Por Helkein Filosofia
Portanto, nenhum homem pode verdadeiramente se declarar indiferente à filosofia, porque seria como declarasse o próprio desinteresse pela felicidade.
Tratando-se de filosofia, é raro que encontremos introduções que não sejam superficiais a ponto de passarem a falsa impressão de que a matéria tratada nada possui em matéria de dificuldade. Isso se intensifica quando falamos de filosofia antiga e, nesse sentido, é um alívio encontrar uma boa introdução panorâmica a Platão, como a de que trataremos aqui.
O Platão, de Franco Trabattoni, foi uma grata surpresa; tomei notícia de sua existência através do livro A Alma Como Centro do Filosofar de Platão, que tomava o autor como principal comentador para tratar das questões examinadas no Fedro de Platão. Como um livro muito bom tende a citar livros da mesma estirpe, resolvi verificar e encontrei talvez a melhor introdução panorâmica a Platão e sua obra que eu poderia esperar.
O livro se inicia com uma breve introdução biográfica, como urge em livro do tipo; o livro inteiro funciona com comentários breves e concisos, embora o autor “pese a mão”, como deve ser em livros de filosofia que prezem pela seriedade, tendo em vista que assuntos graves exigem certo respeito ao tema. Encontramos, ainda no início do livro, um tratamento da relação de Sócrates e Platão e, por conseguinte, de sua orientação ética e política, que desembocará no capítulo III, que trata da crítica de Platão à cultura de sua época. E o “caminho” do tratamento foi bem escolhido, tendo em vista que o tratamento ético e seu reflexo na Pólis são tônicas onipresentes na obra de Platão, assim como sua crítica cultural que, embora feita num certo contexto histórico, carrega caracteres suficientemente universais para que seja aplicável a muitas outras eras, inclusa à nossa.
Um pouco mais à frente, encontramos a explicação da troça de Aristófanes a Sócrates[1] quando fez deste um sofista em suas comédias; e os sofistas são o tema do capítulo V, que trata da crítica platônica ao relativismo[2] e o uso perverso da retórica, outra tônica onipresente da filosofia de Platão e que dará ensejo tanto à crítica da escrita quanto à do conteúdo da poesia. Em seguida, trata-se de algo que muito interessa ao estudante de Platão , a saber, suas concepções de realidade e conhecimento, que são examinadas concisamente e comparadas às concepções encontradas nos pré-socráticos, algo imprescindível para que se entenda de onde Platão tirava suas questões. É interessante atentar-se que é um capítulo ‘destruidor de sonhos’ na medida em que, além de deixar claro que as teses de Platão não podem ser encontradas todas em um livro só, mostra também que a concepção de conhecimento em Platão nem está toda no Teeteto e nem é algo como ‘crença verdadeira e justificada”, concepção que, a saber, é rejeitada pelo filósofo.[3]
O capítulo VI trata da eidos — ou “teoria das ideias” — e, em linhas gerais, da concepção de metafísica platônica no contexto da chamada Segunda Navegação; o exame é didático e preciso, algo raríssimo nos comentários de Platão. Digo isso pois é facílimo que a concepção de eidos em Platão seja comparada à moderna noção de ideia ou conceito, um erro crasso que tira toda a realidade da noção platônica e cai em anacronismo, deturpando o entendimento do leitor. O contexto da Segunda Navegação enquanto superação do “naturalismo” dos pré-socráticos em direção ao suprassensível, não enquanto “outro mundo”, mas como outro lado da moeda do ser mesmo também é algo perigoso, visto que a confusão acerca do mito do “topos” das ideias faz com que pareça haver um abismo instransponível, por assim dizer, entre a forma a matéria, algo que não ocorre em Platão. Encontramos no mesmo capítulo algo já prenunciado no capítulo II[4], a saber, que a filosofia de Platão não é um sistema; a filosofia como sistema[5] é algo eminentemente moderno, então é natural que não possamos “anacronizar” chamando a filosofia antiga por tal termo, algo que, infelizmente, parece não ter sido notado por alguns autores.
O capítulo VII se ocupa da República e de sua miríade de temas, sendo nele que encontraremos a famosa distinção entre o filósofo e o filodoxo, entre a doxa e a epísteme, entre a dianóia e a noesis. Como não poderia faltar em um livro de Platão, encontraremos também uma exposição — muito boa — da alegoria da caverna. É interessante que deixemos aqui o trecho sobre o termo filodoxo que, por vezes, assemelhar-se-á ao termo sofista.
Uma alusão a esse estado de coisas tem lugar também n’A República. Em um determinado momento, para esclarecer bem a natureza do filósofo, Sócrates contrapõe essa figura à do “filodoxo” (480a). É significativo que ele não tenha simplesmente oposto o filósofo, entendido como sábio, ao ignorante, mas, ao contrário, cunhou um estranho neologismo (justamente, “filodoxo”), que significa amante da opinião (doxa). Faz isso justamente porque o filósofo não é o “sábio”, mas aquele que ama a sabedoria; por isso o seu antagonista não pode ser o ignorante, mas, sim, alguém que ama também alguma coisa diferente do saber, que ama, como diz a palavra, a opinião (doxa).[6]
O capítulo VIII trata da antropologia de Platão e de sua concepção de homem como composto de alma e corpo, ainda que a prioridade da alma seja evidenciada constantemente. O capítulo IX explica o amor platônico de forma que o estudante nunca mais terá problemas com interpretações vulgares, como aquela concepção do amor platônico como certa contemplação do inalcançável. Também encontramos aqui o tema da beleza e sua relação com o mesmo amor platônico e a educação da alma — a famosa periagogé.
O capítulo X volta à República, mas agora volta-se aos temas éticos e políticos; aqui temos uma explicação importante, a saber, aquela que mostra o motivo de Platão não poder ser chamado de racionalista, além de postular a prioridade do cuidado da alma em detrimento da atenção à política, algo muito importante em nosso tempo.
O capítulo XI retorna às eidos e adiciona alguns tópicos sobre a dialética e o conhecimento em Platão; temos ainda a famosa discussão sobre o ser e o não-ser no Sofista. Em termos gerais, a discussão discorre sobre o significado do ser e do não-ser como discutidos pelos partidários de Parmênides, na esteira da concepção de que o ser é e o não-ser não é, logo, não pode ser objeto de intelecção; o problema é que o ser é tomado univocamente e causa certo engessamento da realidade, na medida em que a diferença entre as coisas é apagada, o que, já sabido até pelos próprios eleáticos, é absurdo. Platão dividirá, então, o conceito negativo de não-ser em não-ser absoluto, indicando negação absoluta do ser, e não-ser apenas relativo, indicando a diferença entre as coisas.
Assim se resolve também o problema do não ser em sentido semântico. Quando dizemos que algo “não é”, não se tem a intenção de pensar ou exprimir aquele não ser que é oposto ao ser (o nada em sentido absoluto, que justamente não pode ser pensado nem dito), mas o não ser como diferente, que faz parte do ser sob o mesmo título do idêntico, assim como tudo aquilo que não é o belo faz parte do ser tal como o belo. A tarefa do filósofo dialético é evidentemente a de apreender os laços de participação verdadeiros e reais que existem entre os gêneros, dizendo corretamente o que é e o que não é.[7]
As discussões de Platão acerca dos temas parmenídicos são chamados de parricídio na medida em que, embora tenha aprendido muito com Parmênides, nosso filósofo leva a cabo uma superação de suas principais teses.
O capítulo XII se ocupa dos temas cosmológicos e também da interessante discussão acerca do tempo e da eternidade. Aqui o Demiurgo é mostrado como aquele que “materializa” o paradigma celeste, i.e., informa a matéria segundo o modelo das eidos eternas e sua relação com o bem, a beleza, a verdade e a proporção.
O livro abre seu encerramento com o exame da obra que fecha a abóbada do pensamento platônico, a saber, As Leis. Nesse capítulo dissolve-se o mito do “Platão utopista” e do “Platão idealista”; importa ainda atentar que o fenômeno do utopismo, novamente, é moderno e que soa anacrônico atribuí-lo a Platão, como podemos ler em Voegelin:
Utopia é um simbolismo criado por Thomas More para expressar o Nenhures de uma sociedade que não é desfigurada pela superbia vitae, pelo orgulho de vida no sentido de 1 João 2,16. O autor da Utopia desenvolve seu sonho de uma sociedade supostamente perfeita, omitindo de sua estrutura um setor importante da realidade, mas ele sabe o que omitiu e está consciente de sua imagem truncada da realidade como um Nenhures. Em seu emprego contemporâneo por ativistas pensadores e não pensadores, o significado do símbolo foi transformado de uma maneira peculiar. Uma Utopia ainda significa o modelo de uma sociedade perfeita que não pode ser realizada porque um setor importante da realidade foi omitido de sua interpretação, mas seu autor e viciados suspenderam sua consciência de que é irrealizável por causa da omissão.[8]
E por conseguinte, o pensamento platônico tem plena consciência de que a perfeição política é impossível:
Platão confirma, portanto, mais uma vez, um princípio ao qual se manteve fiel ao longo de todo o seu pensamento. O bem é o único valor verdadeiramente suficiente, e nada mais o pode subordinar: nem a lei e nem mesmo a liberdade. Todavia, retorna aqui de maneira amplificada a mesma duplicidade de planos representada no mito, isto é, aquela chamada de atenção para a desigualdade entre modelo e realidade, que é a característica peculiar da última fase do pensamento de Platão. Porque o modelo de uma ciência política entendida como técnica perfeita e infalível não pode ser realizado (a ciência política poderia em todo caso ser possuída por pouquíssimos: 293a), torna-se essencial identificar as formas políticas concretas que mais se aproximam do modelo perfeito, em outras palavras, que o imitem com maior fidelidade. Se é verdade que se equivocam aqueles que apoiam incondicionalmente a democracia, porque acreditam ser possível um agir ético-político, mesmo na ausência de uma norma e de um bom modelo que sirva de inspiração, quem, ao invés, acredita ser possível a instauração de um governo tirânico com, confiado a um técnico da política que conheça perfeitamente o bem e o mal, parece ser demasiadamente otimista.[9]
É curioso perceber que tal concepção de utopia e sua negação setorial da realidade seriam facilmente classificadas como doenças da alma por Platão, tema tratado também no livro de Trabattoni. As últimas páginas do livro tratam do ensinamento oral de Platão, i.e., as doutrinas não escritas, que seriam o fechamento e o andar superior do pensamento platônico, que, por sua dificuldade e riscos de deturpação por desavisados, foi restrito a um pequeno círculo de discípulos pessoalmente guiado pelo filósofo. Tal tema é tratado exaustivamente nos livros Para uma Nova Interpretação de Platão, de Giovanni Reale, e em Platão e a Escritura da Filosofia, de Thomas A. Szlezák.
Até o momento, o Platão, de Franco Trabattoni, é a melhor introdução a Platão e ao pensamento platônico que tive a oportunidade de ler. Para o estudante mais curioso, no fim do livro há uma bibliografia selecionada para cada tema tratado. A linguagem é simples, mas em nenhum momento se torna simplista, revelando a atenção que o autor teve em “andar na corda bamba” e escrever um texto que mantivesse o equilíbrio entre a acessibilidade e a precisão.
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Notas:
[1] Ver As Nuvens. Trabattoni trata disso na p.50
[2] “De fato, ninguém é verdadeiramente relativista ou nominalista; tanto é verdade que todos entendem perfeitamente a natureza dos problemas propostos pelas perguntas socráticas e, além do mais, procuram confiantemente arriscar uma resposta” Franco Trabattoni — Platão p.125
[3] “Uma vez que esse critério ainda não foi encontrado, a definição do conhecimento como ‘opinião verdadeira’ revela-se insuficiente.” Franco Trabattoni — Platão p.210
[4] Em especial na p.25, onde também temos uma breve explicação do uso do mito como expressão desse proceder “não dogmático ou doutrinal”.
[5] Podemos encontrar um bom exemplo no Dicionário de Filosofia de Nicola Abbagnano, onde encontramos na p.1077: “Schelling dizia: “admite-se em geral que à filosofia convém uma forma especificamente sua, que se chama de sistemática. Pressupor tal forma não deduzida cabe a outras ciências, que já pressupõem a ciência da ciência, mas não a esta, que se propõe como objeto a possibilidade de semelhante ciência” (System des transzendetalen Idealismus, 1800, I, cap.I; trad. It., p.27).” Não é dificultoso atentar que tal concepção ocorresse após Kant e no contexto do idealismo alemão, que, a saber, pensava a filosofia de forma bruscamente diferente de Platão.
[6] Franco Trabattoni — Platão p.125
[7] Franco Trabattoni — Platão p.238
[8] Eric Voegelin — Ensaios Publicados — 1966–1985 p.384
[9] Franco Trabattoni — Platão p.282