhecimento sobre o cérebro avançou muito desde o século V a.C.; mas, falando filosoficamente, a história do materialismo, desde Demócrito até Dennett, marca o percurso de um declínio.[9]
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Trechos de Schrödinger retirados de O Que É Vida? – O Aspecto Físico da Célula Viva – Seguido de Mente e Matéria e Fragmentos editado pela Editora Unesp
Notas:
[1] No limite, o mecanicismo depende de uma concepção análoga à que trata a matéria como res extensa e a mente como res cogitans. [N.T.]
[2] O dualismo hilemórfico trata as substâncias como comunicáveis entre si e não como esferas hermeticamente distintas. Isto evita tanto o problema da interação quanto o isolamento da matéria no âmbito da extensão – i.e., mecanicismo. [N.T.]
[3] Há muitos problemas nestas formas de materialismo. O primeiro é constituir uma petição de princípio: o materialismo é verdadeiro mesmo que não entendamos a razão e, caso a compreendamos, ele será verdadeiro. Outro, e este serve para o misterianismo, é fugir do problema inferindo que nossa limitação cognitiva impede sua resolução; todavia, é uma reposta “coringa” na medida em que trata como insolúvel tudo o que o modelo misterianista não resolve. É, em suma, uma posição eliminativista. [N.T.]
[4] O modelo teórico da ciência moderna representa o mundo desprovido de qualidades; entretanto, as pessoas reificam o modelo como se ele fosse o mundo que representa. Nisto, confunde-se a pessoa real e seu desenho feito em preto e branco. O modelo existe apenas na mente das pessoas e, entretanto, o modelo não comporta e nem explica aquilo que o confecciona, a saber, a mente humana. Numa perspectiva olaviana, isto configura uma forma grosseira de paralaxe cognitiva. [N.T.]
[5] Demócrito Fr.552. Podemos encontrar sua explicação em Os Filósofos Pré-Socráticos p.435, de onde retiramos, ainda, a tradução do segundo trecho. [N.T.]
[6] 109 na versão brasileira
[7] É comum que confundamos uma descrição física (quantitativa) com a descrição quiditativa (referente ao que a coisa é). Quando, segundo o exemplo feseriano, identificamos a descrição da cor enquanto certo comprimento de onda com a cor mesma e, nisto, dizemos que na verdade não há cores, apenas a percepção da cor, incidimos nesta forma de confusão. Quando percebemos a cor, aceitando se trata de certa configuração de um feixe de fótons, a percepção ocorre por conta da realidade do feixe – e do objeto iluminado – em contato com os olhos Se a cor não existisse, de alguma forma, não apareceria para nós. O modelo das “coisas destituídas de cor” é, portanto, limitado. A descrição física das cores não é errada, o erro consiste em sua redução enquanto qualia a um modelo quantitativo reificado, o que configura, nos termos de Whitehead, uma falácia de concreção deslocada. A mesma falácia pode ser observada, por exemplo, quando um materialista procura reduzir o amor ou a consciência uma série de processos químicos ocorridos no cérebro. [N.T.]
[8] O equívoco ocorre quando uma conclusão depende do uso ambíguo de um termo que ocorre, ora num contexto, ora noutro, na mesma argumentação. [N.T.]
[9] Posições de viés materialista foram, desde os primórdios da filosofia, marginalizadas. No tempo dos Pré-Socráticos e no escopo do estudo da physis, tal pensamento foi considerado eqüivalente a seus pares; entretanto, após a ascensão da metafísica pelas mãos de Platão e a refutação do atomismo pelas mãos de Aristóteles, o “materialismo antigo” foi sepultado e assim permaneceu, ao lado de posições feito o ceticismo, segregadas como formas de filodoxia pelo menos até seu renascimento pelas mãos do pensamento moderno. Entretanto, as aporias materialistas, que dependem, no limite, de uma cosmovisão imanentista, são as mesmas desde o princípio. Em termos voegelianos, configuram um eclipsamento da realidade. [N.T.]
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