Por Louis Lavelle
Tradução, Notas e Comentários de Johann Alves
I. O COGITO E A PARTICIPAÇÃO
Desde o século XVII, a reflexão filosófica tem considerado como a sua abordagem inaugural, mesmo constitutiva, presente e implicada em todas as suas abordagens particulares, aquela que Descartes define através dos dois traços luminosos do “Penso, logo existo”, que nos introduzem, simultaneamente, tanto na consciência como na existência. Mas o Cogito não se limita, como muitas vezes se crê, a estabelecer a primazia do eu pensante para fazer dele o arbítrio e o modelo da realidade: ele nos coloca diante de uma dupla participação do eu no pensamento e do pensamento no Ser, ou melhor, do eu no Ser por meio do pensamento; o que só adquire o seu pleno significado no momento em que o argumento ontológico nos revela, na infinitude do Ser que se produz eternamente, o fundamento real da participação, isto é, do acto do nosso pensamento e, conseqüentemente, do seu próprio ser.[1]
II. A EXPERIÊNCIA DA PARTICIPAÇÃO
As conseqüências idealistas advindas do argumento cartesiano sempre provocaram no espírito uma grande ambição e uma grande esperança, mas nunca o deixaram sem um certo sentimento de insegurança. Pois a experiência primitiva que temos do nosso pensamento só nos aporta uma verdadeira satisfação se ela for a expressão mais subtil e mais profunda de outra experiência, que é comum a todos e que sempre a acompanha, que é a da nossa própria presença da totalidade do Ser. Essa experiência não é a da relação entre o sujeito e o objecto, mas a do nosso próprio ser na medida que ele se insere no Todo, que, não obstante, o transcende, mas com o qual ele experimenta o seu parentesco e mesmo a sua identidade ontológica.
Desta experiência, temos uma imagem familiar: é aquela que nos obriga a situar o nosso próprio corpo, que se revela a nós por meio das sensações internas, num espaço mais vasto que a vista nos descobre. Entretanto, o nosso corpo e o espaço em que o situamos só se tornam presentes para nós através de um acto que realizamos e que é o criador da nossa própria consciência. Mas em que consiste tal acto? Qual é a experiência pela qual tomamos posse dele? Ela nos revela uma distinção e uma ligação entre uma operação que realizamos e uma eficácia na qual ela se fundamenta, que pode ser comparada à distinção e a ligação, na experiência sensível, entre o nosso próprio corpo e o espaço que o circunda.[2] Pois agir, para mim, é dispor de um poder que posso implementar dentro de certos limites; o faço meu por uma espécie de adesão pessoal, cujo papel corresponde ao das sensações internas, mas ele transcende-me infinitamente, o que me obriga a me situar em um universo de possibilidades, o que não cessa de evocar o espectáculo visual que se estende por todas as partes além das fronteiras do meu corpo. É a relação entre essas possibilidades e o seu exercício que constitui o problema da participação.
III. A IDÉIA DE POTÊNCIA
Poder-se-ia dizer então que a palavra “possibilidade” só tem sentido para mim, isto é, em relação à actividade que efectivamente exerço e para a qual ela expressa a condição imaginária, através de uma espécie de reflexão retrospectiva (como afirmam os positivistas)? Mas isso seria apenas uma possibilidade abstracta. Há, porém, uma possibilidade real que descubro em mim no exame que faço dela, mesmo enquanto a mantenho em suspenso antes de implementá-la (o que permite definir a consciência como o lugar em que as possibilidades se tornam potências e o domínio em que elas se elaboram). Mas tais potências ultrapassam infinitamente o uso que delas posso fazer: elas constituem, como o horizonte visual, um mundo que, de facto, é limitado e, em direito, ilimitado.
Agora, qual é a realidade dessas potências e como elas se actualizam? A resposta a essas duas perguntas é a mesma: ou essas potências não se distinguem do nada, ou são idênticas à eficácia pura, ou seja, a uma actividade absoluta que engendra a si mesma eternamente, mas que é dividida, capturada e retida precisamente para que cada um possa fazer uso dela de maneira própria e desse modo constituir a sua existência pessoal.[3] Quanto à conversão da potência em acto, ela não apresenta mais dificuldade se a própria potência já fosse um acto que tivesse sido reduzido ao estado de potência apenas para me permitir possuí-la e regular o seu curso. A passagem contínua da potência ao acto é constitutiva da própria participação; essa é também nossa experiência fundamental, aquela em que vivemos. Ela é um processo interno cuja realidade só provamos ao realizá-la; e não se pode dizer que essa experiência seja em si mesma ininteligível, uma vez que, ao contrário, toda inteligibilidade nela se funda e se contenta em explicitá-la.
IV. A RELAÇÃO ENTRE A POTÊNCIA E A LIBERDADE
Portanto, é na formação da potência que reside o segredo da participação. Pois, se a participação não é mais do que a liberdade exercida,[4] não basta dizer que ela é um primeiro começo que se justifica sempre por meio do seu próprio exercício. Em seu acto mais humilde, como mexer o dedo mínimo, ela é a disposição, dentro de certos limites determinados pela ordem do mundo, dessa actividade causa de si mesma [sic] que é a origem radical de tudo o que é. E sua relação com ela nos é apresentada sob dois aspectos distintos: partindo da nossa própria iniciativa, somos obrigados a remontar a uma eficácia sempre presente da qual ela continua a se alimentar, ou, partindo dessa eficácia em si mesma, ela revela-se, por sua vez, como uma generosidade em acção e constantemente oferecida, ou seja, que não cessa jamais de realizar, a cada momento e em cada ponto, a passagem do nada ao ser, e que, ao criar a si mesma, convoca a infinitude dos seres particulares a também criarem a si mesmos, de tal forma que possa sempre ser compartilhada sem nunca ser dividida.
A potência preenche o intervalo que separa o Acto puro do acto de participação. E não há potências no mundo senão para um ser particular que, de acordo com o centro de perspectiva que ocupa, as faz surgir, por assim dizer, dentro do Ser total como a própria condição de sua realização. A partir disso, compreende-se muito bem que ele possa abandonar-se a elas assim que elas surgem (ou seja, permitir-se ser escravizado por sua natureza) ou tomar posse delas, direccioná-las e hierarquizá-las por meio de um acto livre, a fim de torná-las os instrumentos de sua vocação espiritual.
V. INTERVALO E INFINITUDE
Por outro lado, o intervalo em que ocorre a participação é ele mesmo um intervalo infinito. O infinito não é uma característica do absoluto, mas a expressão da nossa relação com ele; uma relação que nos impede de nos confundirmos com ele (e, portanto, preserva a nossa independência), mas que nos revela a nossa afinidade com ele (de modo a torná-lo a fonte de todos os nossos desejos e de todos os nossos actos). Quanto a esse intervalo infinito, ele só nos causaria ansiedade ou desespero se fosse ele mesmo um intervalo vazio através do qual não realizássemos nenhum enriquecimento e que nos mantivesse sempre igualmente distantes do próprio objectivo do qual ele nos separa. Mas esse intervalo é pleno. E a jornada da nossa vida ocorre não em direcção ao Ser, mas no Ser mesmo, que nunca se afasta de nós e permanece sempre presente, embora o possuamos apenas de forma imperfeita, o que nos permite progredir incessantemente, fornecendo-nos o absoluto não tanto como um objectivo, mas como um alimento e um apoio.
A característica distintiva da dialéctica da consciência é precisamente definir as diferentes formas de intervalo e mostrar como elas são suficientes para caracterizar todos os modos da nossa actividade representativa e prática, todos os nossos sucessos e fracassos. No entanto, podemos distinguir três tipos principais de intervalo, dos quais todos os outros são especificações: primeiro, o intervalo entre o acto e o dado, no qual a potência entra em jogo e a participação começa a se concretizar; em seguida, a sua forma objectiva, que é o intervalo espácio-temporal, no qual o universo se constitui; por fim, a sua forma subjectiva, que é o intervalo entre o entendimento e a vontade, onde nossa consciência pessoal se constitui.
VI. O INTERVALO ENTRE O ACTO E O DADO
O intervalo que separa o acto[5] do dado obriga-nos, cada vez que realizamos um acto de participação, a considerar este acto como sendo em si mesmo abstracto e incompleto, mas como necessariamente convocando um dado que lhe responde, o actualize e realize. Esse dado atesta que o acto de participação não pode ser separado do Acto puro que, à medida que o ultrapassa, impõe-lhe uma limitação, ou seja, acrescenta-lhe uma matéria que o afecta e determina.[6] Essa matéria não pode, portanto, ser anterior à operação que a apreende, mas está sempre em relação com ela. Ela tem um carácter qualitativo e sensível, cuja correspondência regulada com uma operação definida deve ser demonstrada, sem a qual ela nada seria. E o sensível não deve evanescer gradualmente e desaparecer no fim, conforme a operação progride, como sustenta o intelectualismo, mas deve adquirir uma forma cada vez mais variada e delicada, conforme a operação torna-se em si mesma mais complexa e atenta. Assim, o intervalo que os separa jamais poderá ser abolido. E sempre encontramos aqui uma dupla superação: do dado pelo acto, que é sempre determinado e limitado por ele, e do acto pelo dado, que possui uma riqueza superabundante a qual ele jamais conseguirá esgotar.[7]
VII. O INTERVALO ESPAÇO-TEMPORAL
O intervalo que separa o acto do dado encontra duas condições objectivas de realização, que são o espaço e o tempo. Do facto de que o espaço e o tempo sejam os dois aspectos deste intervalo e que sejam ambos infinitos, pode-se dizer que essa é a sua própria definição, que se expressa, para um, através da distância entre objectos, e para o outro, através da distância entre os eventos. — Além disso, o espaço e o tempo são inseparáveis um do outro assim como o acto e o dado: e tal como na relação entre o acto e o dado, o intervalo abre-se apenas para ser atravessado, assim também na relação espaciotemporal, o espaço não determina nada além de um puro intervalo entre pontos, que precisa ser percorrido e só pode ser percorrido no tempo; e, inversamente, o puro intervalo temporal seria apenas uma eterna ausência se não fosse atravessado, ou seja, se não interferisse a cada instante com o espaço, do qual ele recebe a sua sucessiva actualidade. — Por fim, é fácil ver que é na maneira como o tempo e o espaço se relacionam entre si que podemos observar a conversão do acto em dado: pois todo dado apresenta-se a nós no espaço apenas em virtude de um acto que só podemos realizar no tempo.[8]
VIII. O INTERVALO ENTRE O ENTENDIMENTO E A VONTADE
O entendimento e a vontade são as condições subjectivas através das quais o intervalo se realiza. E assim como a relação entre espaço e tempo nos permitiu definir a estrutura do universo, a relação entre o entendimento e a vontade nos permitirá definir a estrutura da consciência. O entendimento possui uma relação privilegiada com o espaço, como demonstra a preeminência da matemática no conhecimento, a ligação privilegiada entre a extensão e a inteligibilidade observada em toda filosofia intelectualista, como a de Malebranche, e finalmente o carácter de simultaneidade atemporal que possuem todos os objectos do pensamento possível. A vontade, ao contrário, possui uma relação privilegiada com o tempo, visto que ela sempre expressa a determinação do futuro através do presente, ou seja, o próprio sentido em que o tempo flui, o que nos permite torná-lo a própria condição de nossa iniciativa criativa.
Cada uma dessas duas funções é definida por um intervalo próprio: o entendimento entre a atenção e o seu objecto, a vontade entre a intenção e o seu fim, embora essas duas formas de intervalo não possam ser separadas, uma vez que a actividade do entendimento deve ser afectada pela vontade, e a vontade só pode exercer-se à luz do entendimento. Mas a sua dissociação era necessária para fundar a participação, uma vez que esta só é possível na medida em que me permite abraçar, por meio de uma representação virtual, um mundo que eu não crio, a fim de poder produzir nele, através de uma acção real e de uma abordagem original que não deixa de marcá-lo e acrescentá-lo, o advento do meu próprio ser.
IX. O DESENVOLVIMENTO DA DOUTRINA DA PARTICIPAÇÃO
Esses princípios gerais nos parecem-nos tanto necessários quanto suficientes para sustentar toda filosofia da participação. Nenhum deles poderá ser ignorado, pois:
- Eles permitem-nos resolver o conflito entre uma realidade transcendente da qual nunca deixamos de nos alimentar e uma realidade imanente que é sempre o efeito de nossa operação.
- Eles permitem-nos distinguir, de um lado, as condições de possibilidade da participação que são comuns a todos os seres particulares e que, portanto, devem ser deduzíveis e formam, por assim dizer, a estrutura básica do universo, e por outro lado, o próprio uso que cada um pode fazer delas, a maneira original como as utiliza por meio de um acto livre.
- Eles permitem-nos compreender, então, como a representação que temos do mundo e a trajectória do nosso destino estão sempre relacionadas com a acção que nós assumimos, ou seja, com o nosso mérito, e como, por fim, uma pluralidade de perspectivas e vocações, todas diferentes e até mesmo contraditórias entre si, encontram um lugar no mesmo universo.
- Eles permitem-nos, por fim, definir a ciência, a arte, a poesia, a moral, a política, a religião como diferentes modos de participação, nos quais buscaremos determinar as suas características específicas e as suas relações sistemáticas em uma dialéctica cujos princípios fundamentais podem ser estabelecidos de uma vez por todas, mas que permanece sempre aberta, uma vez que ela é sustentada e animada pela eficácia absoluta do acto criador, e o infinito diante dela para lhe proporcionar um campo de acção.
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Bônus: Recomendações de leitura ao interessado em Louis Lavelle.
por Helkein Filosofia
Comentário: Louis Lavelle pode ser visto como estranho a seu tempo: em um mundo prestes a afundar-se ou no niilismo ou em seus parentes, o filósofo resolveu tomar a direção inversa e fazer metafísica. O desespero, que alimenta tantos tipos de pensamento, nasce da constatação do abismo sob os pés; uma queda constante, um devir cruel, i.e, uma sensação de que nada há senão o caos que, uma vez camuflado por nossas elucubrações, volta do princípio dos tempos para nos pegar. Mas se é assim, o que a filosofia pode fazer? Ela pode fornecer bases fixas e certas, o regramento da realidade que nos mostra que o caos está antes em nossa incapacidade de compreender a ordem. O que o desesperado precisa não é constatar sua miséria e permanecer nela; ele não precisa amar sua miséria, amar seu estado decaído e crer que suportaria, impávido, um destino em que tudo se repetisse eternamente ou que fôssemos meros entes atirados no ser; o que ele [o desesperado] precisa é do instrumento final da filosofia: a disciplina do ser enquanto ser. Não sei se Lavelle pensou assim, mas o dado é que agiu como se tivesse — e talvez também por isso tenha se tornado um autor tão querido. Forneço aqui algumas sugestões de leitura ao interessado naquele que por vezes foi chamado de Platão do sec. XX.
Urge que sigamos a sugestão do autor e leiamos seus escritos populares. Sendo assim, em primeiro lugar, creio que a melhor porta de entrada seja o magnífico A Consciência de si; logo em seguida vem o tão necessário O Mal e o Sofrimento e então talvez um dos livros mais estranhos a seu tempo que saíram da pena de nosso filósofo, O Erro de Narciso. Resta então, quanto aos escritos populares disponíveis em português, a coletânea de artigos Ciência Estética Metafísica, um livro misto, dado que seu conteúdo pode, em linguagem jovem, “ir de zero a 100 muito rápido” e passar de uma simples resenha a um comentário de física quântica. Deixo o Regras da Vida Cotidiana a critério do leitor, dado que o livro é constituído de anotações que o filósofo não pretendia publicar.
Creio que todos os livros sugeridos sejam de leitura livre, i.e., podem ser lidos a qualquer momento sem que exijam muito mais do que atenção redobrada — dado que o autor é famoso por escrever pouco e dizer muito. Mas a coisa muda totalmente de figura quando falamos de A Presença Total, o “livro de divulgação metafísica” [sic] de Lavelle, em que ele busca apresentar um resumo [sic, novamente] de sua imensa Dialética do Eterno Presente, coleção de que gozamos de apenas um mísero volume em português, a saber, Do Ser. Para ambos os citados roga-se que o leitor tenha feito o dever de casa, a saber, conhecer mais ou menos os dois mil anos de filosofia que ocorreram antes de Lavelle começar a escrever suas obras. Há muitas outras obras escritas por Lavelle e principalmente muitas outras que não possuem traduções para o português; por outro lado, creio que as recomendadas aqui darão ao interessado um bom panorama das idéias do filósofo.
Outras publicações sobre Louis Lavelle
- A Dialética do Mundo Sensível
- A Experiência Psicológica do Tempo
- A Liberdade como Termo Primeiro Pt.I
- A Liberdade como Termo Primeiro Pt.II
- Ser e Ato Pt.I
- Ser e Ato Pt.II
- Epitome Metaphysicae Spiritualis
Notas:
[1]Há de se notar que Lavelle nunca fez segredo de sua inconformidade com a tradicional interpretação idealista do cogito e, ao contrário, sempre acreditou firmemente que a “verdadeira interpretação” do cogito nos leva a ver nele “a intuição da presença do nosso ser pensante no ser total”. Em suas próprias palavras: “a confiança que Descartes deposita no pensamento decorre da própria confiança com a qual ele se estabelece no Ser assim que descobre a sua própria interioridade. Esta interioridade é uma com a interioridade do Ser. […] No ‘penso, logo existo’, não devemos esquecer que é o ‘existo’ que confere ao ‘penso’ o seu verdadeiro valor. […] No argumento ontológico, é a existência absoluta e infinita de Deus que se torna o fundamento da minha existência condicional e imperfeita.” (cf. Ser e Acto) Para sustentar tais afirmações, Lavelle apresenta-nos algumas razões: a) com o “Penso, logo existo”, Descartes não quer dizer que a existência em geral esteja fundada sobre o seu pensamento (a conseqüência idealista), mas somente que é em seu próprio pensamento que ele apreende indubitavelmente a primeira determinação inteligível do ser; b) entretanto, entre o ser descoberto através do pensamento e o próprio pensamento, há uma comunidade e não uma ruptura, pois o pensamento que pensa o ser está ele mesmo inscrito no ser, o que se demonstra por meio do argumento ontológico; c) por fim, a ideia do ser não é abstracta, pois ela oferece-nos uma determinação do seu próprio objecto, uma vez que a ideia do ser é ela mesma ser, ou seja, há uma circularidade entre a ideia do ser e o seu objecto. Com efeito, toda vez que interpretamos erroneamente o ponto (a), seguem-se duas conseqüencias: ou cria-se entre o ser e o eu um abismo impossível de ser superado (b), como fez o fenomenismo, ou faz-se do ser um género abstracto que subsome o eu como uma espécie, fazendo que todas as relações entre o ser o eu sejam de tipo lógico-conceitual (c), como fez o racionalismo. Ainda deve-se notar que Lavelle aponta para o que parece ser o nervo dos equívocos em relação ao argumento cartesiano, que é o facto de terem-no interpretado como um silogismo, embora Descartes mesmo houvesse alertado no início da Quarta Parte do Discurso que a lógica é tão-pouco confiável quanto os sentidos, visto que, como eles, eventualmente nos conduz a erros e a paralogismos, e portanto está igualmente submetida à dúvida. No entanto, apesar do mérito da leitura lavelliana, algumas críticas podem ser lançadas contra ela. Primeiramente, as meditações cartesianas só lançam mão do argumento ontológico para devolver ao ego o acesso à realidade, depois de terem feito dele o termo primeiro de toda filosofia. Com ele, de facto, Descartes não quer fundar a participação, mas superar a dúvida universal. Em segundo lugar, o facto de Descartes ter feito do ego o termo primeiro da filosofia, basta-nos para caracterizá-lo como o fundador do idealismo, mesmo que, através de sua Veracitas Dei, recupere o acesso directo à realidade. Em síntese, pode-se argumentar que a interpretação de Lavelle foge às verdadeiras intenções de Descartes por ignorar que o papel fundamental do argumento ontológico é resolver o problema criado com a dúvida universal, e não fundar a participação. [N.T]
[2] Esse mesmo exemplo aparece de forma aprece de forma mais clara no artigo La Voie Étroite: “Nós encontramos uma sorte de imagem objectiva da experiência da participação nesta representação do mundo que atinamos na consciência comum e à qual o materialismo pretende reduzir tudo o que é; a saber, que cada ser individual possui um corpo, que está situado no mundo, e que é tal que, embora tenha ele mesmo uma fronteira delimitada, não deixa de estar em relação com o todo que o circunda e dele haurir tudo o que lhe permite crescer e subsistir.” (IS, 1955, p. 252) [N.T]
[3] “[…] é um erro singularmente grave imaginar o absoluto na forma de uma virtualidade indeterminada e infinita, a qual caberia os seres particulares convocarem à existência de acordo com as suas forças. Pois de onde esses seres particulares tirariam a sua própria existência? Longe de eles poderem conferi-la a uma possibilidade que ainda não possuem, eles devem recebê-la de outro lugar. Eles não têm outro poder além de se darem a si mesmos uma forma determinada de existência. Portanto, o absoluto do qual eles procedem não pode ser um absoluto de possibilidade, o que certamente seria uma espécie de contradição em termos: é o próprio absoluto do ser, que se converte em um infinito de possibilidades apenas para se tornar participável por todos os seres particulares.” (Cf. Métaphysique de la Participation) Perceba-se que a fundamentação lavelliana da participação mantém fortes semelhanças com a doutrina tomista: primeiro no que se refere à identificação de Deus com o Acto Puro que sustenta a existência dos seres mistos de potência e acto (S. Th. I-I, q. 44, a. 1, resp.); segundo, na afirmação de que todo ser composto de potência e acto é um ser de participação, tendo em vista que somente o ser participado (Deus) é o ser em si mesmo subsistente (S. Th. I-I, q. 2, a. 3). [N.T]
[4] A participação é a liberdade exercida porque é através da liberdade que actualizamos as potências (possibilidades) que nos são oferecidas. Para uma melhor compreensão da relação entre a liberdade e a participação, parece-nos oportuno a recomendação do artigo Liberdade como Termo Primeiro. [N.T]
[5] Lavelle usa palavra a acto com um duplo sentido, ora denotando a ενέργεια aristotélica em contraponto à potência; ora designando a intimidade absoluta do ser. Neste segundo sentido, o acto se identifica com o ser, porém, enquanto este último é usado indiscriminadamente para tudo o que é, o primeiro possui um sentido mais forte e marca a transição de uma ontologia para uma filosofia da consciência: trata-se de um ser que é em-si-mesmo e não para-outro. Para Lavelle, os filósofos perderam-se longamente na busca de uma “coisa-em-si”, como se houvesse, por detrás das coisas sensíveis, “coisas inteligíveis” que conferissem a inteligibilidade que falta às primeiras. Mas a própria noção de uma “coisa-em-si” é contraditória. Uma coisa é precisamente um “ser para outro”, cuja essência reside na sua relação com um “ser em si”, isto é, com uma interioridade ou uma consciência para quem ela é uma coisa, razão pela qual ela é sempre uma aparência ou um fenómeno. Fora Kant quem corrigira o caminho da metafísica: pois se para consciência existem apenas coisas e objectos, ela mesma jamais pode se tornar uma coisa ou um objecto: a sua espiritualidade transcende o mundo dos fenómenos. Ela, portanto, deve ser definida como um acto que descobre a si mesma em sua própria operação, e “a consciência de um acto está acima do conhecimento de um dado”. A metafísica só é possível como a ciência do ser-em-si, se ela for a ciência da nossa intimidade espiritual. E não devemos nos surpreender com isso, pois a nota distintiva do ser é precisamente a sua interioridade, ou seja, o facto de que nada lhe é externo. O papel da metafísica é analisar como a nossa interioridade imperfeita, sempre ultrapassada por algo que se lhe apresenta de fora como um dado, se inscreve na interioridade perfeita do Ser, que é a fonte comum do seu próprio acto e de todos os objectos que existem para ela. (Cf. La Métaphysique ou Science de l’Intimité Spirituelle) [N.T]
[6] A matéria que surge como o dado correlato do acto participativo é precisamente o mundo sensível. [N.T]
[7] “Portanto, a aparição do objecto preenche o intervalo que separa a actividade absoluta da actividade participada. Se este intervalo não é um intervalo vazio, se é um objecto representado que o preenche, é precisamente porque a actividade da qual ele procede e que nos ultrapassa é uma actividade da qual somos inseparáveis na medida mesma em que ela nos ultrapassa. É porque somos incapazes de rejeitá-la que ela nos impõe a presença do mundo e nos obriga a viver nele. Uma tal observação é suficiente para demonstrar por que um mundo sempre é dado ao espírito e por que a consciência se dissipa quando lhe falta o mundo: é porque o Ser é uno que a própria consciência não é nada se não for a consciência do mundo.” (Cf. Existence Spirituelle et Existence Matérielle) Efectivamente, quando direccionamos a nossa atenção a um dado, fazemos dele um objecto, originando assim a oposição entre o sujeito e o objecto. Todavia, tal oposição ocorre no mesmo acto participativo: sujeito e objecto são momentos abstractos que não existem isoladamente; o que significa que não se pode hipostasiá-los. De certa forma, a participação confere um fundamento metafísico ao que a fenomenologia chamou de intencionalidade, pois é a unidade do Ser em que ocorre a participação com a unidade do acto participativo que convoca, para cada acto da consciência, um dado que lhe corresponde e o completa. [N.T]
[8] Para uma melhor compreensão da relação entre o acto e o tempo, parece-nos oportuno a recomendação do artigo A Experiência Psicológica do Tempo. [N.T]
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