Tradução de David Malaquias
Politizar a sala de aula corrompe as virtudes acadêmicas, enquanto nos encoraja a esquecer a ideia do que é uma universidade, o espírito que a anima e a experiência fundamental que nos oferece. Por “politizar” quero dizer certo engajamento advindo de proponentes de uma moda ideológica dominante que é, em suma, como dito celebremente por Max Weber, a substituição de discursos por palestras.[1] A universidade é, historicamente, entendida como um espaço onde prevalecem outros parâmetros para além do mero modismo e da volatilidade das opiniões; não é, assim, essencial que as universidades mantenham seu compromisso de buscar a verdade? Quero, então, aqui, considerar como podemos recuperar o espírito que anima a ideia de universidade, tendo em vista que a politização é agressiva contra padrões recebidos ou práticas habituais, como se não fossem mais do que relações de poder arbitrárias que devem ser desmascaradas, dissolvidas ou reconstruídas em prol de reformas tidas como necessárias ou desejáveis.
O fato da politização nos força a perguntar: é possível que mantenhamos ou restauremos a idéia tradicional de universidade após seu questionamento ostensivo? É possível que defendamos um compromisso com o tradicional enquanto compatível com a autoconsciência e a autocrítica? Não podemos nos esquivar de tais questões, ainda que creiamos que estamos perdendo algo que poderia ser restaurado ou preservado. Restaurar implica transcender o momento num processo de complementa a tradição na medida em que esclarece seus fundamentos, quiçá obscurecidos pelo tempo. A tradição acadêmica exige a experiência transcendente naquele ponto onde a tradição não pode falar por si mesma, algo conhecido desde o tempo de Sócrates, que no diálogo [platônico] Eutífron desafia a definição convencional de piedade para que levemos a verdadeira piedade a sério.[2]
Sendo assim, devemos enfrentar o desafio de estarmos inclusos ou exclusos de uma tradição. Tradições, como se costuma afirmar, não podem, uma vez questionadas, defender-se adequadamente ou persistir em voga caso precisem se tornar mais do que uma conduta corriqueira; entender a si como “tradicionalista” já é, por conseguinte, um distanciamento do que se defende enquanto se constrói uma estrutura forma necessariamente abstraída do todo a ser defendido. A implicação do problema é que tradições em geral possuem pouco a dizer de si mesmas – isto ignorando que elas podem ter escapado, até o momento, de questionamentos – e, assim, simplesmente esperam por algum questionamento e, neste sentido, o eterno compromisso de desmistificação jaz defronte de nós, acenando para que concluamos que desacreditar é a mais alta das conquistas intelectuais, e que a suspeita triunfa sobre a afirmação. O “compromisso de descrer” fundamenta, implicitamente, outra alegação: a de que tradições expressam uma estrutura fixa e rígida em vez de uma forma flexível de responder a mudanças inevitáveis; [o conceito de tradição] não pode envolver a expansão ou incorporação de elementos que, a princípio, pareçam alheios; a vontade de descrer e o culto à descontinuidade caminham juntos. Tais atitudes, que tanto permeiam o pensamento moderno, estão abertas a questionamentos na medida em que ainda não dispomos de resposta para eles. A propósito, como dito por Karl Jaspers em uma de suas grandes defesas da universidade do século XX:
“A universidade não apenas tolera mais exigem que pessoas que se oponham a seus objetivos sejam admitidas desde que estejam de acordo em postular e discutir suas crenças e questionar seus dogmas no âmbito da universidade […] mas, caso procurem dominá-la através de tais crenças, se na seleção de candidatos agem com parcialidade em relação a seus colegas, caso substituam a liberdade intelectual pela propaganda profética, então entrarão no mais agudo conflito com o resto da universidade que objetiva manter a idéia de uma universidade.”[3]
Em suma, a universidade não é nem um mero movimento sectário e nem um duto através do qual fluem forças sociais ao mesmo tempo, em que se adquirem adereços intelectuais; é um local de espécie bem particular, com padrões próprios e distintos, e seus membros são nela iniciados principalmente por associação e absorção e, através da aprendizagem, de suas práticas. É o lugar em que todas as vozes podem ser ouvidas, mas também em que o engajamento político não é, especificamente, a ferramenta dos concorrentes para prevalecer enquanto silencia sua oposição.
Os políticos respondem raivosa e impacientemente à reflexão filosófica genuína na medida em que julgam a qualidade do colóquio segundo seus próprios critérios, a saber, se as conclusões [do colóquio] foram ou não aprovadas de antemão por eles mesmos e, assim, negam o princípio de liberdade acadêmica que consiste principalmente em fomentar a investigação enquanto fim em si mesma e como componente essencial na missão de explorar o alcance da autorrealização do ser humano.[4] Enquanto unidos pelo compromisso de entender, com a maior precisão possível, o que houver para ser entendido, nosso senso de auto-constituição – expresso no compromisso supracitado – é limitado pelo diálogo que distingue o intercâmbio com universidades de outros lugares.[5] A politização manifesta atributos inevitáveis, não necessariamente ligados a um programa ideológico específicos, que consistem numa luxúria por mudança, num entediar-se perante conversações, numa preterição da reflexão em prol do ativismo, na crença de que cada momento é o prenúncio duma crise capital, na busca de uma vida autêntica através da formação política, na rejeição da tradição por medo de sofrer influência do passado, na idealização de um padrão de existência história segundo o qual as condições atuais existem enquanto caricatura ou distorção meramente acidental seja na medida em que não fora dirigida pelo programa correto ou por ter sido delineado por uma elite oculta e conspiracionista.
Uma vez que as instituições humanas são encarnações visíveis da luta defensiva contra nossa existência temporal e mortal, a politização consiste numa maneira de responder à inelutável temporalidade da existência humana na medida em que exige a submissão a programas independentemente premeditados e, assim, tais engajamentos alimentam-se da ilusão de evitar a insegurança através do planejamento: consolam os excessivamente ansiosos conferindo-lhes muitas tarefas para que, assim, encontrem sua identidade enquanto atores dum empreendimento coletivo, um consolo pelo fracasso em alcançar sua finalidade. As universidades nada são senão respostas para a temporalidade de nossas vidas mortais. Os fundadores das academias da antiguidade, das escolas do medievo e das universidades modernas, idealizadas como espaços de aprendizagem, respondem à experiência do eterno contido no tempo e fornecendo um lugar onde ela possa ser pensada. Este foi e é o coração do ensino liberal.[6] Ao forçar as universidades a acomodarem temas meramente contemporâneos, a idéia de um espaço de aprendizagem é reduzido a uma coleção porca de respostas que ou obscurecem, ou resistem à experiência de transcendência.
Tendo em vista que vivemos numa era que pouco respeita uma conduta habitual e inconsciente, pode-se imaginar que há, por conseguinte, maior abertura à autocrítica e também maiores oportunidades de pensar através do encontro transcendente com o ser que jaz para além de nossas individualidades, mas o dado é que a politização rejeita a preservação e a restauração. Não se pode imaginar, ativamente, o que não é politicamente motivado e, em vez disso, traduzem-se as noções transcendentes em modos de aspiração e distribuição temporal e material.[7] Na medida em que é tomada como um local de conservação e restauração, a universidade pode oferecer as suas justificativas para o ensino liberal. Mas percebemos que é dificultoso trazer as palavras corretas à tona, em especial quando defender ou falar de restauração implica em ser acusado de erigir uma atitude defensiva acerca de algo irrelevante e ultrapassado. Aqueles dedicados à mutação como um bem em si mesmo não compreendem que o ato de restaurar não é irrelevante, mas consiste na constância em meio à mudança. Se num mundo engajado em mudar os detentores da tradição podem parecer antiquados, isso se deve, em parte, por eles eloquentemente expressarem sua experiência da mudança como misto entre perda e ganho; não é que sejam menos capazes de lidar com mudanças, tendo em vista que sabem tão bem quanto todos que
Não podemos reviver velhas facções
Não podemos restaurar velhas políticas
Ou seguir um antigo tambor.[8]
Os defensores da tradição, por entenderem que mudanças significam tanto ganhos quanto perdas, estão protegidos das ilusões do moralismo revolucionário, aquele que prega que fazer algo é sempre melhor do que não fazer. Restaurar, entretanto, significa recuperar ou rever o que é permanentemente verdadeiro na condição humana. Trazer de volta aquilo que é permanente não é uma experiência puramente animadora, mas, muitas vezes, é algo sóbrio no qual se aprende a abraçar questões fundamentais ao invés de reivindicar uma vitória fácil sobre elas.
Restaurar não implica num plano de retorno ao passado e nem alfo facilmente traduzido em termos políticos; significa reconhecer o eterno persistente no presente ao mesmo tempo, em que persiste por ter lutado por sua existência. Restaurar não requer uma fixidez vocabular, mas a contínua renovação das formas de expressão. Como exemplo prático, podemos apontar que argumentos sobre o conteúdo do curriculum são necessários, mas não suficientes, tendo em vista que os convites pró ensino liberal sempre encontrarão aqueles que os aceitam ou recusam e, assim, curriculum algum pode, por si, assegurar o uso que os alunos farão dele. Quaisquer professores sabem que há momentos no aprendizado e no ensino em que a decisão de seguir o caminho mais longo e árduo deve ser enfrentado, mas não há fórmula fixa alguma que garanta o caminho a se escolher.
Restaurar é o início uma atividade tanto filosófica quanto poética, mas não política. A filosofia e a poesia, em seu melhor, iluminam o limite das pretensões da política, mas não o fazem contestando a política através do poder:
Tentando aprender a usar palavras, e cada tentativa
É um princípio todo novo e novo tipo de fracasso
Porque só aprendemos a tirar o melhor das palavras
Para o que não mais se quer dizer, ou a forma de dizer
Que não se pretende usar mais. E assim cada ventura
É um novo começo, ataque ao inarticulado
Com roto equipamento sempre mais deteriorado
Na barafunda geral da imprecisão de sentimento…[9]
Restaurar é um redescobrimento que engloba, inevitavelmente, reformulações, mas não se trata de um agregado antiquado e nem de uma reengenharia racionalista; não é dado um passo para trás ou instala-se uma nostalgia dispéptica, mas tenta-se ver o que procuramos nos interstícios do que atualmente se disfarça.
O engajamento restaurador pode ser resistido, mas não erradicado, tendo em mente que o passado é jaz necessariamente presente em nós e essa influência nos é inescapável; “voltar atrás” é, no máximo, uma metáfora. Quando estudamos as grandes obras de nossa civilização, não o fazemos para que voltemos a uma época anterior, mas sim para que tornemos vívida em nós a atualidades do pensamento e de sua resposta à condição humana na medida em que suscitamos nosso próprio pensar. Essas obras trazem à tona o diálogo, constrangem nossa subjetividade, nos livram de opiniões fáceis, impõem-nos a cara distinção entre opinião e conhecimento, entre autoafirmação e admissão de que devemos compreender o que ainda não foi compreendido.[10]
Tradição, neste sentido, é um diálogo alongado através do tempo, algo que não nos permite esquecer a presença do passado na condição humana. A promessa da tradição não é livrar-nos da mudança, mas nos auxiliar no exercício de nossa capacidade de manter nosso rumo enquanto prosseguimos entre alterações inevitáveis. Destacar a tradições não é abandonar o drama da vida, mas encontrá-lo no processo dialético intrínseco às polaridades do passado e do presente postas em nossa experiência consciente. Muito do luxurioso afã por novidades presente em nosso tempo deriva do medo de que o reconhecimento de verdades permanentes nos deixe em nada de importante a ser dito, algo muito infeliz de se crer, tendo em vista que dizer o que sempre foi verdadeiro não é dizer coisas sem importância. A questão, portanto, não trata se devemos ou não observar nossas conexões com o passado, tendo em vista que não podemos ignorá-las, ainda que possamos compreendê-las mal ou superficialmente e, assim, transformar a lembrança persistente numa mera peça de interesse histórico.[11] Como, então, devemos compreender nossa conexão com ela? Conhecer muitas culturas não é ter uma cultura, e podemos pensar nisso como uma maldição ou uma bênção. Quanto à comunicação, entretanto, podemos esperar transformar a maldição de Babel numa bênção:
“Em uma conversação, os participantes não estão engajados em um inquérito ou debate… Pensamentos de diferentes espécies ganham asas e brincam entre si, respondendo e provocando reciprocamente a cada novo esforço… não há árbitros ou simposiarca… trata-se, assim, de uma aventura intelectual sem roteiro… que jaz impossibilitada no caso da ausência de uma pluralidade de vozes, pois é nela que os diferentes universos discursivos se encontram, reconhecem-se e desfrutam de uma relação oblíqua na qual não se exige ou prevê que sejam assimilados uns nos outros.”[12]
A comunicação, nestes termos, reconhece a intrusão da novidade sem exaltá-la e, no contexto do diálogo acadêmico, é uma forma de virtude da moderação. Reconheço que isto pode parecer, para alguns, uma resposta bastante modesta à crise acadêmica, e admito que não é uma solução universal para a doença que nos assola, entretanto, precisamos nos lembrar que uma contra-politização não encerra a politização. Se alcançar um diálogo não é tudo, certamente é algo necessário, um princípio que alimenta nossas esperanças.[13] Restaurar combina tradição e conversação na interpretação e na resposta às vicissitudes da mudança e, mesmo que sejamos receptivos ao passado, devemos torná-lo nosso de modo que nos apropriemos dele. A honestidade nos obriga a admitir que todas as conquistas humanas jazem no devir – da temporalidade inelutável, portanto, da maleabilidade. O que pensamos deve ser superado para que salvemos o que não queremos perder, afeta a nossa forma de pensar como salvar o que desejamos. Restaurar é o inverso de perder incipientemente.
Somente existe a luta por recuperar o que se perdeu
E se encontrou e se perdeu vezes sem fim: e agora, em condições
Que não parecem propícias. Mas talvez nem perda nem ganho.
Para nós, existe apenas tentativa. O resto não nos cabe.[14]
Ao perceber o que jaz permanentemente presente em nós, devemos utilizar e não nos livrar dos recursos de nosso tempo e espaço, tendo em vista que experimentamos a transcendência na condição de ser historicamente situados. Há um elemento de criação poética na restauração, pois onde ela se faz presente não o faz sendo apenas antiga ou nova, não sendo, portanto, um projeto – outra novidade concorrente –, mas um interminável compromisso de nos vermos corretamente em meio a um todo misterioso nunca totalmente revelado. Restaurar aquilo que corre o risco de ser perdido não significa definir ou exigir um fundamento seguro, um estado de coisas independente de apropriação ou interpretação; buscar por um conjunto de condições às quais possamos nos apegar, esperando que, assim, nos livremos da chaga do devir e das circunstâncias, é certa falta de fé.
Para que entendamos essa falta de fé, consideremos noções alternativas à relação entre o ceticismo e a fé. O ceticismo de Sto. Agostinho para com o mundo, por exemplo, referia-se a uma fé engendrada no encontro com o divino na medida em que visava algo para além deste mundo, em que estabelecia uma oposição à dependência do sucesso mundano e à conquista histórica. A fé em monumentos mundanos era, em verdade, uma falta de fé. Mas, há muito tempo, seguimos o caminho inverso: aprendemos a ser céticos tanto sobre as realidades invisíveis quanto com o compromisso com os chamados “estudos inúteis” que não servem a políticas ou ao aprimoramento técnico da engenharia social.
O ceticismo socrático, ou o agostiniano, referente ao mundanismo, é a consciência de que o exame honesto de nós mesmos e dos assuntos terrenos [a “vida esclarecida”] nos convida a confessar certa arrogância intelectual, um fingimento pecaminoso. Como o Sócrates platônico parece demonstrar a seu confrade no diálogo Hiparco,[15] não podemos acusar levianamente os outros da vulgaridade do amor pelo ganho se não considerarmos que é impossível ser humano sem isso. A pergunta consiste, assim, no seguinte: que tipo de ganho buscamos? Tanto para os Socráticos quanto para os Agostinianos, o mundo está repleto de contingência e incerteza; é um plano complexo e misterioso que nunca será completamente revelado sobre os quais os homens não têm poder suficiente, necessitando, assim, da graça; é um mundo no qual, loucamente, os ímpios prosperam e os inocentes sofre; ambos reconhecem que a “ofensiva e incompreensível” escravidão do tempo e do espaço habitam no centro de sua experiência.
A escolha, portanto, só pode ser alternativa à nossa mortalidade e temporalidade. Ao restaurar, presta-se atenção à presença do não-temporal, do eterno, encontrando na tensão entre nossas circunstâncias contingentes e o transcendente ao homem. A perpetuidade desta tensão – e nossa capacidade de tomar consciência dela – nos direciona à tarefa de restaurar de forma que vejamos, novamente, o que é o homem. A resistência em identificar a centralidade desta tensão manifesta-se na educação e também em outros postos, mas, ainda assim, a universidade continua sendo o local da restauração enquanto espaço visível dedicado à aprendizagem.
A característica fundamental de todo ensino ou aprendizagem é ser filosófico e poético. As instituições de ensino liberal incorporam diversos professores e estudantes com motivações igualmente variadas, inclusas preferências vocacionais e profissionais manifestas em expressões idiomáticas que podem ser anti-filosóficas ou anti-poéticas. A especulação, entretanto, é indispensável em todo o processo. Karl Jaspers expressou eloquentemente a idéia de universidade, e urge que voltemos nossa atenção a ele para que prestemos homenagem à sua corajosa persistência em afirmar tal noção diante da adversidade totalitária do sec. XXI; é humano, comenta Jaspers, “viver na consciência do todo abrangente, cultivando o próprio campo profissional para que ele se torne como um reflexo do todo”.[16]
Os professores definem a si e a suas vocações de diversas maneiras, mas cada um vive e se move numa atmosfera animada pela idéia de universidade, não escondendo o que os limites alcançáveis pelo pensamento humano, mas exemplificando a medida correta através do diálogo. Como dito por Jaspers, a universidade é o local que nos proporcional “uma existência modesta, sem outra vocação senão a de pensar; e a paz que isso requer”.
“A ideia da universidade vive, essencialmente, em cada estudante e professor apenas acidentalmente na forma de instituição. Uma vez que vida desvanece, a instituição é incapaz de salvá-la. Entretanto, a vida, o essencial, pode ser despertado apenas através de um homem para outro… o estudante procura pela idéia, jaz pronto para ela, mas fica realmente perplexo quando percebe que ela não advém dos professores.”[17]
Jaspers discorre como, o ponto de vista da vocação filosófica e ao contrário daqueles que gozam do vasto apoio do aparato acadêmico e da técnica profissional, o filósofo:
“[…] nada por trás dela senão uma história filosófica singularmente grandiosa em seu espírito, mas nula sociologicamente… devido à nossa clareza e convicção, não somos nós, os filósofos, que estamos engajados em algo que nossa impotência torna ilusório e absurdo? A autoconfiança nessa situação é restaurada, em primeiro lugar, por uma sóbria lembrança dos princípios da filosofia e, em segundo lugar, por trazer de volta à mente a idéia da universidade como instituição independente dedicada à verdade filosófica”[18]
Nesta passagem de sua Memória Filosófica, recolhe suas reflexões sobre sua situação: a tarefa re recolher-se e a maneira de restaurar. Reparemos no destaque da atividade reflexiva jasperiana na tarefa de restaurar no decorrer de sua vida:
“A sensação de caminhar, de alcançar cada um dos sucessos de nossa existência temporal apenas na forma imperfeita de um novo “avante” me trouxe – através da sorte de uma carreira profissional que assegura a ausência de limites para meu trabalho – muitos anos de estudo sobre os grandes defuntos. Absorvi, sistematicamente, tudo o que chegou até nós e que cri ter compreendido. Contaram-me, quando criança, sobre a Antigüidade e a Bíblia, mas apenas agora os levei, conscientemente, a sério enquanto os pilares de nossa vida histórica ocidental, não enquanto meras autoridades, mas enquanto desafios a serem ouvidos e traduzidos para o presente.”[19]
Filosofando:
“Deveria também resultar no reconhecimento modesto de que nenhum homem é tudo, nem mesmo o maior, e que quando eu definitivamente me percebo e sei onde estou, eu estou mais definitivamente necessitado dos outros… Mas, ainda na tenra idade, esbarrei nos limites que não nos permitem acreditar que haja harmonia na realidade… com certeza, também procuro pelo ponto em que todos os conflitos cessam. Mas, uma vez que estou aqui e não lá, essas minhas ideias devem se tornar aparentes nas consequências para minha vida e ações no mundo… o mundo como um todo não pode ser compreendido como racional, mas eu, dentro dele, posso me decidir por ser razoável… A vontade racional de raciocinar, que deve ainda ser sustentada o tempo todo por algo mais, pela Existenz; a consciência das origens, que são insondáveis; a vontade básica de ser permeado na ação pelo presente manifesto através do qual a eternidade fala… Esse tipo de razão se incorpora na existência de uma realidade histórica, e no pensamento de suas ordens.”
“Seria inútil querer conhecer nossa era com o objetivo de aprender o que abraçar… Não podemos descobrir o que os tempos requerem, o que é oportuno, e então planejar satisfazer essa exigência. Cada um, pela sua vida original, é um fator em seu tempo… o ponto da filosofia permanece além de cada era e de todo tempo.”[20]
Para permanecer diante do transcendente é necessário “render-se para se tornar ele mesmo, prova contra o sucesso ou fracasso. É de significado temporal por sua atividade no mundo… O que será mais depende de cada indivíduo, de maneiras que são incapazes para ele como um todo.” O propósito da universidade é, portanto, resistir ou, de fato, rejeitar a centralidade da atividade política na medida em que este persegue seu próprio ethos. Isso não significa que a política será rebaixada aos olhos do mundo e nem que seja tarefa da universidade “governar” a política, tendo em vista que tais pretensões são meramente risíveis num mundo de ganhos e perdas. A universidade apresenta, como sua contribuição, aquilo que só pode ser realizado através do desprendimento da política. O objetivo acadêmico não é ganhar um concurso de prioridade, mas expor a diferença capital entre os compromissos universitários e os engajamentos políticos.
Menciono, mais uma vez, a poesia e a filosofia, pois elas proporcionam a revitalização através do uso contínuo de recursos intelectuais, morais e artísticos numa sociedade. A política busca dominar e substituir o diálogo pelo debate, trocando a exploração da profundeza da vida por vitórias e derrotas. É difícil perceber que o motor da política é a constante busca de coisas que ainda não se concretizaram, e sua esperança de perfeição contradiz sua confiança num gozo perpétuo de coisas irrealizadas – essa incoerência é seu charme atrativo. Entretanto, a política é suscetível de indiferença às próprias ilusões ao definir como sucesso realizações transitórias, num nítido alívio naquilo que é contrário à integridade emocional e intelectual do poeta e do filósofo.
Ainda assim, aqueles que esperam amalgamar poesia, filosofia e política, reencenam a antiga tragédia entre elas. A disposição moderna é negá-la [a tragédia] (e Stuart Mill imaginou uma sociedade em que o martírio da verdade se tornaria obsoleto), mas a modernidade não encontrou meios de suplantar o sentido trágico da vida, e o erro heideggeriano de 1933 demonstra claramente que estamos numa situação difícil e não num progresso coletivo em busca de soluções definitivas. Como comenta Jaspers:
“A universidade é o único lugar onde, por concessão do Estado e da sociedade, uma determinada época pode cultivar a mais clara autoconsciência possível. As pessoas estão autorizadas a se reunir aqui com o único propósito de buscar a verdade. Pois é um direito humano que o homem deve ser permitido em algum lugar a buscar a verdade incondicionalmente e para seu próprio bem.”[21]
Jaspers associa a autoconsciência à tradição universitária, sua idéia, testemunhando que somos chamados a responder aos desafios que nos cercam e, caso o neguemos, em última análise, não prestaremos serviço algum às necessidades práticas da vida social, uma vez que o homem:
“Sem essa determinação de impulsioná-lo… nunca poderia subir aos níveis de percepção dos quais ele é capaz. Assim, a universidade é uma instituição com objetivos práticos, mas os atinge por um esforço de espírito que a princípio os transcende para depois retornar a eles com maior clareza, força e calma.”[22]
Eis a expressão de Oakeshott do mesmo pensamento:
“O aprendizado liberal é um compromisso difícil. Depende de uma compreensão de si que é sempre imperfeita. E depende de uma autoconfiança, que é facilmente abalada, e, não menos importante, por um autoexame contínuo. É um convite um tanto inesperado para se desembaraçar do aqui e agora dos acontecimentos e compromissos atuais, para se distanciar das urgências do local e do contemporâneo, para explorar e desfrutar de uma libertação de ter que considerar as coisas em termos de suas características contingentes, crenças em termos de suas aplicações e pessoas em termos de sua utilidade contingente; um convite para se preocupar não com o emprego do que é familiar, mas com a compreensão do que ainda não é compreendido. E uma universidade como lugar de aprendizagem liberal só pode prosperar se aqueles que vierem estiverem dispostos a identificar e reconhecer seu convite particular para aprender.”[23]
A busca pela verdade não é e nem pode ser meramente prática, mas também não precisa se opor à vida prática e nem deve ser definida apenas como aquilo e a contradiz, pois dizer o que não é difere de dizer o que é. Liberdade para ensinar a explorar consiste na essência da liberdade acadêmica e do aprendizado liberal, o que impõe a responsabilidade de distinguir entre o partidarismo e o estudo sério. A busca pela verdade é difícil e árdua, uma perseguição importantíssima que não pode ser reduzida à repetição de convicções apaixonadas. A distinção entre a ação prática e a especulação desapaixonada jaz simbolizada no fato de que, durante vinte e cinco séculos, no Ocidente, postulamos espaços de aprendizagem na previsão de que tal distinção estivesse presente para nós, lembrando-nos de quando cruzamos os limites entre uma e outra atividade.
Tais provisões não intentam significar a diferença entre questões práticas, mas sim levá-las a sério de forma que não se percam de vista. Por quantas vezes falamos de diálogo e por quantas outras falhamos em observar a disciplina que ele exige, descontado o fato de que o diálogo sempre intentou nos ajudar a transcender a mera autoexpressão? Sócrates proclamou, na Apologia, que uma vida não examinada não valeria a pena ser vivida, e sabia perfeitamente que muitos a rejeitaram e a rejeitariam. Entendo, de fato, que ele estava rememorando seu compromisso diante do julgamento e da morte, e isso nos lembra que o ensino livre sempre precisará ser defendido mediante o sofrimento e, recordar isto é o que nos chama a atenção para o sentido da universidade e que para que encaremos a idéia de universidade devemos atentar à nossa vocação. Ao postular esse tipo de questão no meio de tudo o que a ocultaria, reconhecemos a tarefa de restaurar o que quase perdemos, tendo em vista que, agora, o vemos apenas de forma pouco nítida na medida em que não nos foi permitido perdê-lo totalmente de vista.
Bibliografia citada e/ou recomendada
Henrique C. de Lima Vaz – Experiência Mística e Filosofia na Tradição Ocidental
Julien Benda – A Traição dos Intelectuais
Olavo de Carvalho – O Imbecil Coletivo
São John Henry Newman – A Idéia de uma Universidade
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Notas:
[1] Na edição da Primavera de 2016 da revista Academic Questions, Terence Ball descreve o “analfabetismo superior” que “combina uma capacidade de leitura com uma inabilidade ideologicamente induzida ou falta de vontade de entender o que se lê… ‘superior’ no sentido de que é passado de professor para aluno. É uma forma de ‘Magistro gênico’ ou ignorância induzida pelo professor”. (P.69) Em “O significado de ‘Neutralidade Ética’” (1917), Weber comenta, “o professor não deve exigir o direito como professor de carregar o bastão do estadista ou reformador em sua mochila”. [N.A.] O mesmo fenômeno do “analfabetismo superior” foi descrito por Olavo de Carvalho enquanto uma Imbecilização coletiva, “uma coletividade de pessoas de inteligência normal ou mesmo superior que se reúnem movidas pelo desejo comum de imbecilizar-se umas às outras” [Imbecil Coletivo p.57]. [N.E.]
[2] O Eutífron também pode vir acompanhado do subtítulo “da religiosidade”. [N.E.]
[3] Karl Jaspers, The Idea of a University, Boston: Beacon Press, 1959, pp.130-1. [N.A.]
[4] Assim ocorre, por exemplo, quando o resultado de uma pesquisa é classificado como “fascista” ou contendo “implicações burguesas” ou, em outros casos, como sendo desqualificado por ter sido financiado por tal ou qual instituição classificada como “non grata”. Quando ao último caso, devemos ter em mente o alerta de Peter Berger quando este diz que instituições financiam pesquisas o tempo todo e, em última análise, isso pouco importa na medida em que o que interessa é antes como a pesquisa ocorre do que quem se interessa por ela. O dado que devemos reter é que, comumente, a corrupção da liberdade acadêmica comumente ocorre em dupla via, a saber, em primeiro lugar, através, nominalmente, da defesa da mesma liberdade e, em segundo lugar, através do tratamento ideológico da realidade da atividade acadêmica – o que, de certa forma, corrompe-a em nome de sua purificação. [N.E.]
[5] Weber diz que o estudante deve esperar, “(1) cumprir uma determinada tarefa de forma artesanal; (2) reconhecer definitivamente fatos, mesmo aqueles que possam ser pessoalmente desconfortáveis, e distingui-los de suas próprias avaliações; (3) subordinar-se a sua tarefa e reprimir o impulso de exibir seus gostos pessoais ou outros sentimentos desnecessariamente”. (Op. Cit.) [N.A.]
[6] O termo “liberal” deve ser entendido, aqui, no sentido das antigas Artes Liberais [a saber, as do Trivium e Quadrivium” do que em referência ao pensamento ideológico liberal]. [N.E]
[7] A corrupção da mística pela política pode ser conferida em Experiência Mística e Filosofia na Tradição Ocidental, de Henrique C. de Lima Vaz. [N.E.]
[8]T. S. Eliot, Four Quartets in Collected Poems, 1909-1962. [N.A.]. Tradução retirada de T.S. Eliot – Poemas.
[9] Four Quartets. [N.A.]
[10] Maquiavel, seja o que for que se diga sobre ele e seu legado, entendeu isso. Em sua famosa carta a Francesco Vettori, descrevendo como ele passa seu dia no exílio do governo Florentino, conta-nos: “Quando chega a noite, eu volto para minha casa e vou para meu escritório. Na porta eu tiro minha roupa do dia, coberta de lama, e visto minha roupa régia e cortês; e decentemente reclinado, entro nas antigas cortes dos homens antigos, onde, recebido por eles com amor, me alimento da comida que só é minha e para qual nasci. Ali não tenho vergonha de falar com eles e de perguntar-lhes a razão de suas ações; e eles, em sua humanidade, me respondem. E pelo espaço de quatro horas não me sinto aborrecido, esqueço toda dor, não temo a pobreza, a morte não me amedronta.” [N.A.]
[11]Nietzsche, em seu notável ensaio, “Sobre as Vantagens e Desvantagens da História para a Vida”, diz de nós, modernos, que “não temos nada; somente enchendo-nos e superlotando-nos com idades, costumes, artes, filosofias, religiões e conhecimentos alienígenas nos tornamos algo digno de nota, ou seja, enciclopédias ambulantes”. A este respeito, Maquiavel é antigo, não moderno. [N.A.]
[12]Michael Oakeshott, “The Voice of Poetry in the Conversation of Mankind” in Rationalism in Politics, ed. by Timothy Fuller, Liberty Fund Press, 1991. [N.A.]
[13]Em seu ensaio de 1939, “As reivindicações da política”, Oakeshott diz que há “alguns para quem a atividade política seria uma perversão de seu gênio, uma deslealdade a si mesmos, não porque tenham pouco ou nenhum papel na promoção dos interesses comunitários de sua sociedade, mas porque sua parte é essencial que uma sociedade tenha realizado e que é difícil, senão impossível, de combinar com a atividade política. E entre eles, creio, estão aqueles cuja genialidade e interesse estão na literatura, na arte e na filosofia”. In Religion, Politics and the Moral Life, ed. by Timothy Fuller, Yale UP, 1993. [N.A.]
[14] Four Quartets. [N.A.]
[15] Diálogo platônico tido como suspeito ou apócrifo. [N.E.]
[16]Jaspers, op.cit. [N.A.]
[17]Ibid. [N.A.]
[18]Karl Jaspers, “Philosophical Memoir” in Philosophy and the World, Washington: Regnery Gateway, 1963, pp.252-3. [N.A.]
[19]Ibid. [N.A.]
[20]Ibid. [N.A.]
[21]Jaspers, Idea of a University, p. 1. [N.A.]
[22]Ibid, p. 2. [N.A.]
[23]Oakeshott, “A Place of Learning” in The Voice of Liberal Learning: Michael Oakeshott on Liberal Education, ed by Timothy Fuller, London & New Haven: Yale UP, 1989. [N.A.]
Por Timothy Fuller
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Por Louis Lavelle Tradução de Johann Alves Se atualmente testemunhamos em todo o mundo…