Por Edward Feser
Tradução, notas e comentários de Helkein Filosofia
Uma vez que o corpo docente, inclusos os professores de filosofia, tende a incentivar um mau comportamento entre os jovens, é válido considerar que os mais sérios entre os filósofos ocidentais diriam sobre as opiniões da juventude politizada. Exponho, a seguir, alguns trechos de Platão e Aristóteles; devido à intenção deste texto, deixo de lado a especificidade de certos protestos recentes, uma vez que não são relevantes para nosso ponto. O que nos interessa, aqui, é a forma como as opiniões dos manifestantes tendem a ser irracionais – e isto permanece verdade independente dos motivos do protesto. Parte disto decorre da irracionalidade das multidões; no entanto, elas são especialmente irracionais quando compostas por jovens.
Não confie em ninguém com menos de trinta anos
Platão defendia que sequer os guardiões da Pólis ideal deveriam estudar ou discutir filosofia antes dos trinta anos de idade, e somente obteriam permissão de estudo após adquirir experiência militar, certo conjunto de conhecimentos gerais e treinamento intelectual proporcionado pelo exercício da matemática. Como dito em A República, a dialética (como ele se referia a esse vai-e-vem), quando estudada prematuramente, “cresce o mal de que actualmente enferma” e torna a pessoa “cheia de desordem”,[1] pois a juventude inexperiente tende a tomar os argumentos como jogos, meios para derrubar concepções tradicionais sem considerar sua defesa ou substituta. Platão descreve, então, o jovem afeito a tal filosofia de boteco:
– Ora pois! Se se fizer a uma pessoa nessas condições esta pergunta: “Que é o honesto?”, e, depois de ela responder o que ouviu ao legislador, a sua argumentação ficar confundida, e depois de ser refutada muitas vezes e em muitos pontos, for atirada para a opinião de que o honesto não é mais honesto do que o vergonhoso, e se com o justo, o bom e as qualidades que ela ais venerava se fizer da mesma maneira, depois disso, que atitude julgas que ela tomaria, em relação a elas, no que respeita a honra e obediência? […] quando não tiver já essas máximas na conta de preciosas e familiares, como anteriormente, sem que descubra qual é a verdade, acaso é natural que se acolha a qualquer outro género de vida, que não seja o que o lisonjeia?
[…] não passa despercebido que os rapazes novos, quando pela primeira vez provam a dialética, se servem dela, como de um brinquedo, usando-a constantemente para contradizer, e, imitando os que os refutam, vão eles mesmos refutar outros, e sentem-se felizes como cachorrinhos, em derriçar e dilacerar a toda a hora com argumentos quem estiver perto deles. […] Ora depois de terem refutado muita gente, e, por sua vez, terem sido refutados por vários, caem rapidamente e em toda a força na situação de não acreditar em nada daquilo em que dantes acreditavam. E por este motivo, eles mesmos e tudo o que respeita à filosofia são caluniados perante os outros. […] Ao passo que quem é mais velho – prossegui eu – não quererá participar desta loucura, imitará o que quer discutir para indagar da verdade, de preferência àquele que se entretém a contradizer, pelo gosto de se divertir; ele mesmo será mais comedido e tomará a sua atividade mais honrada, em vez de mais desconsiderada.
República 538d – 539a
Aristóteles opina de forma semelhante em seu Ética a Nicômaco, ao afirmar que a ciência Política (ou, modernamente, filosofia política) não é adequada à juventude:
Sendo assim, o jovem não está apto para o aprendizado da política, porque carece de experiência de vida, que é o que supre o objeto de estudo e as teorias; além do que ele é conduzido por suas paixões, de modo que seu estudo será sem um propósito ou proveito porquanto a finalidade nesse caso é a ação, e não o conhecimento. E não importa se é jovem na idade ou é uma questão de imaturidade. A lacuna não tem cunho cronológico; o problema é que sua vida e as várias metas desta são norteadas pela paixão, pois para tais indivíduos o conhecimento, como para aqueles destituídos de autocontrole, é inútil. Entretanto, para aqueles que guiam seus desejos e ações pela razão, o conhecimento dessas matérias poderá ser sumamente valioso.
Ética a Nicômaco 1094b10+
Tal inexperiência e inaptidão com sentimentos são comentadas em outras partes da Ética a Nicômaco, v.g., quando Aristóteles observa que “o fundamento de sua amizade parece ser o prazer, pois são as emoções que dirigem suas vidas” (1156b1):
[…] embora os jovens tenham a possibilidade de se tornarem geômetras, matemáticos e sábios em domínios similares, inconcebível admitir que um jovem possa se tornar prudente. Eis a razão: a prudência tem a ver com fatos particulares, cujo conhecimento só pode surgir a partir da experiência, experiência cuja posse é impossível para um jovem, pois só o acúmulo dos anos pode produzi-la.
Ética a Nicômaco 1142a15
Aristóteles detalha melhor sua posição quando escreve, na Retórica:
Quanto ao caráter dos jovens, cumpre dizer que são inclinados aos desejos intensos e capazes de satisfazê-los indiscriminadamente. No tocante aos desejos físicos, tendem mais para os desejos sexuais, não sabendo como dominá-los. São volúveis e não tardam a se aborrecer com o que desejaram; quanto mais violentos são seus desejos, menos duram; seus impulsos são entusiásticos, mas sem raízes e efêmeros, como os acessos de fome e sede dos enfermos. São coléricos e destemperados, geralmente cedendo aos seus ímpetos. São subjugados por seu ardor. Devido ao seu amor pelas honras, não são vítimas do desdém e indignam-se se julgam ser objeto de uma injustiça. Amam as honras, mas ainda mais a vitória, pois a juventude é ávida de superioridade, e a vitória constitui um tipo de superioridade. Honras e vitória os tentam mais do que o dinheiro, qual têm em pouquíssima conta, não tendo apreendido ai e significa a sua falta, como testemunha que Pítaco dirige a Anfiarau. Veem mais o lado bom das coisas do que o mau, já que não testemunharam ainda muitos exemplos de maldade. Também são crédulos porque não foram ainda muito enganados. Estão saturados de ditosas esperanças; assemelham-se aos indivíduos tomados pelo vinho, como eles mantêm o sangue aquecido, mas isso por determinação da natureza e porque não experimentaram ainda muitos reveses. Vivem de esperança a maior parte do tempo, e não de lembranças, já que a esperança diz respeito ao futuro, ao passo que as lembranças concernem ao passado, sendo que para a juventude há um longo futuro diante de si e pouco passado. Nos primórdios de nossa vida nada temos para recordar, ao passo que tudo podemos esperar. Os jovens são fáceis de ser ludibriados pela razão que mencionamos relativa às suas amplas expectativas. São mais corajosos do que as pessoas o são em outras idades, sempre prontos a se encolerizar e propensos a esperar um bom resultado de suas ações; a cólera os faz ignorar o medo, enquanto a esperança transmite-lhes confiança; é fato que quando estamos encolerizados, nada tememos, ao passo que o fato de alimentar esperança de algum bem também nos mantém confiantes. São inclinados a se envergonhar e tendem a aceitar as regras da sociedade em que foram educados, não acreditando ainda em qualquer outro padrão de honra. São magnânimos porque a vida ainda não os humilhou e não experimentaram ainda suas necessárias limitações. Ademais, sua disposição esperançosa os faz crer que estão à altura de grandes feitos, o que os liga à magnanimidade. Nas ações preferem o nobre ao útil, isso porque suas existências são mais norteadas pelo caráter do que pelo cálculo racional; ora, o cálculo racional nos leva a optar pelo útil, ao passo que a virtude nos leva à escolha do nobre. Mais do que nas outras idades, são afeiçoados aos seus amigos e companheiros, isto porque extraem prazer da vida em companhia dos outros e não se acostumaram ainda a julgar as coisas com base no seu interesse ou na utilidade, e tampouco naqueles de seus amigos. Seus erros são mais graves e mais incisivos, contrariando a afirmação de Quílon, pois são excessivos em tudo; amam com excesso, odeiam com excesso e sua postura em todas as situações é excessiva. Julgam-se oniscientes e sustentam muito convictamente suas opiniões, o que representa ainda uma das razões de seus excessos em tudo. Quanto às injustiças que perpetram, o que as inspira é a desmedida e não a maldade. São compassivos porque supõem todos virtuosos e melhores do que são de fato. Sua própria inocência constitui seu padrão de julgamento dos outros, de maneira que imaginam que infligimos um tratamento imerecido às pessoas. Gostam do riso, o que os leva a serem bem-humorados e espirituosos; de fato, a espirituosidade é uma espécie de insolência bem-educada.
Eis, portanto o caráter dos jovens.
Os pontos defendidos por Platão e Aristóteles são, em suma: os jovens são excessivamente movidos pela emoção e apetites, faltando experiência para serem prudentes e sabedoria para peritos; são muito propensos ao idealismo ingênuo e possuem um senso exagerado de injustiça unido a certa autoconfiança arrogante, tendendo, em seus esforços intelectuais, ao sofisma e uma irracionalidade cética referente aos costumes tradicionais. Portanto, suas opiniões éticas e políticas são, comumente, tolas.
A democracia emburrece
Isto deve soar – racionalmente – como senso comum. Atentemos que, até agora, ambos os filósofos descreveram as inclinações dos jovens mesmo nos melhores arranjos político-sociais. Mas as coisas podem ser caóticas em configurações ruins. Em seu As Leis, Platão adverte que os jovens se tornam moles e mimados; “a vida indolente desenvolve nas crianças um humor melancólico, tendente à cólera e muito facilmente movido pelas ninharias” (Livro VII, 791d). E, novamente: “supõe que tentássemos assegurar mediante todo meio disponível que nossa criança de peito provasse o mínimo possível de aflição, medo ou sofrimento […] tal procedimento constitui a pior forma de corrupção visto ocorrer em todos os casos no próprio início da educação da criança”. (792b-c)
Platão argumenta, na República,[3] que a música e o entretenimento que celebre o ignóbil incentiva a indulgência passional e corrompe o caráter do jovem, de maneira que tal repercussão não fica alheia à vida social e política:
Portanto, resumindo em poucas palavras, devem os encarregados da cidade apegar-se a este sistema de educação, a fim de que não lhes passe despercebida qualquer alteração, mas que a tenham sob vigilância em todas as situações, para que não haja inovações contra as regras estabelecidas na ginástica nem na música. Acautelem-se o mais possível, com receio de, se alguém disser que…
…os homens apreciam acima de tudo o canto
que tiver mais novidade,
…se julgar talvez que o poeta quer referir-se não a cantos no vos, mas a uma maneira nova de cantar, e que a elogia. Tal coisa não deve louvar-se nem entender-se assim, porquanto deve ter se cuidado com a mudança para um novo género musical, que pode pôr tudo em risco. É que nunca se abalam os géneros musicais sem abalar as mais altas leis da cidade…
República 424b-c
Aristóteles descreve, da mesma forma, na Política:
Portanto, o legislador deve banir por inteiro a fala indecente s da cidade, tal como nenhuma outra coisa […] portanto, sobretudo bani-la dos jovens, para que não digam nem ouçam nada desse tipo. […] Portanto, haja cuidado entre os magistrados para que nenhuma estátua nem pintura seja a imitação de nenhuma das ações desse tipo, a não ser junto a alguns deuses com esses atributos, para os quais também a lei consente o deboche. E, além disso, a lei permite ainda aos que têm a idade apropriada ir cultuar os deuses e honras em seus próprios nomes, dos filhos e das mulheres os deuses. […] com relação aos mais jovens, a lei deve estabelecer que não assistam espetáculos de iambos e comédias antes que alcancem a idade apropriada em que já poderão sentar-se em lugares comuns e beber; a educação os fará completamente livres do dano nascido das influências ruins dessas imitações.
Política 1336b1-20
A República é famosa, ainda, por conter o argumento de que as oligarquias, ou sociedades dominadas pela ganância, são desordenadas e tendem a degenerar em democracias igualitaristas. Tratei, alhures, da posição platônica referente à degeneração da oligarquia em democracia e desta em tirania. Encontramos trechos relevantes no livro VIII:
Ora a verdade é que agora, por todos estes motivos, os governantes colocam os governados da cidade nesta situação. Eles mesmos e os seus – acaso os jovens não levam uma vida de dissipação, inativos quer física quer espiritualmente, e não são moles para resistir ao prazer e ao desgosto, e ainda por cima preguiçosos?
República 556c
Por último, julgo eu, apoderam-se da acrópole da alma do jovem, por terem pressentido que estava vazia de ciência, de hábitos nobres e de princípios verdadeiros, que são as melhores sentinelas e guardiões da razão nos homens amados pelos deuses. […] Então, parece-me, os princípios e doutrinas mentirosos e presunçosos correm para a vez dos outros e apoderam-se do lugar que lhes pertencia […] Não são eles que vencem o combate e, chamando imbecilidade à vergonha, a empurram ignominiosamente para o exílio? Não são eles que, ajudados por paixões múltiplas e inúteis, chamam covardia à temperança, que a maltratam e põem fora, e expulsam o comedimento e os gastos moderados, fazendo crer que são provincianismo e baixeza? […] Acaso não é mais ou menos assim que um jovem educado a satisfazer os desejos necessários passa à licença e à indulgência com os prazeres não-necessários e inúteis? […] Se alguém lhe disser que uns prazeres provêm de desejos nobres e bons, outros de perversos, e que se devem cultivar e honrar os primeiros, e castigar e escravizar os segundos, não receberá a fala da verdade, nem a deixará entrar no reduto. Mas em todos estes casos sacode a cabeça e afirma que todos os prazeres são semelhantes e devem honrar-se por igual.
República 560b-561b
– Quando, ao que me parece, a um Estado democrático […] Aqueles que são submissos aos magistrados, insultam-nos como homens servis que de nada valem; ao passo que louvam e honram em particular e em público os governantes que parecem governados, e os governados que parecem governantes. […] o pai habitua-se a ser tanto como o filho e a temer os filhos; e o filho a ser tanto como o pai, e a não ter respeito nem receio dos pais, a fim de ser livre; o meteco equipara-se ao cidadão, e o cidadão ao meteco, e do mesmo modo o estrangeiro. […] Ainda há estes pequenos inconvenientes: num Estado assim, o professor teme e lisonjeia os discípulos, e estes têm os mestres em pouca conta; outro tanto se passa com os preceptores. No conjunto, os jovens imitam os mais velhos, e competem com eles em palavras e ações; ao passo que os anciãos condescendem com os novos, enchem-se de vivacidade e espírito, a imitar os jovens, a fim de não parecerem aborrecidos e autoritários.
República 562d-563a
Pode-se resumir o argumento dizendo que o espírito igualitário de uma sociedade gananciosa transformada em democracia (que, no sentido platônico, refere-se mais a um ethos do que a uma “mecânica” do governo) exacerba as falhas características dos jovens, como a falta de maturidade e a incapacidade de lidar com desafios, agravadas pela propensão ao sofisma e ao ceticismo, tornando-os ainda mais alheios à autoridade dos costumes e inclinados à vulgaridade dos vícios. Além disso, tal igualitarismo democrático infantiliza os adultos[4] e os torna coniventes com esse comportamento, fazendo-os imitadores desse espírito de licenciosidade irracional que corrói a ordem social e prepara o terreno para a tirania (como descrito anteriormente). O que Platão e Aristóteles diriam das multidões de estudantes que protestam nos campus – ou, por falar nisso, das manifestações dos anos 60 e semelhantes? A resposta é demasiado óbvia e não é mistério algum o que diriam de estudantes e professores que lhes incentivam dito comportamento: são herdeiros, não dos grandes filósofos, mas dos sofistas.[5]
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Notas:
[1] Todos os trechos de Platão e Aristóteles foram substituídos por seus correspondentes em português; para A República, a versão da Calouste Gulbenkian; para os outros, versões da Edipro. [N.T.]
[2] Feser cita apenas trechos deste trecho; preferimos fornecer a referência completa. [N.T.]
[3] Crítica semelhante à da poesia; entretanto, a crítica da música toma como alvo não tanto a matéria mas sobretudo a forma musical, uma vez que harmonias e melodias deficientes causam certo efeito no ouvinte, como podemos observar, em termos modernos, no efeito hipnótico das batidas em “música de rave”. [N.T.]
[4] Fenômeno visível, em termos modernos, nos mais velhos que idolatram a juventude ao copiar suas vestes, investir numa série de cirurgias plásticas para esconder a própria idade e, de certa forma, concorrendo até por parceiros da mesma idade de seus próprios filhos. [N.T.]
[5] A campanha brasileira recente, que incentiva jovens de 16 anos a tirarem título de eleitor, pode ser facilmente inclusa aqui. [N.T.]
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