Por Paul Elmer More
Tradução, notas e comentários por Helkein Filosofia
Ainda que admitamos que o platonismo tenha sido corretamente exposto nos capítulos anteriores, permanece a grave questão de se sua influência foi benéfica ou maléfica.[1] Acredito que ninguém negará, de qualquer modo, a extensão dessa influência. Como fator dominante na formação da [filosofia] da religião cristã, ajudou a moldar a civilização ocidental e, como filosofia por excelência, foi a inspiração de inúmeros poetas e profetas que exortaram os homens a elevarem-se acima de seus interesses efêmeros e contemplarem integralmente o todo do tempo e o todo do ser.[2] De um modo especial, Platão deve ser considerado o libertador do espírito, aquele que deu asas à alma humana e a fez viajar pelo hyperouranion.[3] Mas quantos não voaram perto demais do Sol [como Ícaro] e caíram por terra em combustão ruinosa? Quantos outros não se perderam para sempre nas alturas? Concedamos pêsames pela fraqueza humana e suas “esperanças cegas”! É um fato triste e indiscutível que, nenhum tem mais chances de ser chamado de platônico por seus admirados do que o reformador dotado de um plano fútil para a regeneração do mundo, o sonhador que rejeitou a realidade da natureza humana em prol de alguma ilusão de perfeição fácil, o romântico visionário que colocou a espontaneidade da fantasia acima da imaginação racional, a “bela alma” que se retirou do jogo da vida e se recluiu em uma introspecção mórbida, ou ainda o devoto da fé enquanto lei que revoga a severa regra das obras e da retribuição. Metade dos entusiastas e maníacos inspirados da sociedade se protegeram sob a égide do grande ateniense. Sem necessidade de mencionarmos os charlatães comprovados, a lista de escroques está repleta de nomes de supostos sábios cuja sabedoria, se posta à prova, revela-se não mais do que uma refinada forma de lisonja espiritual.
Se estes forem os únicos produtos do platonismo, então é uma pena que as obras de Platão não tenham se perdido por completo em conjunto com as de tantos outros filósofos antigos, e, nós, que nos ocupamos da interpretação dos Diálogos, estamos apenas somando mais cabeças à coletânea das tomadas pela loucura. Mas não é assim. [Deturpações ocorreram] com o platonismo, com o cristianismo e com todas as outras fortes excitações do coração humano. A liberdade é a mais nobre e ao mesmo tempo a mais perigosa posse da humanidade e, a menos que estejamos preparados para silenciar o mais alto apelo da religião e da filosofia em prol das demandas seguras de uma sabedoria puramente prática, devemos nos conter enquanto tentamos expor esses caprichos de mentes embriagadas pelo entusiasmo.[4] Não ousamos repudiar o platonismo pelos perigos que o cercam, mas é bom que nos previnamos contra os platônicos, lembrando da admoestação de São João aos discípulos de Cristo: “Carissimi nolite omni spiritui credere sed probate spiritus si ex Deo sint quoniam multi pseudoprophetæ exierunt in mundum”.[5]
Já tivemos ocasião de distinguir entre o verdadeiro e o falso platônico nos domínios da arte e da ciência; mas há necessidade de um único critério geral que possa ser aplicado a todos os pretendentes do nome, e tal critério, felizmente, não é difícil de ser buscado. Tanto o verdadeiro quanto o falso platônico aparecem com a promessa de certa regeneração em suas mãos, estimulando a imaginação a vagar em campos ilimitados e desconhecidos, libertando a alma da prisão das convenções e apontando para um prêmio inalcançável à prudência comum. Mas existe certa diferença entre eles. Para o verdadeiro platônico, embora o espírito divino possa e de fato seja chamado de fonte oculta da beleza, da ordem e da alegria, quando fala diretamente ao coração humano, se faz ouvir como inibição; o guia de Sócrates nunca utilizou sua voz para comandar algo que não fosse que seu guiado se contivesse. Inversamente, para o pseudoplatônico, a voz surge como inspiração positiva; diz sim aos seus desejos e emoções. Goethe inconscientemente expressou a fórmula eterna do pseudoplatonismo quando colocou na boca de Mefistófeles as palavras fatídicas: “Eu sou o espírito que sempre nega”. É Deus quem nega, não Satanás. No momento em que esses termos são invertidos, o que é reverenciado como espírito se torna armadilha em vez de guia: a liberdade é transformada em licenciosidade, um glamour de santidade é lançado sobre os desejos do coração, a dúvida humilde se esvai da mente, a vontade de seguir este ou aquele impulso é investida de autoridade divina e há confusão total entre os elementos superiores e inferiores de nossa natureza.
Este anseio por uma fé livre da humilhante escravidão do ceticismo[6] se estende, é claro, para muito além da esfera do pseudoplatonismo, e tem sido a constante tentação de certos homens fortes, de quaisquer crenças, que impuseram suas violentas mãos sobre a religião e a filosofia.[7] E aqui reside a origem daqueles entusiasmos e extravagâncias da liberdade interior que constantemente aumentam e perturbam o mundo, causando um divórcio profano entre a suposta inspiração e o bom senso – e por vezes também entre este e a moralidade. O fanatismo pode manifestar-se diversamente de acordo com a disposição de um homem ou grupo sobre o qual a tentação recaia, mas a causa última é sempre a mesma: a luxúria do coração que identifica nossas inclinações pessoais com a voz de Deus ou com alguma autoridade divina.[8] Na religião, tal espírito [libidinoso] pode ser visto em ação no orgulho do asceta[9] – “as vestes do próprio cabelo, a vigilância, as orações da meia noite, a obmutescência, a escuridão e a mortificação das ordens religiosas e daqueles que aspiram à perfeição religiosa”, como o diz Paley.[10][11] Pois o asceta é simplesmente o homem que traduz as inibições do espírito em uma lei positiva do desconforto físico. Da mesma fonte veio o desejo de perseguição na Igreja Católica, levando um homem como Torquemada[12] a acreditar que sua paixão pelo domínio era a vontade divina e semelhante intolerância e desumanidade ocorreu aos puritanos, que, como acusados pelo escritor de um tratado em 1676, sustentavam que “o Espírito Santo dirige e persuade os homens no que acreditar e fazer [observe a afirmação] por meio de seu trabalho imediato”. Não foi sem razão que South poderia dizer que eles buscaram “a garantia para todas as suas vilanias no êxtase e na inspiração”. Foi necessária toda a repulsa do século XVIII para “expulsar o entusiasmo da divindade”, para usar a frase forte do Bispo Sprat[13] – uma pena que grande parte da inspiração verdadeira teve de ser expulsa com a falsa. Voltemos então a Paley, o apóstolo do bom senso religioso, se não do bom senso às custas da religião, e ouçamos sua repreensão comedida à linguagem selvagem do sectário que nutre as emoções decorrentes da chamada “conversão” e “renascimento” como evidências de santificação: “Nosso Salvador não expressou devoções apaixonadas. Não havia alvoroço em sua piedade ou na linguagem em que se expressava; nenhuma exclamação veemente ou arrebatadora, nenhuma urgência violenta em suas orações… sinto respeito pelos metodistas pois acredito que se encontra neles a válida e sincera piedade, embora nem sempre bem informada, do cristianismo. De fato, nunca vi uma reunião deles em que não saísse com uma reflexão tão diferente da que li! Não me refiro à doutrina, com a qual não tenho preocupação alguma no momento, mas na maneira: quão diferente da calma, da sobriedade, do bom senso, e, devo acrescentar, da força e da autoridade dos discursos de Nosso Senhor!” [14]
O mal não foi menos marcante na filosofia do que na religião, como pode testemunhar com triste convicção aquele que escreve nesta época de guerra universal. Há um ditado de Kant muito citado: “Age como se a máxima da tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza”[15]; é a fórmula de seu assim chamado imperativo categórico. Bem, ninguém consideraria Kant diretamente responsável pela calamidade civilizacional provocada pela Guerra Européia[16]; as causas são múltiplas e complicadas. No entanto, afinal, qual é a ambição dos kantianos senão essa máxima operando realmente? No momento em que se identifica o sentido moral com a vontade humana, como o fez Kant, e confere-se a esta vontade uma certeza e autoridade acima das negações da razão pura, você está em perigo iminente, entretanto, você pode se proteger, com precauções, de confundir sua lei universal com a libido dominandi[17] e de ver no imperativo categórico uma desculpa para forçar seu próprio senso de direito sobre a humanidade relutante.[18] Não se pode seguir o curso do pensamento alemão de Lutero através Kant e Fichte e Hegel, por Mommsen e Treitschke e outros que justificaram a agressão de seu governo nacional, sem uma convicção crescente de que o idealismo alardeado da mente teutônica, e se não de que a mente nortenha em geral, foi viciada desde o início por uma incapacidade de conter algo (se assim podemos nomear o cheque demoníaco sem que soframos as consequências ambíguas da palavra “vontade”) distinto da vontade de poder.[19]
Esses são exemplos do mal que atinge a melhor parte da alma dos homens tentados a identificar a espiritualidade com sua vontade positiva. O perigo da sedução, seja pela religião ou pela filosofia, foi apontado por Hooker com bastante clareza em sua contenda com o temperamento puritano de sua época. “Pois meu propósito aqui é mostrar”, disse ele, “que, quando as mentes dos homens são uma vez erroneamente persuadidas de que é a vontade de Deus que sejam feitas as coisas que eles imaginam, suas opiniões são como espinhos em seus lados, nunca permitindo que descansem antes que coloquem em prática suas especulações. Os vícios e obstáculos que impulsionam suas práticas e estudos e um desejo inquieto por removê-los os leva todos os dias pelas mãos a outras opiniões mais perigosas, que não poucas vezes são claramente contrários aos primeiros princípios visados; então, tudo o que resta são erros mascarados sob o manto da autoridade divina, alguns inimagináveis até que o tempo tenha revelado seus frutos. Cabe à sabedoria temer suas sequelas para além de qualquer outra causa aparente de temor.” [20] Mas muito antes da época de Hooker a questão foi fixada de uma vez por todas na conversa de Sócrates e Eutífron no, acredito, mais belo e perfeito dos diálogos. Ali, o fanatismo de um jovem que não hesita em sustentar sua própria noção extravagante de procedimento sagrado como idêntico à lei absoluta da santidade é contrastado com a modéstia irônica de Sócrates, agora um velho cheio de experiência, que, nunca duvidando da realidade da idéia de santidade como um fato peremptório eterno, está ciente que a transferência da Idéia [Eidos] para a região de ação específica pode ser apenas provisória e sujeita à correção. [21] Aqueles que compreenderam o Eutífron não precisam ler mais para aprender a verdadeira relação entre a afirmação espiritual de Sócrates e Platão e seu ceticismo. [22]
O fanatismo, como antedito, é ainda mais contrário ao platonismo do que o pseudoplatônico e de forma alguma é limitado àqueles que fingem ser seguidores da Academia [de Platão]. A perversidade daqueles que se colocam sub-repticiamente sob a égide de Platão comumente assume a aparência de um idealismo no qual certas afetações[23] disfarçam-se de espírito. Nessa forma, o pseudoplatonismo é praticamente um sinônimo do Movimento Romântico. Este que, por sua vez, carregou e ainda carrega consigo muitas das mentes mais sofisticadas de nossa época. Para nós, o romantismo aparenta ter se iniciado como reação às estreitas restrições impostas pela autoridade neoclássica do século XVIII, mas suas raízes podem remontar às especulações teosóficas de Alexandria. Seu principal expoente foi Plotino, que assumiu o antigo erro metafísico de Parmênides e procurou reestabelecer a doutrina de uma unidade abrangente em detrimento do dualismo irracional[24] do mestre em cujo nome pretendeu ensinar. Dessa unidade – para que resumamos as perplexidades e inconsistências do Neoplatonismo de forma breve –, a criação do mundo deveria proceder por uma série de emanações, através da inteligência e da alma, descendo para o corpo, ou “necessidade material” que, como o último e mais remoto rebento divino, foi convertido sabe-se lá como de uma maneira jamais esclarecida por Plotino na obscuridade inerente a qualquer sistema monista, digo, na causa do mal. Esta “necessidade” da metafísica plotiniana pode parecer semelhante ao substrato platônico de mesmo nome, mas a diferença é realmente fundamental. Em Plotino, a “necessidade” final não é uma força inexplicável e independente da qual o governo divino é a negação, mas uma, por assim dizer, distância vagamente concebida do divino, uma “privação” (sterêsis). Embora por vezes Plotino recaia na linguagem comum dos estoicos e veja uma espécie sombria de mal na existência das almas individuais como uma ruptura com a unidade suprema, por outro lado, ele admite uma cosmovisão que virtualmente faz certo malabarismo com o mal a partir do todo uno. “Deus me criou”, diz ele, falando pelo universo, “e eu vim dele, perfeitamente formado como todos os seres vivos, sendo suficiente e suficiente para mim mesmo, sem falta de nada”. Nesse esquema, o indivíduo age de acordo com a necessidade de sua natureza; “Cada homem também faz o que é natural para ele, e homens diferentes fazem coisas diferentes”. Plotino não estava alheio às deduções que seriam extraídas de tal doutrina: “Ao dizer que não existe nenhum mal no universo, forçadamente eliminamos também o bem e negamos que haja qualquer fim desejável ou atingível”. Plotino não estava disposto a acomodar-se com tal conclusão niilista, e então ele luta e se contorce para escapar da rede de sua própria lógica; mas se conseguir escapar, será apenas para uma espécie de naturalismo estéril. Admitimos que o grande neoplatônico ansiava pela verdade; mas sua doutrina das emanações e a necessidade da sterêsis, ao enfraquecerem o senso do mal como uma força positiva[25] e ao identificar a salvação como uma entrega da alma a vagos anseios, é uma das fontes do infinito fluxo de pseudoplatonismo.[26]
O primeiro da lista dos modernos pseudoprofetas e pai de toda a ninhada é Rousseau, que, nas palavras de seu último expositor, “com modificações devido à influência de Montesquieu”, permaneceu “essencialmente um platônico até o fim”.[27] Mas, para descobrir o credo essencial de Rousseau, não é preciso ir muito longe. É afirmado explicitamente em uma famosa passagem da Nouvelle Heloise: “Só as almas de fogo sabem combater e vencer; todas as grandes realizações, todas as ações sublimes, são seu trabalho; a fria razão nunca realizou nada de ilustre, e triunfamos sobre nossas paixões apenas opondo umas às outras. Quando a paixão pela virtude surge na alma, ela a domina sozinha e mantém tudo em equilíbrio”. Há aqui, sem dúvida, uma meia verdade em tais palavras, como há em todo pseudoplatonismo. Sem coração, sem sentimentos profundos e desejos fortes, é verdade que nenhuma grande obra se realiza, seja para o bem, seja para o mal; essa é a doutrina expressa na República.[28] Mas procurar equilíbrio na mera oposição entre as paixões, fazer da moralidade apenas uma paixão entre muitas, é pregar uma perversão ruinosa do platonismo. “Quanto a Julie”, diz Rousseau, “que não tinha regra alguma para além de seu coração e não conhecia outra mais segura, ela se entregou sem escrúpulos e, para fazer o bem, precisava apenas fazer o que isso exigia dela”. A filosofia do abandono não é a de Platão. Pode ser de Goethe, o romântico, que, tendo feito de Mefistófeles o espírito de negação, não poderia colocar palavra melhor para Deus na boca de Fausto do que sentimento (Gefühl), e não poderia descobrir melhor uso para esse sentimento do que a sedução de uma garota inocente.
Na Inglaterra encontraremos outro líder do romantismo que é reverenciado por muitos como platônico e emancipador do espírito humano. A mensagem de Blake é pronunciada de forma evasiva, mas muito simples em si mesma. É muito bem resumida em suas duas personificações míticas do bem e do mal, “Emanação” e “Espectro”, que desempenham seus papéis em Milton e em outros de seus Livros Proféticos. O pouco que Blake sabia dos filósofos alexandrinos veio de segunda mão via Jacob Boehme, mas seu princípio de bondade é claramente nada mais do que uma personificação daquele instinto de autoexpansão no superessencial que Plotino tornou a causa do universo em desenvolvimento. As Emanações, de acordo com Blake, surgem “como fêmeas de doce beleza”; são o poder da imaginação, a perfeita espontaneidade do desejo, a inocência do impulso inquestionável. Contra elas, em cada homem está colocado o seu Espectro maligno, que nada mais é do que a própria sombra do homem considerada como a razão questionadora, limitadora e restritiva:
“They take the Two Contraries which are call’d Qualities,
with which
Every substance is clothed; they name them Good and Evil.
From them they make an Abstract, which is a Negation
Not only of the Substance from which it is derived,
A murderer of its own Body, but also a
murderer
Of every Divine Member. I t is the Reasoning Power,
An Abstract objecting power, that negatives everything.
This is the Spectre of Man, the Holy Reasoning Power,
And in its Holiness is closed the Abomination of
Não poderia haver um amálgama mais extraordinário da razão abstrata como um processo de lógica fria, tal como se tornara na escola dos racionalistas[31] e pseudoclassicistas, com a razão e a inibição espiritual que Sócrates adorava enquanto sob vigilância do Daimon[32]; e ambas as formas de razão que Blake rejeita como abominação espectral. “Jesus”, declara ele, “era todo virtude e agia por impulso, não por regras”.
Aqueles que quiserem ver a mitologia de Blake desenvolvida em imagens esplêndidas e cadeias de sofismas prolongados podem pegar as obras de Shelley, o mais puro dos românticos ingleses – também um platônico, como a maioria de seus admiradores o consideram. “Sob formas de pensamento derivadas do ateísta e materialista Godwin”, lemos em um dos mais bem informados críticos britânicos vivos, “Shelley deu, em Prometheus Unbound, magnífica expressão à fé de Platãoe de Cristo”.[33] A fé de Platão e de Cristo! Devo confessar que encontrar tais palavras em tal lugar é ser dominado pela futilidade de escrever. O que dirá um platônico? O que ele não dirá? O estudante mais casual deve perceber que o êthos do drama de Shelley, por meio de sua parafernália superficial de empréstimos clássicos e platônicos, é antípoda ao verdadeiro classicismo e platonismo. Se as palavras significam alguma coisa, o poema respira o espírito de rebelião contra a ideia do divino como um poder restritivo e inibidor, e é animado pelo sonho de divinizar as emoções emancipadas em seu lugar. Aqui, se em qualquer lugar, a voz que nega é má:
“Music is in the sea and air,
Winged clouds soar here and there,
Dark with the rain new buds are dreaming of:
‘T is love, all love!”[34]
(Esse amor, o leitor não convencido deve acrescentar, não exclui o ódio e a amarga intolerância por aqueles que adoraram um Deus diferente.)
Esses pseudoplatônicos podem ser conhecidos através de um teste simples: todos eles se agarram aos elementos imaginativos e emocionais do platonismo, mas esquecem que a afirmação espiritual fala de um recesso escuro da alma (escuro, diria Platão, por conta do excesso de luz), em que nenhuma imagem de semelhança mortal é vista, e na qual nenhum motivo positivo pode entrar. E assim você os encontrará substituindo a espontaneidade desenfreada por controle centralizado, expansividade infinita por obediência ao controle interno e um senso exagerado de importância pessoal pela impessoalidade do espírito. Eles são os filhos de Plotino e dos cidadãos de Alexandria.
Mas se a palavra final do platonismo, vista pelo lado da razão e da concupiscência como o fim de toda espiritualidade genuína for uma negação, não devemos, portanto, supor que ela signifique ou ordene um empobrecimento de nossa existência humana. O próprio contrário disso é verdade. Não nego que o dualismo de corpo e alma, que Platão aparentemente retirou dos antigos mistérios órficos, o levou às vezes a louvar um ascetismo puro, e é fácil ver por que esse aspecto de seu ensino exerceu desproporcional influência naqueles depois de eras em que o mundo parecia estar se desintegrando diante dos olhos dos homens e caindo em seu caos original. Na verdade, lembrar o catálogo dos males, como “ver um mendigo abandonado”, o que levou Shakespeare, o menos asceta dos poetas, a clamar por uma morte repousante e reconhecer as inevitáveis traições da esperança e os débeis resultados do esforço, as antipatias sombrias ou a indiferença despreocupada da humanidade por tudo que os convoca para fora de suas preocupações efêmeras – refletindo sobre essas coisas, não deveria ousar negar que um dos ofícios justos e permanentes da filosofia é criar para a alma ansiosa um refúgio do mundo. Há momentos em nossos dias, como no de Platão, em que nenhuma outra segurança ou conforto nos parece aberta além do caminho de fuga. Não repudiaria a grande passagem de A República em que Platão resume os obstáculos que se colocam a quem, vivendo a vida filosófica, almeja estar no mundo e ser do mundo:
Bem poucos são, então, – prossegui eu – ó Adimanto, os que nos restam, dignos de conviver com a filosofia, a não ser qualquer espírito nobre e com boa educação, retido pelo exílio, e que, por falta de quem o corrompa, permanece por natureza fiel à filosofia; ou quando, numa cidade pequena, uma grande alma menosprezar a administração do seu país e não se interessar por ela; um pequeno número ainda, que, afastando-se com razão de outra arte que desprezam, vêm para a filosofia, para a qual são naturalmente dotados. Oxalá que o freio que retém o nosso companheiro Teages seja capaz de aguentar. Pois tudo quanto há se reuniu para fazer baixar Teages das alturas da filosofia, mas os cuidados com a sua doença física o afastam da política e o retêm. Quanto ao nosso caso, o sinal divino – não merece a pena que se fale dele, pois ninguém, ou quase, o teve no passado. E os que se tornaram membros desse pequeno grupo, que provaram a doçura e beatitude desse bem, quando viram suficientemente a loucura da multidão, e que ninguém executa nada de sensato, por assim dizer, no governo dos Estados, nem há aliado em cuja companhia pudessem prestar socorro à justiça, ficando são e salvo, mas antes como se fosse um homem que tivesse caído no meio das feras, sem querer colaborar nos seus desmandos nem ser capaz de, sozinho, resistir a todo esse bando selvagem, perece antes de poder ser de qualquer utilidade à cidade ou aos amigos, sem vantagem para si mesmo nem para os outros – depois de refletirem em tudo isto, mantêm-se tranquilos, ocupam-se dos seus afazeres, como quem, surpreendido por uma tempestade, se abriga atrás de um muro do turbilhão de poeira e do aguaceiro levantados pelo vento; eles, ao verem os outros alagados em injustiça, sentem-se felizes, se viverem neste mundo puros de injustiça e de impiedade, e se se libertarem desta vida com boa disposição, animosos e acompanhados de uma formosa esperança. [35]
Estes são alguns daqueles momentos de que, ao olhar para a futilidade humana, dizemos que o próprio grande timoneiro[36], tendo largado o timão e se retirado para sua torre de vigia, deixou o mundo para ser empurrado para trás em seu curso por seu próprio desejo predestinado e inato.[37] Esses momentos de abatimento ocorrerão a todo homem pensante, e também para eles a filosofia tem sua missão de cura. E quando a hora da partida estiver próxima e a obra da vida estiver concluída, como naquele dia na prisão ateniense quando Sócrates estava conversando pela última vez com seus amigos e discípulos, então, também, a filosofia aparecerá como um estudo de morte e uma longa preparação para a rendição das preocupações desta terra.[38]
Mas essa não é a nota característica de Platão, nem o aspecto da filosofia sobre o qual é bom atentar-se em demasia. Em vez disso, devemos nos deter na plenitude da existência que pertence por direito àquele que se superou. Ninguém, penso eu, pode ler os Diálogos sem ficar impressionado, acima de tudo, pela ampla sabedoria de vida que inculcam e exibem. Seria necessário um livro inteiro para exibir esta verdade em detalhes, mas alguma noção de seu escopo pode ser obtida tomando algumas frases de um Diálogo no qual, pela natureza de seu tema, seria menos esperado encontrar esses usos práticos da filosofia. Se, pego pela nota ocasional de ascetismo, alguém acreditar que o ensino de Platão é contrário à máxima de uma mente sã em um corpo são, ele não precisa estudar o livro da República[39], que trata longamente do treinamento físico como uma preparação para o ensino superior, mas pode encontrar a doutrina declarada com suficiente clareza em algumas palavras passageiras do Timeu.[40] “Tudo o que é bom é justo”, está aí dito, “e o justo não pode faltar na proporção”. Consequentemente, o homem são não permitirá que sua inteligência cresça às custas de sua força física – “a alma não deve ser exercitada em negligência do corpo, nem o corpo em negligência da alma, a fim de que, sendo compatível um para o outro, eles possam alcançar equilíbrio e saúde”. Esse é o fundamento, mas, além disso, todo o teor do Diálogo é testemunha do interesse de Platão no jogo do intelecto por si mesmo. Particularmente nas grandes observações da lei natural, ele vê um campo de atividade infinita e elevada; “Pois”, diz ele, “se buscarmos isso como uma fonte de recreação, não esquecendo o princípio do ser eterno, mas ganhando das teorias plausíveis dos fenômenos um prazer livre de remorso, podemos criar para nós um entretenimento sóbrio e inteligente para vida”.[41]
As preocupações do filósofo não se encerram com o exercício do corpo e do entendimento; as artes também serão inclusas em seu campo de ação e seu amor genuíno pela beleza. Seja seu interesse em matemática[42] ou em qualquer outra atividade intelectual, ele irá, se for corretamente chamado de homem culto, aplicar-se às artes[43] – não, de fato, como o faz o comum irrefletido, que busca prazer apenas em formas encantadoras ou no concurso de sons doces, mas à maneira daqueles homens mais sábios que encontram felicidade na imitação da harmonia divina nos movimentos mortais. Assim, como diz Platão em outro lugar, a filosofia é a razão temperada pela música[44], a melhor guardiã e salvadora da alma, a única que, se nasce no homem, é capaz de preservá-lo na virtude até o fim.
No entanto, há também nesses estudos um objetivo mais elevado do que a gratificação imediata e a segurança que eles oferecem. Alguém supõe que alcançará diretamente a certeza da intuição espiritual, sem a disciplina que vem de exercer o cérebro na esfera inferior do conhecimento, ou que seus olhos verão Deus antes de aprenderem a olhar com simpático interesse para a expansão ordenada da criação, ou que ele experimentará o mistério da eternidade quando nunca se preocupou em adquirir as longas lições do tempo? Possivelmente, para alguns homens, este caminho breve e pouco laborioso para o cume pode estar aberto; mas eles não o encontrarão indicado em Platão.
A filosofia, como exposta por Platão nos bosques da Academia, era a plenitude da vida, movendo-se cada vez para planos mais elevados e ricos de conhecimento e sentimento. No entanto, era uma vida também condicionada pela lei moral, conscientemente presente como um freio interno estabelecendo limites para a compreensão da razão, detendo o fluxo dos desejos, governando a imaginação, não trazendo estagnação e morte, como alguns tolamente supõem[45], mas oferecendo a única fruição de nossa natureza, que é a verdadeira liberdade, e se opondo àquela licença cujo fim é a facção e doença da alma.[46] A operação vigilante, maneira pela qual o Espírito de Deus se move sobre a superfície das águas, não podemos explicar; é da própria essência do dualismo que a relação entre os elementos de nosso ser não possa ser expressa em termos positivos.[47] O início e o fim da filosofia estão contidos na afirmação espiritual de que é melhor ser justo do que injusto, melhor sofrer todas as coisas por causa da justiça do que praticar a injustiça[48]; mas na prática diária da vida nenhuma lei absoluta de conduta justa foi concedida ao homem, e ele é deixado à severa necessidade de se aproximar da sabedoria humildemente pelo lento acúmulo de experiência e do aprendizado pelo sofrimento.[49] Deve parecer que Platão, no proposto Diálogo sobre o Filósofo, tinha em mente responder às perplexidades do paradoxo dualista de uma vez por todas e estabelecer a lei do espírito na linguagem da metafísica positiva. Aquele diálogo que ele nunca escreveu, para ser sincero consigo mesmo, não poderia escrever; e quem presumirá fornecer o que a mão do mestre deixou por fazer?
“The unfinished window in Aladdin’s tower / Unfinished must remain.”
Mas Platão fez mais por nós do que o prometido. Se a imagem do filósofo como um ideal abstrato não foi desenhada, ele nos deixou nas delineações do caráter de Sócrates um retrato imortal da filosofia encarnada em um homem histórico vivo. Não tentarei recontar uma história cuja beleza está aberta para qualquer um ler em sua perfeição. É suficiente apontar para a lição dessa vida como uma reconciliação prática do paradoxo que confunde a razão e leva tantas mentes perturbadas ao extremo positivo do ascetismo religioso ou ao extremo negativo do hedonismo. Sócrates não era asceta; duvido que algum cidadão de Atenas apreciasse mais intensamente os prazeres comuns da época, ou fosse mais calorosamente bem-vindo entre os homens de todos os matizes de crença e todos os modos de vida – exceto entre os trapaceiros e enganadores. Ainda assim ele andou sempre com o ouvido inclinado à voz da inibição divina; e quando a voz falou, foi como se uma parede invisível fosse lançada sobre ele, isolando-o das solicitações do mundo. Não era apenas que ele podia misturar indulgência inocente com autocontenção inflexível e combinar aceitação das chances de fortuna com a mais clara autodireção, mas havia sobre ele uma reserva, uma marca de poder, um sinal de emancipação, que provou que ele havia negociado com a vida em seus próprios termos. Aqueles que se aproximaram dele sabiam que tudo o que o mundo desejava, mas jogou fora, ele tinha.
Pois, embora possamos calcular a soma dos prazeres e dores em uma existência como a de Sócrates, os registros, se as palavras têm algum significado, não nos deixam em dúvida quanto à sua felicidade. No final do relato de seu último dia na prisão, o relator da cena declara[50] que para seus amigos ele parecia na morte o melhor, o mais sábio e o mais justo de todos os homens que conheceram. A esses epítetos o relator poderia muito bem ter acrescentado “o mais feliz”. Essa, de fato, é a impressão mais forte e duradoura que temos do homem, seu testemunho peculiar da realidade do espírito e do valor da filosofia – sua felicidade. Outros santos e sábios indicaram o caminho para uma vida na fé, nos encantaram com a doçura de sua renúncia, nos incitaram com o fogo de sua caridade, nos animaram com sua grande coragem, nos humilharam por sua superioridade à tentação, nos seduziram pela visão do céu em seus rostos, nos ensinaram, em certa medida, a diferença entre a paz e o prazer da alma: mas se não fosse por Sócrates, o mundo, nosso mundo ocidental pelo menos, não teria nenhuma garantia de vitória suprema da verdade na felicidade. Nisso ele era maior do que seu maior aluno. Com toda a imaginação e profundidade de percepção de Platão, apesar do fato de que apenas por meio de sua simpatia e compreensão sutil os traços do mestre são realmente conhecidos por nós, há sinais aqui e ali em suas obras de que ele mesmo nunca conquistou totalmente o mundo ou se ergueu bem acima das brumas do orgulho espiritual. Não pretendo, com essas palavras finais, menosprezar a realização de alguém cujos escritos são a fonte mais pura de filosofia já concedida à humanidade; mas é verdade, não obstante, que, embora Platão pudesse perceber e descrever a serenidade de Sócrates, ele não poderia possuí-la completamente. E quando, em sua busca de muitas questões, ele se desviou para caminhos duvidosos, como de vez em quando, deixando a porta aberta para os estranhos equívocos e confusões de um pseudoplatonismo, foi porque naquele momento ele se permitiu ser infiel à humildade de espírito que era tanto a força de Sócrates quanto sua certeza de convicção espiritual. Há uma curiosa história em Diógenes Laércio que conta como Sócrates certa vez encontrou Xenofonte em uma viela estreita e, colocando seu cajado de lado a lado para impedir a passagem do jovem, perguntou-lhe onde as várias necessidades da vida estavam à venda. E quando Xenofonte respondeu, ele perguntou novamente onde os homens poderiam ser feitos bons e virtuosos. E, não recebendo resposta, disse: “Siga-me, então, e aprenda”. Assim, à medida que lemos os Diálogos de Platão, a figura de Sócrates parece surgir diante de nós, desafiando-nos com suas indagações e nos pedindo que o sigamos na busca da verdade e do bem. Ele não diria, se nos encontrasse agora, que deveríamos fazer de sua vida na antiga Atenas o modelo exato de nossa conduta, pois isso era determinado pelas circunstâncias efêmeras da hora; prefere ordenar que tratemos honestamente conosco e com os outros, como ele fez, e esperemos nossa recompensa naquela felicidade que é a coroa da filosofia.
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Referências Bibliográficas citadas no texto ou nos comentários.
Bíblias Utilizadas
C.E. Vaughan
- The Political Writings of Jean-Jacques Rousseau
C.H. Herford
- Cambridge History of English Literature
Christopher Dawson
Delmar Cardoso
Eric Voegelin
- The Collected Works of Eric Voegelin Vol.5: Modernity Without Restraint
Friedrich Nietzsche
Friedrich Paulsen
- Immanuel Kant
Immanuel Kant
P.B. Shelley
- Prometheus Unbound
Platão
- Diálogos II: Górgias (ou Da Retórica), Eutidemo (Ou da Disputa), Hípias Maior (ou Do Belo), Hípias Menor (ou Do Falso).
- Diálogos III: Fedro (ou Do Belo), Eutífron (Ou da Religiosidade), Apologia de Sócrates, Críton (ou Do Dever), Fédon (ou da Alma).
- Diálogos IV: Parmênides (ou Das Formas), Político (Ou da Realeza), Filebo (Ou do Prazer), Lísis (Ou da Amizade).
- Diálogos V: O Banquete, Mênon (Ou da Virtude), Timeu, Crítias.
- A República.
Richard Hooker
- Of the Laws of Ecclesiastical Polity.
São Bernardo de Claraval
Sto. Tomás de Aquino
William Blake
William Paley
- Evidences of Christianity
Notas:
[1] O texto originalmente é a conclusão do livro Platonism, que, naturalmente, é uma exposição das idéias de Platão. [N. do T]
[2] “Contemplation of all time and all being”. A República 486a. [N. do A]
[3] Termo platônico para a realidade suprema e lar dos deuses. Céu empíreo. “A região além do céu jamais foi dignamente cantada por nenhum poeta terrestre, nem nunca o será” – Platão, Fedro 247 c3. [N. do T]
[4] Ou seja, a menos que estejamos dispostos e jogar tudo para o alto em prol de uma sabedoria rudimentar, é preciso prudência. [N. do T]
[5] “Caríssimos, não acrediteis em todo o espírito, mas examinais os espíritos para ver se são de Deus, porque muitos falsos profetas apareceram no mundo. “ 1: João 4.1 [N. do T]
[6] More chama a incerteza inerente à fé de ceticismo. [N. do T]
[7] O anseio pela transformação da esperança confiante da fé em uma espécie de certeza científica é um dos impulsos que arrastam o crente para a gnose. Eric Voegelin examina o fenômeno em Science, Politics and Gnosticism, presente em The Collected Works of Eric Voegelin Vol.5: Modernity Without Restraint p.313: “The gnostic mass movements of our time betray in their symbolism a certain derivation from Christianity and its experience of faith. The temptation to fall from a spiritual height that brings the element of uncertainty into final clarity down into the more solid certainty of world-immanent, sensible fulfillment, nevertheless, seems to be a general human problem. Cases of border experience, where the element of insecurity in the constitution of being becomes evident, were chosen from four different civilizational orbits to show that a typical phenomenon is involved in the modern mass movements, despite their historical uniqueness.” [N. do T]
[8] Pode-se ver aqui uma referência às três libidos encontradas em 1 Jo. 2,16: Quoniam omne quod est in mundo concupiscentia carnis et concupiscentia oculorum est et superbia vitae [por que tudo que há no mundo – concupiscência da carne, concupiscência dos olhos e orgulho da riqueza –, isso não vem do Pai, mas do mundo]. O fanático acredita que a voz do mundo é a voz do Pai. [N. do T]
[9] O “orgulho do asceta” mencionado pode ser visto como a Singularidade, o quinto grau da soberba elencado por S. Bernardo de Claraval em seu Os Graus da Humildade e da Soberba [XVI.44], e consiste no seguinte: na intenção de alimentar seu orgulho e ser admirado, o monge procura mortificar-se mais do que qualquer outro e sofre quando não o pode. Assim, antes de mortificar-se corretamente para purgar seus pecados, o sujeito jejua para acariciar seu orgulho com o elogio alheio. Antes a aparência do que a essência. Esse comportamento, por sua aparência de piedade, pode colocar os monges novatos no erro. [N. do T]
[10] William Paley – Evidences of Christianity, II, ii, 2. [N. do A]
[11] No trecho citado, Paley faz um ataque virulento à vida monástica ao considerá-la como fanática e contra a doutrina de Cristo – o que abre a questão de se, por acaso, o autor tinha alguma notícia dos fundamentos de tal vida e do sentido da mortificação. Mas nada está mais afastado da realidade e, em verdade, tal objeção já foi respondida alguns séculos antes por Sto. Tomás de Aquino, no capítulo CXXXIII do livro III – e seguintes – da Suma Contra os Gentios quando discutia a legitimidade da pobreza voluntária contra seus objetores. Reproduzo aqui parte do capítulo citado:
“Como há, no entanto, virtudes ativas e virtudes passivas, umas e outras precisam diversamente das riquezas. Com efeito, as virtudes contemplativas delas precisam somente para o sustento da natureza; mas, as virtudes ativas, delas necessitam para isto, e também para o auxílio dos outros com os quais se convive. Vê-se, pois, que também nisto a vida contemplativa é mais perfeita, porque precisa de menos bens. A esta vida pertence o fato de que o homem se dedique totalmente às coisas divinas, perfeição esta aconselhada ao homem pela doutrina de Cristo. Por isso, aos que seguem esta vida de perfeição é suficiente um mínimo de bens externos, somente os necessários para o sustento natural. Donde dizer o Apóstolo: Tendo os alimentos e as vestes, estejamos contentes com isto (l Tm 6, 8).
Por isto, a pobreza é louvável, enquanto liberta o homem dos vícios que as riquezas trazem para alguns. Enquanto afasta o cuidado proveniente das riquezas, ela também é útil para outros, isto é, para aqueles que se dispõem a se ocupar de coisas melhores. No entanto, para outros, ela é nociva, isto é, para os que não tendo tal cuidado, entregam-se a ocupações piores. Por isso, escreve S. Gregório (VI Moral 37; PL 75, 761): Freqüentemente os que estão bem ocupados, vivendo segundo os costumes humanos, foram mortos pela espada da sua ociosidade. Mas, enquanto a pobreza afasta o bem próprio das riquezas, a saber, o auxílio aos outros e o sustento de si, ela é simplesmente má, a não ser que o auxílio que se deve levar ao próximo com bens terrenos possa ser compensado por um bem maior, como, por exemplo, quando alguém carente de riqueza possa ocupar-se mais livremente com coisas divinas e espirituais. Mas, o bem do sustento pessoal é de tal modo necessário que não pode ser compensado por outro bem qualquer, pois o homem não deve trocar o seu sustento pessoal por nenhum outro bem que adquira. ” Para um pouco mais sobre o monaquismo, ver Christopher Dawson, A Formação da Cristandade p.261ss. [N. do T]
[12] Para um retrato do caso puritano, ver The Collected Works of Eric Voegelin Vol.5: Modernity Without Restraint p.196 e ss. [N. do T]
[13] Thomas Sprat (1635 – 1713) foi um bispo anglicano. [N. do T]
[14] William Paley – Evidences of Christianity, II, ii, 3. [N. do A]
[15] Immanuel Kant – Fundamentação da Metafísica dos Costumes BA 52 ou p.62 na edição consultada. [N. do T]
[16] Primeira Guerra Mundial. [N. do T]
[17] Vontade de domínio. Por vezes chamada de Superbiae. Nas palavras de Enzo Bianchi: Se não for freada e se não receber um limite, a libido dominandi se torna o ídolo mais devastador em nível social e político. Segundo Julia Kristeva, ele é a forma culminante do narcisismo e leva o indivíduo ou o sujeito político ou institucional a olhar para si mesmo como para Deus. Mas o resultado sociopolítico de um narcisismo extremo é o poder totalitário, ditatorial. Ver Contra as Três Libidos. [N. do T]
[18] Interpretação errônea de Kant. O “sentido moral” na ética kantiana refere-se antes aos imperativos da razão e não à vontade mesma, e esses imperativos que direcionam a vontade não contradizem a Razão Pura que, por sua vez, é uma faculdade de princípios reguladores e contém, entre eles, a liberdade, a única das idéias da Razão Pura que possui correlativo real e é pressuposto para que haja uma ética. Por outro lado, é possível de fato confundir a vontade do sujeito com leis universais na medida em que essa vontade está imbuída na chamada libido dominandi. Mas aqui estamos falando já de outro assunto. [N. do T]
[19] Paulsen, em seu famoso comentário, alude continuamente ao “platonismo” de Kant, mas, inadvertidamente, passagem após passagem, mostra o quão longe o dualismo racionalista (e totalmente inconsistente) de Kant está do dualismo ético de Platão, e com que facilidade ele escorrega em um dogmatismo da vontade. “Com certeza imediata”, diz ele, “afirmamos o bem moral como a finalidade real da vida. Fazemos isso, não por meio do entendimento ou do pensamento científico, mas pela vontade, ou, como diz Kant, pela razão prática. No fato de que a vontade, a única que julga as coisas como ‘boas’ ou ‘más’, determina a moralidade como aquilo que tem valor absoluto, temos o ponto de partida para a interpretação da vida ”. O resultado disso ele afirma em outro lugar: “Talvez possamos dizer que há uma relação interna entre a ética de Kant e a natureza prussiana. A concepção da vida como serviço, uma disposição para ordenar tudo de acordo com as regras, uma certa descrença na natureza humana e uma espécie de falta da plenitude natural da vida, são traços comuns a ambos. É um tipo de caráter humano altamente estimável que aqui encontramos, mas não adorável. Tem algo frio e severo que pode muito bem degenerar para o exterior cumprimento do dever e rígida moralidade doutrinária. ” (Immanuel Kant, de Friedrich Paulsen, traduzido por J. E. Creighton e Albert Lefevre, pp. 5 e 54.) [N. do A]
[20] Richard Hooker – Of the Laws of Ecclesiastical Polity, Pref. viii. 12, in The Works, ed. John Keble (3rd ed., Oxford, 1845). [N. do A]
[21] As idéias platônicas, por sua própria natureza, nunca podem “materializar-se” ou dar-se perfeitamente no plano das coisas contingentes, i.e., o nosso. [N. do T]
[22] More refere-se ao ceticismo político e não ao epistemológico. Ainda assim o termo permanece impreciso e até anacrônico, sendo preferível o uso do termo prudência ou até, para citar Aristóteles, phronesis. [N. do T]
[23] Procurei manter o significado do pathos grego em detrimento do emotions inglês, que não carrega toda a carga semântica que se quer transmitir. [N. do T]
[24] O dualismo platônico nada tem de irracional. Ele se funda no mito da biga alada como forma de simbolizar duas esferas da composição do homem e, na medida em que o mito está intimamente vinculado à razão, a pecha não se justifica. Para pormenores, ver Delmar Cardoso – A Alma como Centro do Filosofar de Platão. [N. do T]
[25] É muito estranho que More chame o mal de força positiva após Agostinho ter demonstrado que é precisamente uma privação. [N. do T]
[26] As questões aqui apontadas vieram do The Problem of Evil in Plotinus, de B.A.G. Fuller. Recomendo este estudo àqueles que desejarem examinar de maneira aprofundada tal assunto de tão grande importância que aqui fui obrigado a tratar de maneira tão sumária. [N. do A]
[27] C.E. Vaughan, The Political Writings of Jean Jacques Rousseau I, p.236. [N. do A.]
[28] A República 419a. [N. do A.]
[29] William Blake – Jerusalem f.10, II. 8-16 [N.do A]
[30] Eles pegam os Dois Contrários que são chamados Qualidades,
com os quais
Cada Substância é vestida, nomeiam-nos Bem & Mal
Deles fazem um Abstrato, que é uma Negação
Não somente da Substância da qual é derivado
Um assassino de seu próprio Corpo: mas também um
assassino
De todo Membro Divino: é o Poder de Raciocínio
Um poder de objeção Abstrato, que Anula tudo
Esse é o Espectro do Homem: o Santo Poder de Raciocínio
E em sua Santidade é encenada a Abominação do
Desolamento
Tradução retirada de William Blake – Jerusalém, Ed. Hedra, tradução de Saulo Alencastre. [N. do T]
[31] More refere ao racionalismo como a escola de pensamento em geral que toma a razão como unidade autônoma dotada de autoridade judicativa última, digo, como autenticadora suprema da verdade. Tal pensamento tem origem, em especial, em Descartes. [N. do T]
[32] Daimon era o “espírito guia” de Sócrates. Ao contrário do que possa parecer, ele não é algo parecido com o que conhecemos por demônio; inversamente, podemos vê-lo, ceteris paribus, como uma espécie de anjo da guarda. [N. do T]
[33] C.H. Herford, Cambridge History of English Literature XII, 74
[34] Prometheus Unbound, Act 4, Scene 1.
“A música está no mar e no ar,
Nuvens aladas voam aqui e ali
Escuro com a chuva, novos botões sonham:
Isso é amor, todo o amor! ” [N. do T]
[35] Elmer More refere a passagem como 496a, mas trata-se na verdade de 496b na versão consultada. [N. do T]
[36] Platão – Político 272 e. [N. do A]
[37] O trecho referido é o seguinte: “Quando se consumou o tempo referente a todas essas coisas, chegando a hora de ocorrer a mudança, e diante do esgotamento da raça nascida da terra — situação caracterizada pelo fato e de toda alma haver completado todos os nascimentos, caindo sobre a terra na qualidade de semente tantas vezes quanto as prescritas — o timoneiro do universo largou o timão e se retirou para o seu posto de vigia; então o destino que cabia ao universo ordenado e o desejo inato fizeram o universo se mover circularmente ao inverso, para trás.” [N. do T]
[38] Filosofia como preparação para a morte [N. do T]
[39] More refere-se a trechos como República 377a. [N. do T]
[40] Platão – Timeu 87c. [N. do A]
[41] Platão – Timeu 59c. [N. do A]
[42] Platão – Timeu 88c. [N. do A]
[43] Platão – Timeu 80b. [N. do A]
[44] Platão – A República 549a. [N. do A]
[45] Alguns autores, como Nietzsche, supõe [erroneamente] que tal controle da razão é uma espécie de “negação da vida”. Por exemplo, no Cap.5 de Crepúsculo dos ídolos: “A igreja combate a paixão com a extirpação de todo sentido: sua prática, sua “cura” é castracionismo. Ela jamais pergunta: “como espiritualizar, embelezar, divinizar um desejo?” – em todas as épocas, ao disciplinar, ela pôs a ênfase na erradicação (da sensualidade, do orgulho, da avidez de domínio, da cupidez, da ânsia de vingança). – Mas atacar as paixões pela raiz significa atacar a vida pela raiz: a prática da Igreja é hostil à vida…” atente-se ao dado curioso de que o autor identifica a vida com uma coletânea de vícios. [N. do T]
[46] A doença da alma [nosos] é um tema recorrente em Platão e comumente refere-se a uma coletânea de vícios advinda da ignorância do bem. Pode ser vista ainda como uma espécie de loucura. [N. do T]
[47] Daí o uso de mitos para expressar aquilo que não pode ser conceituável sob o risco de deformar nossa experiência do real simbolizado. [N. do T]
[48] Uma das melhores discussões sobre esse assunto pode ser vista em Górgias 507a ss. [N. do T]
[49] Mais tarde esse acúmulo de experiências de vida será tratado por Aristóteles sob o nome de phrónesis.
[50] Platão – Fédon 118 [N. do A]