Boa parcela da filosofia platônica, quando referente a seu viés socrático, opera de forma dialógica; isso quer dizer que ela requer uma forma de diálogo, seja entre duas pessoas ou apenas uma que emula várias linhas de raciocínio enquanto metida. Entretanto, quando lemos algum dos diálogos platônicos, o que encontrados é o diálogo entre Sócrates, o professor escondido sob a máscara da ironia que o faz parecer um curioso – e por vezes um chato – e interlocutores variados que, antes na posição daqueles que explicam, passam pouco a pouco para a posição de estudantes – o que ocorre, por vezes, contra sua vontade. Essa forma dialógica da filosofia platônica foi transmitida, para toda a filosofia posterior, sob o nome de dialética; um exemplo muito curioso e que, de certa forma, representa a idéia de um diálogo enquanto motor da filosofia é a disputatio escolástica. Todavia, o que nos importa reter é que a filosofia opera, ainda que não necessite ser expressa assim, formas de diálogo que podem, por sua vez, fazer uso de perguntas e respostas, como podemos conferir, por exemplo, no De Magistro de Sto. Agostinho.
Para que este projeto, que pretende de certa forma prezar pela tradição filosófica, não seria de boa cepa abster-se de uma forma de diálogo. Sendo assim, transcrevo, aqui, as várias perguntas de filosofia que me foram feitas ao longo do tempo. Tendo em vista que redes sociais são um instrumento limitado e o espaço concedido é pífio, o leitor que tenha me perguntado algo notará que as respostas aqui fornecidas, ainda que não contenham a precisão e o esmero de um artigo ou ensaio, foram reelaboradas de forma um pouco mais rigorosa para que, assim, satisfaçam o curioso adequadamente. Boa parte das respostas fornecidas aqui “cresceram” e, assim, se tornaram ensaios; quando isso acontecer, a resposta dada aqui será apagada e, em seu lugar, será fornecido um link para o ensaio que tratará da questão de forma mais extensa.
Esta publicação será periodicamente atualizada com novas questões. Sintam-se livres para perguntar coisas nas redes sociais ou por aqui mesmo.
***
Questão §1 – Acredita que a ignorância socrática é saudável? Creio que ela poderia resolver muitos problemas.
Resposta: Immanuel Kant, no Manual dos Cursos de Lógica Geral, comenta que muitos problemas serial resolvidos caso tivéssemos a humildade de responder “eu não sei”, dizendo ainda algo semelhante em seu Sonhos de um Visionário quando reclama de eruditos que falam muito e dizem pouco, crítica vastamente utilizada por Schopenhauer para atacar, não sem razão, boa parte dos escritores de seu tempo. Entretanto, a chamada “ignorância socrática”, por vezes erroneamente confundida com uma forma de ceticismo, é antes uma máscara irônica destinada a desvelar a ignorância a alheia do que expor sua própria. O tão famoso “sei que nada sei” é a expressão máxima da técnica, tendo em vista que, como reclamado pelo mesmo Sócrates na Apologia, enquanto este meramente perguntava àqueles que diziam saber algo para que aprendesse o que precisava, os que se disponibilizavam a responder revelavam nada saber; portanto, poderiam responder a Sócrates: “não sabemos que não sabemos”. Portanto, devemos ter em mente que a ignorância irônica de Sócrates é antes uma técnica e, sendo preciso, uma forma de retenção utilizado pelo filósofo que sabe muito bem o que faz do que apenas uma admissão de não saber. Por outro lado, essa admissão de ignorância faz parte do maravilhamento descrito por Aristóteles como princípio da filosofia. Mas essa é outra questão.
Recomendação de Leitura:
Questão §2 – O niilismo é consequência do relativismo ou do ceticismo?
Resposta: Mário Ferreira dos Santos, no Filosofia Concreta, conclui que o relativismo é uma forma de ceticismo na medida em que postula a relatividade da moral enquanto uma por cabeça por conta da impossibilidade de provar que haja algum regramento objetivo. Se não temos como postular uma moralidade objetiva, logo o relativismo tornar-se uma alternativa. Entretanto, essa negação da possibilidade do postulado objetivo é uma tese cética; portanto, o relativismo pode ser visto como uma espécie de ceticismo ou pelo menos como um derivado dele. O niilismo é caracterizado, grosso modo, pela negação da objetividade dos valores morais; na verdade, o niilismo nasce já da concepção que trata a moralidade sob a idéia de valor enquanto substituta da idéia de bem. Entretanto, o que importa reter é que essa negação da objetividade da moral, digo, da negação de que possamos encontrar, no mundo, um regramento objetivo para nossas ações, é o coração do niilismo. Daqui depreendemos, como concluído por uma pletora de autores [citemos Husserl como exemplo], que o ceticismo e o relativismo são o casal que gera o niilismo.
Recomendação de Leitura:
- Mário Ferreira dos Santos – Filosofias da Afirmação e da Negação
- Franco Volpi – O Niilismo
- Giovanni Reale – O Saber dos Antigos.
Questão §3 – Eric Voegelin possuía alguma religião?
Resposta: Michael Federici respondeu, em seu A Restauração da Ordem [p.144]:
“[…] embora ele descrevesse a si mesmo em vários períodos de sua vida como um ‘cristão pré-niceano’, um ‘cristão pré-reforma’ e um ‘humanista cristão’, não pertencia a nenhuma igreja formal.”
Questão §4 – O que é filosofia?
Resposta: A questão é tratada extensamente nos seguintes textos publicados aqui:
- Conselhos ao Estudante de Filosofia
- O Grão de Mostarda
- Resenha de Convite à Filosofia
- Resenha de No Princípio era a Maravilha
Questão §5 – A essência consiste na ‘soma’ da substância com os acidentes? Se não, qual o nome correto senão ‘soma’?
Resposta: Entre os pecados originais que volta e meia assolam a filosofia, há a tentativa de matematização da matéria. Para horror de muitos, não é coerente tratar a essência como resultado da soma dos acidentes com a substância como se somássemos os quadrados dos catetos para obtermos a hipotenusa, pois a essência se dá tanto no acidente quanto na substância e, em verdade, se dá prioritariamente na segunda antes dos primeiros. Explico: A essência é uma espécie de estrutura; podemos até pensá-la, analogamente, como um algoritmo que jaz, primeiramente, na substância mesmo que não haja acidente algum. Entretanto, os acidentes também possuem essência, ainda que considerados isoladamente. Assim, por exemplo, a cor possui uma essência tanto quanto a coisa colorida. Por outro lado, a ‘soma’ da substância com todos os seus acidentes, digo, a coisa, possui também uma essência. Para que facilitemos as coisas, é possível pensar esse esquema como uma superposição de algoritmos.
Recomendação de Leitura:
Questão §6 – Quais os prós e os contras do estudo da retórica “sofística”? O que é preciso estudar de antemão?
Resposta: Em primeiro lugar é preciso que desmistifiquemos um pouco o “mito” da “retórica” sofística. Embora, atualmente, possamos associar a sofística à maestria retórica e, assim, termos os sofistas como o ápice que a arte alcançou, isso é um mal entendido. A retórica, como definido por Aristóteles, é “a faculdade de observar, em cada caso, o que este encerra de próprio para criar a persuasão” [Ret. 1355b25] e, assim, podemos entendê-la enquanto espécie de técnica. Entretanto, a diferença entre a retórica “normal” e a retórica “sofística” consiste em seu uso: enquanto a primeira é utilizada na filosofia para que se exponha a verdade em boa forma, a segunda é utilizada com o único objetivo de convencer o interlocutor. Portanto, a retórica sofística é certa técnica desprovida da ética e, assim, recebe o nome de erística. Todavia, a retórica por si só, como explicado mais uma vez por Aristóteles [Ret. 1359b] de nada serve àquele que não conhece a matéria a ser exposta; afinal, como expor bem aquilo que desconhecemos? Portanto, a retórica revela seu esplendor apenas quando utilizada por aquele que sabe e, acima de tudo, quando utilizada para dotar a verdade de belas vestes – e não, como na parábola, ajudar a mentira a sair correndo com o vestido.
Portanto, antes de se preocupar com a “retórica sofística”, a dita erística, é necessário que o estudante se preocupe antes com seu estudos “normais”. Ela pode ser estudada a fim de que se entenda, por exemplo, a técnica por trás do “lero lero” político, mas seu uso deve ser evitado em prol da retórica “normal” e digna do nome.
Recomendação de Leitura:
- Aristóteles – Retórica
- Arthur Schopenhauer – Como Vencer um Debate sem ter Razão
- Chaim Perelman – Tratado da Argumentação
- Douglas N. Walton – Lógica Informal.
Questão §7 – A coleção História da Filosofia escrita por Dário Antiseri & Giovanni Reale abrange termos técnicos tal qual “ente”?
Resposta: Ainda que livros de história da filosofia nem de longe sejam destinados ao escrutínio de terminologia técnica, a resposta é afirmativa, até por não ser possível explicar autores que tratem do ente sem que haja algumas explicações terminológicas. Por outro lado, caso queira explicações detalhadas, será necessário, como de praxe, consultar a fonte primária – a saber, o autor que trata do ente – e algum comentário especializado de vossa preferência.
Questão §8 – Caso conheçamos uma coisa da forma como nos é apresentada, então não podemos falar de verdades absolutas; portando, o homem é um ser interpretativo?
Resposta: Eis um pensamento comum, mas também dotado de um non sequitur. Caso nos seja apresentada uma bola, por exemplo, uma azul, ela estará presente de certa forma. Ora, o dado de que a bola é percebida enquanto bola e, em condições normais, dotada da cor azul, significa que as coisas reais manifestadas a nós se dão de certa forma perceptível e dotada de certas características patentes e mais de um e, por isso, podemos reconhecer que estamos vendo uma bola; logo, o dado mesmo da bola ser percebida enquanto tal e, por isso, podemos afirmar que percebemos uma bola cumpre uma das condições mais básicas da enunciação da verdade: dizer que é aquilo que é, i.e., a adequação do enunciado com a realidade expressa ou, em outros termos, adaequatio intellectus et rei. Portanto, não se segue que da forma do conhecimento humano siga a impossibilidade da enunciação de verdades. O mesmo raciocínio pode ser seguido infinitamente, mesmo que utilizemos uma linha de raciocínio kantiana, ele permanece da mesma forma pois o fenômeno é adequado às categorias do conhecimento que são universais para o gênero humano. Portanto, ainda que sejamos seres capazes de interpretação, não se segue que isso signifique uma espécie de relativismo ou, em sua versão gourmet, perspectivismo.
A propósito, alguém mais engraçadinho poderia dizer que o enunciado da pergunta proclama uma verdade para, logo após, negar a possibilidade de afirmação da verdade.
Recomendação de Leitura:
- Sto. Tomás de Aquino – Questões Disputadas sobre a Verdade
- Mário Ferreira dos Santos – Filosofia Concreta
- Octavio N. Derisi – Filosofia Moderna e Filosofia Tomista.
Questão §9 – O que o Sertillanges quis dizer, em A Vida Intelectual, com “se instruir verdadeiramente pela busca das causalidades” ou “a ciência é um conhecimento pelas causas”?
Resposta: Para que respondamos corretamente, citemos, em primeiro lugar, um dos trechos onde o Pe. Sertillanges fala do “conhecimento pelas causas”:
“Se a juventude soubesse!…”. São sobretudo os jovens que precisam dessa advertência. A ciência é um conhecimento pelas causas; mas na prática, quanto à sua concepção, ela é uma criação pelas causas. Temos que conhecer e adotar as causas do saber, e então realizá-las, e não adiar o cuidado com os fundamentos para o momento de assentar o telhado”
A concepção de que o conhecimento, e mais especificamente a ciência, refere-se às causas, é de raiz aristotélica e foi herdada pelos tomistas; sendo o Pe. Sertillanges um tomista, não é de admirar que ele inclua a fórmula em seus escritos. Aristóteles formula o tema do conhecimento pelas causas em, principalmente, dois livros, a saber, Analíticos posteriores e Metafísica. Verifiquemos o que ele diz:
Julgamos dispor de conhecimento simples e sem qualificação de tudo (em contraste com o conhecimento acidental dos sofistas) quando acreditamos que sabemos [1] que a causa da qual o fato originado é a causa do fato e [2] que o fato não pode ser de outra maneira.
E então…
Julgamos, porém, que o saber e o conhecer pertencem mais à arte do que à experiência, e consideramos ser mais sábios os homens de arte do que os de experiência, na medida em que há mais sabedoria segundo a capacidade de conhecer todas as coisas. E isso porque aqueles conhecem a causa e estes não. Na verdade, os homens de experiência sabem o que é, mas não o porquê é. Ora, aqueles conhecem o porquê e a causa.
E, assim, a concepção de conhecimento pelas causas passa para o tomismo através do Comentário à Metafísica de Aristóteles confeccionado por Sto. Tomás…
23. Depois, quando diz: ‘julgamos, porém, que O saber’, compara a experiência com a arte com relação ao conhecimento. E divide a questão em duas partes. Primeira, estabelece a proeminência da arte sobre a experiência. Segunda, prova, onde diz: ‘e isso porque aqueles conhecem a causa e estes não’, etc. Estabelece a proeminência da arte sobre a experiência em três aspectos. Quanto ao saber, estimamos, pois, mais que seja pela arte que pela experiência. Quanto, pois, ao que convém às disputas racionais, o homem de arte pode, em suas disputas, combater as opiniões contrárias à sua arte, o que não pode fazer o homem de experiência. Enfim, quanto ao fato de que os homens de arte alcançam mais o fim da sabedoria do que os homens de experiência, na medida em que lhes convenha mais vantagem de conhecer a sabedoria que investiga todas as coisas, isto é, enquanto investigam os universais, por isso, julga-se o homem de arte mais sábio do que o homem de experiência, porque considera os universais. Há uma outra interpretação: na medida em que o mais sábio está mais conforme ao conhecimento da sabedoria que investiga o conhecimento de todas as coisas, isto é, o conhecimento dos princípios universais. Ainda uma outra: na medida em que mais a sabedoria busca o saber de todas as coisas, o que significa: na medida em que a sabedoria busca o saber de cada coisa, mais segundo o saber do que o operar, ou seja, enquanto são ditos mais sábios quem conhece mais, não aqueles que são mais experientes. Por isso, tem um sentido mais pleno esta sentença, quando assim diz: na medida em que aquilo que se investiga é um saber mais excelso, todos buscam a sabedoria.
24. Consequentemente, quando diz: ‘e isso porque aqueles’, prova a referida proeminência da arte sobre a experiência de três maneiras. A primeira prova é assim: aqueles que conhecem a causa e o porquê de algo ser feito possuem mais conhecimentos e são mais sábios do que aqueles que ignoram a causa e só sabem o porquê do fazer. Ora, os homens de experiência conhecem o porquê do fazer, mas desconhecem a causa do porquê de algo ser feito. Os homens de arte, de fato, conhecem a causa e o porquê de algo ser feito, e não só o porquê de fazer. Portanto, são mais conhecedores e mais sábios os homens de arte do que os homens de experiência.
Sto. Tomás de Aquino – Comentário à Metafísica de Aristóteles, Livro I, Lição I, 23-24
Tendo em mãos as fontes, é possível concluir que o “conhecimento pelas causas” refere-se às razões/formas/modos segundo os quais algo foi feito. A ciência, em sentido antigo, referente à sabedoria sob suas várias modalidades, consiste no conhecimento das causas de determinado efeito; não é suficiente que se saiba como algo ocorre, mas por que ocorre: de nada vale descrever uma peça no tabuleiro caso não saibamos as razões dela ter sido posta ali. Portanto, no contexto apontado pelo Pe. Sertillanges, concluímos que o espírito verdadeiro instruído é aquele que adquire a sabedoria através do conhecimento das causas daquilo que estuda: não basta conhecer o resultado, mas a fórmula e os motivos que levaram à sua construção.
Recomendação de Leitura:
- Antonin Sertillanges – A Vida Intelectual
- Aristóteles – Órganon / Aristóteles – Metafísica
- Sto. Tomás de Aquino – Comentário à Metafísica de Aristóteles Vol.1
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- O Grão de Mostarda: Mais Conselhos ao Estudante de Filosofia
- Ensaios Curtos §2 – A Cópia e a Reescrita
Questão §10 – Qual o problema de O Mundo de Sofia? Li o livro e, graças a ele, cheguei até aqui; não é um livro 100% correto, mas, tendo em conta que o brasileiro mal lê, creio ser um bom começo.
Resposta: A pergunta serviu de inspiração para a confecção dos critérios de seleção de livros e também para a crítica à aceitação de livros de baixa qualidade apresentadas em O Grão de Mostarda: Mais Conselhos ao Estudante de Filosofia. Portanto, remeto o leitor ao texto citado para que esteja a par da discussão. Todavia, aqui, apontarei alguns dos problemas presentes no livro O Mundo de Sofia.
O Mundo de Sofia, da mesma forma que a maioria dos livros que intentam o posto de introdução à filosofia, peca pela imprecisão e, neste caso em especial, pelo elemento lúdico suprimir verdadeiro sentido da matéria visada. Portanto, tendo em vista que sua exposição falha da mesma forma que seu conteúdo, o livro peca tanto pela fidelidade quanto pela acessibilidade, assim, pela pelo vício formal de simplificação deformante e pelo vício material de inadequação do conteúdo, ambos expostos no ensaio O Grão de Mostarda. Expusemos, no mesmo ensaio, o problema de pensar que a noção de que “o brasileiro lê pouco” sirva de desculpa para que leia qualquer coisa; é necessário que entendamos que qualquer coisa não serve, em especial quando dispomos de uma ampla gama de livros de qualidade superior, entre eles o Convite à Filosofia – já resenhado por aqui. De qualquer forma, exponhamos alguns problemas encontrados em O Mundo de Sofia.
- Ociosidade. O livro procura utilizar a forma literária para expor o sentido da filosofia, mas falha; nisto, seria mais interessante usar teatro grego, Dostoiévski ou mesmo o próprio Platão [Apologia de Sócrates] como material de estudo. Ainda que desconsideremos o livro enquanto introdução à filosofia e o leiamos feito literatura de teor filosófico, novamente, a obra é inferior pela incapacidade de expor o objeto material da filosofia devido à deficiência da forma.
- Questões soltas e imprecisão. As deficiências formais do livro antes confundem do que clarificam, para o leitor, do que trata a filosofia. Isso se dá pelo excesso de sugestões, resultado da tentativa de simplificação de uma matéria cuja forma rejeita simplismos, que nublam o significado real da disciplina e, no fim das contas, vários leitores terão várias concepções diferentes após ler o mesmo livro. Isso não pode acontecer de jeito nenhum; equivale, por exemplo, ao caso de várias pessoas que chegam a resultados diferentes após executar a mesma operação matemática. É curioso atentar que o autor insere questões metafísicas – ser e não-ser, argumento cosmológico –, antes mesmo de apresentar alguma noção de filosofia.
- Simplificação deformante. No capítulo O Ser Formidável, o autor procura definir o filósofo através da característica de “nos admirarmos com as coisas”, proposta decerto inspirada em Aristóteles. Entretanto, diferentemente do que, por exemplo, Berti faz no Convite à Filosofia, o autor não consegue explicar o sentido preciso da admiração que origina a filosofia e, assim, passa a falsa impressão de que “todos são filósofos” por se admirarem, de alguma forma, com a existência.
- O problema do Mito. O autor, no capítulo O Mundo Visto pela Mitologia, procura explicar o sentido da especulação mitopoética enquanto “narrativa que pretende explicar pela visão dos deuses a vida como ela é”; eis algo que definitivamente não confere nem com o sentido de mito em geral e nem com seu uso filosófico. Todavia, o grande problema consiste numa identificação tácita, no decorrer das explicações, da especulação noética [filosófica] com o racionalismo, de forma que a especulação mitopoética se torna pré-científica, assim como postulam, por exemplo, os positivistas. Isso definitivamente não é apropriado para uma introdução à filosofia.
- No capítulo Os Filósofos da Natureza, lemos:
“Queriam compreender os acontecimentos na natureza sem para isso recorrer aos mitos ancestrais. Acima de tudo queriam compreender os processos naturais através da observação da própria natureza. Isso era algo completamente diferente de explicar raios e trovões, inverno e primavera, recorrendo ao mundo dos deuses. Dessa maneira a filosofia se libertou da religião. Podemos dizer que os filósofos da natureza deram os primeiros passos para o estabelecimento de um modo científico de pensar, fundamentando todas as ciências naturais que surgiram depois.”
Entretanto, tais concepções são todas estranhas à especulação pré-socrática; os filósofos são apresentados, aqui, como espécie de pré-mecanicistas, preconceito fortemente anacrônico e que decerto viciará a leitura do estudante que, assim, entenderá a “água” de Tales como se fosse a água que sai da torneira, o que terminantemente errado. Atentemos, ainda, que o autor remete o termo “natureza” em sentido moderno à “physis” em sentido antigo; eis algo deixaria um historiador da filosofia maluco.
- Um livro unilateral. No capítulo seguinte, acerca dos pré-socráticos, lemos: “Essa forte crença na razão humana chama-se Um racionalista é alguém que confia na razão humana como principal fonte de conhecimento do mundo.” Eis, enfim, um posicionamento existencial em sentido voegeliano e a confusão entre o sentido antigo de nous com o moderno de razão, um anacronismo flagrante e que denuncia, de uma vez por todas, que O Mundo de Sofia não é um livro adequando enquanto introdução à filosofia.
Recomendação de Leitura:
- Enrico Berti – Convite à Filosofia
- Enrico Berti – No Princípio era a Maravilha
- Giovanni Reale – História da Filosofia Antiga e Medieval /
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- Guia de Estudo Básico para Filosofia Antiga
Questão §11 – O que devo entender quando por “felicidade” na obra de Aristóteles? O que é Eudaimonia?
Resposta:
“No livro I, Aristóteles diz que a felicidade (eudaimonia) é o fim (telos) último, o mais excelente dos bens, completo e autossuficiente. Diz, porém, que identificar o bem mais excelente com a felicidade é algo redundante ou um lugar comum. É necessário, pois, investigar qual é o maior bem do homem, aquilo que lhe é mais próprio, que satisfaz a função específica (ergon) do ser humano, pois o “bem humano reside na função (ergon) humana”.
Bernardo Veiga — A Ética das Virtudes segundo Tomás de Aquino p.49–50
Questão §12 – A Virtude é uma ciência?
Resposta:
“Mas a virtude não é apenas um hábito, mas um hábito bom, que torna a coisa boa, no caso o homem, e também possibilita que ele desempenhe bem a sua função. Tal excelência se dá por certa mediania sobre um justo meio das suas atividades, entre dois vícios, um do excesso, outro da escassez.”
Bernardo Veiga — A Ética das Virtudes segundo Tomás de Aquino p.52
Questão §13 – O que significa dizer que os diálogos de Platão não são autárquicos?
Resposta:
“O paradigma proposto pela Escola de Tübingen-Milão, em contraste com o paradigma schleiermacheriano, caracteriza-se por trazer novamente à tona a necessidade de recorrer ao ensinamento oral de Platão para compreender adequadamente, seja do ponto de vista histórico, seja do ponto de vista doutrinal, o conjunto dos seus escritos. Segundo este paradigma, os escritos platônicos não são autárquicos, isto é, não podem ser compreendidos só a partir deles mesmos, nem na sua totalidade nem em parte; deles não se depreende uma unidade, uma vez que esta se encontra subjacente a eles, na medida em que foi confiada à oralidade dialética, de modo que a chave para o acesso à totalidade do pensamento de Platão deve ser buscada na tradição indireta, que nos transmite as doutrinas não escritas.”
Marcelo Perine — O Filebo de Platão e as Doutrinas não Escritas in Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 25, n. 49, p. 149–171, jan./jun. 2011 p.154
Questão §14 – De que maneira as paixões diminuem a inteligência?
Resposta: O correto seria antes “turvar” do que “diminuir”; de qualquer forma, eis uma propriedade dos vícios: eles nublam a mente e impedem a correta avaliação das situações.
Podemos fazer uma analogia entre o viciado em drogas e o vicioso erudito; enquanto o primeiro, numa crise de abstinência, procurará por outros fármacos para acalmar seu espírito, o segundo procurará por justificativas filosóficas [sic] para seus próprios males numa tentativa de aplacar a própria culpa. Eis o fenômeno psicológico da racionalização. Portanto, é perfeitamente legítimo desconfiar de pensadores que defendam teses flagrantemente abstrusas. De qualquer forma, tenhamos sempre em mente o seguinte trecho da Suma Teológica de Sto. Tomás de Aquino:
Ora, há na alma quatro potências que podem ser, como se disse, sujeitos das virtudes, a saber: a razão, na qual está a prudência; a vontade, na qual está a justiça; o irascível, no qual está a força; e o concupiscível, no qual está a temperança. Por conseguinte, enquanto a razão é destituída de sua ordem à verdade, há a ferida da ignorância; enquanto a vontade é destituída da ordem ao bem, há a ferida da malícia; enquanto o irascível é destituído de sua ordem ao que é árduo, há a ferida da fraqueza; enquanto a concupiscível é destituído da ordem ao prazer moderado pela razão, há a ferida da concupiscência.
Portanto, são quatro feridas infligidas a toda a natureza humana pelo pecado do primeiro pai. Ora, como a inclinação ao bem da virtude é diminuída em cada um pelo pecado atual, como fica claro pelo que foi dito, estas são quatro feridas consequenciais dos outros pecados, a saber, pelo pecado, a razão se encontra embotada, sobretudo em matéria de ação; a vontade endurecida em relação ao bem, e aumenta uma maior dificuldade de agir bem e a concupiscência inflama-se mais.
Questão §15 – Qual a diferença entre a metafísica criticada por Kant e a dos escolásticos?
Resposta: Para que respondamos corretamente, devemos ter em conta a mudança de significado do termo “metafísica” ao longo da história e, portanto, é normal que críticas ou exortações à filosofia primeira sofram de certa ambigüidade. Vejamos, então, o que Kant entende pelo nome “Metafísica”.
No prefácio da Fundamentação da Metafísica dos Costumes , Kant divide a filosofia em duas vertentes: empírica, a baseada na experiência, e pura, a baseada em princípio a priori. Na medida em que a filosofia pura é meramente forma, chamamo-la Lógica; por outro lado, a referente a objetos do entendimento chamamo-la Metafísica. Podemos confirmar esta concepção verificando o dito em Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza [tradução própria]:
“O puro conhecimento racional a partir de simples conceitos se chama filosofia pura ou metafísica; pelo contrário, aquele que funda seu conhecimento apenas na construção de conceitos por meio da apresentação do objeto em uma intuição a priori, se denomina matemática.”
“Toda metafísica autêntica é tomada da essência mesma da faculdade de pensar e, por tal razão, não é algo meramente inventado, pois a metafísica não procede da experiência, senão que contém as ações puras do pensar, e, por conseguinte, conceitos e princípios a priori, os quais são os primeiros a reunir o diverso das representações empíricas. ”
A mesma concepção aparece em Prolegômenos a Toda Metafísica Futura [p.24].
“Em primeiro lugar, no tocante às fontes do conhecimento metafísico, elas não podem, já segundo o seu conceito, ser empíricas. Os seus princípios (a que pertencem não só os seus axiomas, mas também os seus conceitos fundamentais) nunca devem, pois, ser tirados da experiência: ele deve ser um conhecimento, não físico, mas metafísico, isto é, que vai além da experiência. Portanto, não lhe serve de fundamento nem a experiência externa, que é a fonte da física propriamente dita, nem a experiência interna, que constitui o fundamento da psicologia empírica. É, por conseguinte, conhecimento a priori ou de entendimento puro e de razão pura.”
Portanto, fica claro que Kant entende por “metafísica” aquela confeccionada pelos racionalistas. Confirmamos a conclusão no Kant de Ottfried Höffe [p.35]:
A primeira das partes litigantes constitui a metafísica racionalista, representada na época moderna por nomes como Descartes, Espinosa, Malebranche e Leibniz, entre outros. Kant pensa, todavia, primeiro na metafísica escolar de Wolff, que nesta época prevalece nas cátedras universitárias. Wolff considera a experiência como fonte genuína de conhecimento, mas acredita, porém, na possibilidade de conhecer algo sobre a realidade com o mero pensar (razão pura). Kant toma os racionalistas por dogmáticos e despóticos porque impõem ao homem determinadas suposições básicas sem crítica prévia da razão, por exemplo, que a alma é de natureza simples e imortal, que o mundo tem um começo e Deus existe.
Tendo em conta que a metafísica visada por Kant é a racionalista, é possível restringir seus comentários a tal vertente, pois, como bem-sabido, esta forma de pensar a metafísica é absurda para os escolásticos. Os filósofos pertencentes ao período escolástico entendiam a metafísica enquanto disciplina do ser enquanto ser, digo, enquanto referente ao ser em seus mais altos graus de abstração; entretanto, o ser em seu grau mais abstrato é alcançado através de um longo processo que parte da experiência; por conseguinte, essa concepção sequer confere com a divisão kantiana entre filosofia pura e filosofia empírica, pois, no caso, teríamos uma metafísica empírica – o que é, para os racionalistas, aberrante. Uma metafísica puramente a priori, como a considerada por Kant, jamais se passou pela cabeça dos medievais ou dos antigos; para não demorarmos em pormenores, é possível verificar a informação em comentadores tal qual Régis Jolivet, que escreve em seu Tratado de Filosofia Tomo III [p.184]:
1. O “a posteriori’’ e o “a priori” em Metafísica. — Se o objeto da metafísica é o ser em geral (ens in communi), abstraído da experiência sensível pela atividade espontânea da inteligência, não poderá, o método desta ciência, ser, exclusivamente, dedutivo ou a priori, nem exclusivamente indutivo ou a posteriori.
a) A metafísica como ciência indutiva. O ponto-de-partida da metafísica está necessariamente na experiência, uma vez que o conhecimento do ser e de seus gêneros supremos s6 pode ser realizado pela abstração e, por conseguinte sob a condição primeira da intuição sensível. É o sentido do axioma: ommis cognitio a sensu ou, de maneira ainda mais precisa: nihil est in intellectu quin prius fuerit in sensu.
b) A metafísica como ciência dedutiva. A metafísica não é, entretanto, exclusivamente indutiva. É-o, de fato, apenas a título de condição primeira e material. De posse uma vez de seu objeto, que é o ser (o ser comum com os dez predicamentos), a inteligência só tem que recorrer aos sentidos, porque é no próprio ser, em que de certo modo se estabelece, que ela deduz e verifica as propriedades do ser, independente mente da experiência sensível.
Do exposto não devemos entender que o conhecimento das propriedades do ser seja puramente a priori e analítico. A reflexão que os explicita tem seu ponto-de-partida na experiência; mas a inteligibilidade destas propriedade em função do ser, assim como as demonstrações que utiliza a metafísica, não são, como tais, dependentes da experiência sensível, uma vez que lançam mão dos princípios de demonstração, que não são de ordem sensível, visam a termos que são suprassensíveis e se nos apresentam à análise, como dados já implicitamente, isto é, antes de qualquer análise, como dados já implicitamente, isto é, antes de qualquer análise, ao mesmo tempo no ser e no pensamento que reflete sobre a noção de ser.
Portanto, eis a diferença entre ambas as concepções de Metafísica e a razão da crítica kantiana ser restrita à vertente racionalista. Concluímos, ainda, que a única semelhança entre as vertentes consiste no nome.
Recomendação de Leitura:
- Ottfried Höffe – Kant
- Ernst Cassirer – Kant: Vida e Obra
- Mário Porta – O Pensamento de Immanuel Kant
- Immanuel Kant – Prolegômenos a Toda Metafísica Futura
- Immanuel Kant – Fundamentação da Metafísica dos Costumes
- Immanuel Kant – Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza
- Régis Jolivet – Tratado de Filosofia [4 Tomos]
- Santo Tomás de Aquino – Comentário à Metafísica de Aristóteles [3 volumes].
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- Disputas Metafísica: Sobre a Natureza da Filosofia Primeira
- Sobre os Universais
- A Divisão dos Termos Comuns
Questão §16 – Algum filósofo grego comentou o tema do Amor-Próprio?
Resposta: Platão comenta o tema do amor-próprio no As Leis; é importante ter em mente que o chamamos, modernamente, de amor-próprio, corresponde aos antigos Hybris [ou Hübris] e Amor Sui.
“Há um mal, maior que todos os outros, que a maioria dos seres humanos inculcaram em suas almas e cada um deles desculpa em si mesmo, não fazendo nenhum esforço para evitá-lo. Trata-se do mal que indicamos ao dizer que todo ser humano é por natureza um amante de si mesmo, e que é correto que assim seja. Mas a verdade é que a causa de todas as faltas em todas as circunstâncias está no excessivo amor que a pessoa dedica a si mesmo, pois aquele que ama é cego em sua visão ao objeto amado, se sorte que se revela um mau juiz das coisas justas, boas e belas ao julgar que deve sempre preferir o que lhe é próprio ao verdadeiro; não é nem a nós mesmos e nem aos nossos próprios bens que devemos nos devotar se pretendemos ser grandes, mas sim ao que é justo, independentemente da ação justa ser nossa ou dos outros. E é dessa mesma falta que todo ser humano tirou a ideia de que sua loucura é sabedoria, de modo que sem nada saber ou quase nada saber, cremos saber tudo, e visto que não confiamos aos outros o fazer aquilo que ignoramos, necessariamente erramos ao fazê-lo nós mesmos. Por conseguinte, todo ser humano deve fugir do excessivo amor de si mesmo e sempre seguir alguém melhor do que ele, sem pretextar jamais a vergonha que experimenta nessa ocasião.”
Questão §17 – Como “formar o imaginário”?
Resposta:
Começamos então a perceber o lugar da imaginação no quadro das ocupações humanas. Ela é o poder de construir modelos possíveis da experiência humana. No mundo da imaginação vale tudo que seja imaginável…
Em primeiro lugar, urge que entendamos mais ou menos o que se quer dizer com o termo “imaginário”. Quando tratamos do chamado “imaginário” nos referimos, grosso modo e principalmente, a uma série de topoi a que uma pessoa recorda e recorre quando precisa “simular” mentalmente coisas ou situações para resolver algum problema. Assim, por exemplo, quando precisamos exemplificar as reações de algumas pessoas e a tal ou qual situação, imaginamo-la agindo de tal ou qual modo e “simulamos” uma série de possibilidades segundo o conjunto de tipos presente em nossa memória. A imaginação consiste, por sua vez e lato sensu, na modulação de uma série de topoi para que sejam produzidas as imagens de certas coisas ou situações; tal qual comenta Frye [A Imaginação educada p.19], ela consiste num “modelo de uma maneira possível de interpretar a experiência.”
Em A Construção Social da Realidade [p.126], Peter Berger chama de universo simbólico o corpo de uma tradição teorética que integra, em si, diferentes áreas de significação. Podemos utilizar o conceito de universo simbólico enquanto análogo de imaginário na medida em que este também é, de certa forma, um corpo decerto formado por componente derivados de uma tradição [ainda que não necessariamente teórica], mas principalmente por englobar em si uma série de phantasma [imagens] retirados da experiência bruta; enquanto o universo simbólico de Berger refere-se ao corpo teórico que legitima constituições, o imaginário legitima a experiência, num papel semelhante ao da memória que informa a experiência do perito na epistemologia aristotélica. Neste sentido, o imaginário é, ainda, a fonte do sentido da experiência “bruta”: nele, os atos são informados com significado. A imaginação é nosso pequeno universo, o cosmion pessoal que engloba as possibilidades contidas no mudo.
O imaginário pode ser entendido, ainda, enquanto o campo do que pode ser imaginado por nós e, assim, o que estiver fora dele soa inconcebível. Isso concorda com a explicação de Frye [A imaginação Educada p.24]:
No nível da consciência ordinária o indivíduo é o centro de tudo, cercado de todos os lados por aquilo que ele não é. No nível do senso prático, ou da civilização, há uma circunferência humana, um pequeno mundo cultivado, dotado com uma forma humana, isolado da selva e inserido entre o céu e a terra. Mas na imaginação vale tudo o que possa ser imaginado, e o limite da imaginação é um mundo totalmente humano. Aqui resgatamos, em plena consciência, aquele perdido sentimento original de identificação com o que nos cerca, onde nada é externo à mente humana, onde tudo é idêntico à mente humana.
Portanto, para que se ‘forme’, ou melhor, se ‘alimente’ um imaginário, parece que é coerente responder que é preciso preenchê-lo com um corpo de possibilidades. Mas de onde isso vem? Da série de produtos humanos dotados de significado que encontramos pela vida: livros, filmes, músicas e o que mais houver. Tudo o que vivemos e consumimos adere à nossa imaginação na qualidade de situação possível, ainda que num sentido muito lato; posso imaginar, por exemplo, um grifo de cinco cabeças, mas isso não é possível do mesmo modo que faço com uma xícara de café. Sendo assim, o consumo de livros de baixa qualidade, filmes ruins e músicas que mal merecem essa alcunha torna o conteúdo de nosso imaginário débil, disforme, “preso” num mar de mediocridade. A solução imediata é o óbvio apontado por Aristóteles: se o “antídoto” de um vício é a virtude correspondente, o de um imaginário limitado é o consumo de conteúdo de boa qualidade.
Questão §18 – O que é Zetema?
Resposta: Zetema é um termo platônico recuperado por Voegelin. Ele serve para denotar, no escopo da ciência política, um experimento mental destinado ao estudo dos vários aspectos de uma cidade sem que haja a intenção de recriá-la efetivamente; não obstante, o modelo produzido pelo zetema pode servir de arquétipo. Nesse sentido, o zetema difere da utopia na medida em que esta consiste num arquétipo cuja realização é visada, por exemplo, por um movimento político; entretanto, a utopia é pensável apenas segundo certa ignorância intencional acerca de certos setores da realidade que são, precisamente, aqueles que impedem sua realização. Assim, portanto, as utopias tendem a encerrar fórmulas do tipo “se todas as pessoas fossem boas, então…”, “se todos pensassem de tal forma, então…”, “se tal classe dominasse o poder, então…”, “se o governo funcionasse de tal ou qual forma então…” e por aí vai. Encontramos a descrição do zetema presente na República de Platão em um trecho Da República de Cícero:
Platão dividiu seu território, com suas moradas e riquezas, entre os cidadãos, em partes iguais, e estabeleceu sua República, tão fácil de desejar quanto difícil de possuir, e que vinha a ser menos um plano suscetível de realização do que um modelo em que se pudessem estudar todos os expedientes da política. Por minha parte, tanto quanto possa consegui-lo, tentarei aplicar princípios idênticos não ao vão simulacro de uma sociedade imaginária, mas à mais ampla e poderosa República, de modo que se possa assinalar a causa dos males e bens públicos.
Encontramos mais uma no livro Eugene Webb, Eric Voegelin: Philosopher of History:
Inquiry. In Voegelin’s use (following Plato), an existential inquiry, the process of the conceptual self-illumination of the soul; a search for truth, both cognitive and existential.
Eugene Webb – Eric Voegelin: Philosopher of History p.289
Também encontramos definições úteis no livro de Michael P. Morrissey, Consciousness and Transcendence: The Theology of Eric Voegelin
“For philosophy is by no means a construing of a field of study; it is a zetema, an endless inquiry into the heights and depths of reality via an exegesis of consciousness. As it proceeds it develops particular interpretive models or symbols which by their mythic and analogical character attempt to circumscribe the nature of reality under analysis… The zetema as an ongoing quest for truth never achieves a final resting point; it comes to a halt only with the death of the philosopher, only then to be taken up by others…”
“Secondly, as the questing consciousness of the philosopher makes the truth of reality luminous, one can speak of a never-ending zetema within history. This larger zetema is constituted by the advances achieved by every philosophical and historical inquiry that builds upon past achievements. This zetema advancing through history, which is formed and deformed by the forces of order and disorder and which must be captured and recaptured by the philosopher’s meditative process, is the truth of reality becoming ever luminous through image, symbol, and word.”
Michael P. Morrissey, Consciousness and Transcendence: The Theology of Eric Voegelin p.89-90]
Por fim, urge que diferenciemos, mais uma vez, o Zetema da Utopia; observemos que o surgimento da Utopia é um fenômeno moderno:
Utopia é um simbolismo criado por Thomas More para expressar o Nenhures de uma sociedade que não é desfigurada pela superbia vitae, pelo orgulho de vida no sentido de 1 João 2,16. O autor da Utopia desenvolve seu sonho de uma sociedade supostamente perfeita, omitindo de sua estrutura um setor importante da realidade, mas ele sabe o que omitiu e está consciente de sua imagem truncada da realidade como um Nenhures. Em seu emprego contemporâneo por ativistas pensadores e não pensadores, o significado do símbolo foi transformado de uma maneira peculiar. Uma Utopia ainda significa o modelo de uma sociedade perfeita que não pode ser realizada porque um setor importante da realidade foi omitido de sua interpretação, mas seu autor e viciados suspenderam sua consciência de que é irrealizável por causa da omissão.
Questão §19 – “Qual o problema” do relativismo moral?
Resposta: Alguns poderiam retrucar dizendo que o relativismo mesmo é o problema; não obstante, podemos exemplificar seus problemas através de exemplos mais ou menos intuitivos. Em primeiro lugar, devemos atentar que o relativismo moral pode ser de dois tipos: a) uma posição acadêmica, e, assim, mera tese utilizada para argumentações, ou b) racionalização psicológica. Não importa qual vertente tenhamos em mãos, o dado é que o relativismo moral não é praticável por ser, em verdade, inumano. Observemos que o relativismo funciona baseando em argumentos céticos e, portanto, jaz dependente do ceticismo referente ao conhecimento certeiro de alguma verdade; caso nenhuma verdade possa ser conhecida, então sobra a opinião [doxa]. Por outro lado, o relativismo moral depende de um argumento falacioso: dado que muitas pessoas possuem crenças sobre o que é ou não correto, não podemos aferir o que realmente é correto por não termos meios de verificar a veracidade de afirmações morais. Isto equivale a dizer, por exemplo, que dado que muitas pessoas erram contas, então não temos como calcular o resultado correto. Entretanto, esse argumento possui um pressuposto venenoso, a saber, de que podemos aferir a veracidade de argumentos morais apenas por vias racionais num sentido todo especial, a saber, o da razão racionalista. Nisto, por exemplo, o hábito natural que nos permite perceber o certo e o errado, a chamada sindérese descrita por Sto. Tomás, jaz exclusa da discussão. Em suma, o relativismo é tal qual uma jaula cujo cativo jogou as chaves fora para fingir que não há saída. Por outro lado, como afirmado por Voegelin, a realidade pode ser negada, mas nunca abolida; portanto, podemos “ativar” a sindérese do leitor através de exemplos.
O relativismo moral é comumente atacado por sua incapacidade de condenar genocídios feito o holocausto ou o massacre dos armênios. O relativista retruca dizendo, num arroubo digno de Eichmann, que, conforme a “moralidade vigente” no Reich, o que fizeram foi moral. Entretanto, eis uma confissão de desistência na medida em que não se trata de ser legal ou moral para alguém, mas em geral, e, em verdade, como dito por Eric Weil, ou a moral trata de princípios universais ou não trata de coisa alguma. Não obstante, o relativismo moral não é apenas incapaz de lidar com a imoralidade de genocídios: ele não consegue lidar com o “erro” contido em situação alguma. Vejamos mais um exemplo: há um caso muito famoso no Japão, o da jovem Junko Furuta, que, sequestrada por estudantes ligados a grupos da Yakuza, foi violada por membros da gangue por certa de 44 dias; após seus captores se cansarem, colocaram-na num barril de metal e a concretaram. O relativista jaz incapaz de, racionalmente, condenar atos assim por ter eliminado da discussão a sindérese, o hábito natural que grita em seu coração que o que foi descrito é não apenas errado como grotesco. Nisto, segundo Berger, o relativista nega ainda sua humanidade:
Realmente a recusa em condenar em termos absolutos pareceria oferecer uma compreensão da justiça, mas, muito mais profundamente, de uma diminuição fatal da humanitas.
Há certos atos que bradam aos céus. Esses atos não são unicamente uma afronta ao nosso senso moral, eles parecem violar uma consciência fundamental da constituição de nossa humanidade. Desse modo, esses atos não são somente maus, mas monstruosamente maus. E é esta monstruosidade que parece compelir até as pessoais normal e profissionalmente afeitas a estas perspectivas a suspender as relativizações.
Em seu Filosofia Política, Eric Weil comenta que o relativista é, ainda, um risco à sociedade, pois seu amoralismo pode levar a convulsões sociais tal qual o fenômeno banditista. O relativismo moral, dada sua dependência do ceticismo, degenera caso seu “gênero” seja deposto, digo, caso alguma verdade seja provada: se alguma verdade pode ser provada, então o relativismo epistemológico decai, pois, sem a relativização da verdade, abre-se a porta para a possibilidade de afirmação de alguma verdade de teor moral – e o relativismo depende da negação desta possibilidade. O relativismo padece ainda do problema de enforcar-se em sua própria corda; ainda que afirme que, durante a história, houve várias crenças sobre o certo e errado, ele não apenas ignora a convergência de tais crenças como não consegue se desfazer dos conceitos de bom e mau; ainda que os relativize, eles ainda permanecem tal qual um milhar de pipocas estourando para fora da panela enquanto o cozinheiro tenta, de todas as formas, evitar uma bagunça. Nisto, não existe um “para além do bem e do mal”; há apenas um fingimento de que tais categorias foram abolidas. Como afirmado por Cícero, não podemos fugir do fato de que
“A razão reta, conforme à natureza, gravada em todos os corações, imutável, eterna, cuja voz ensina e prescreve o bem, afasta do mal que proíbe e, ora com seus mandados, ora com suas proibições, jamais se dirige inutilmente aos bons, nem fica impotente ante os maus.”
Nisto, o relativismo moral assemelha-se a um antolho que impede o usuário de ver o que não quer. Ele depende de pressupostos duvidosos e da negação sistemática de realidades contraditórias. O problema do relativismo consiste em ser não apenas em sua impraticabilidade, mas na distorção da humanidade de seu defensor na medida em que exige a negação deliberada de um hábito natural, a sindérese. O problema do relativismo consiste ainda em ser um malefício público por implodir os fundamentos de uma sociedade funcional. Por fim, o relativismo cria muitos problemas e não resolve nenhum. Serve apenas para que alguns sejam degenerados com menos peso na consciência.
Recomendação de Leitura:
- Alasdair MacIntyre – Depois da Virtude
- Eric Weil – Filosofia Moral
- Eric Weil – Filosofia Política
- Hannah Arendt – Eichmann em Jerusalém
- Marco Túlio Cícero – Da República
- Peter Berger – Rumor de Anjos
- Sto. Tomás de Aquino – A Sindérese e a Consciência
Questão §20 – Sto. Tomás foi um “mero repetidor” de Aristóteles?
Resposta: Há, contemporaneamente, dúvidas acerca de até que ponto podemos dizer que Sto. Tomás foi aristotélico. Isto se dá por conta da variedade de influências no corpus thomisticum: Platão, Plotino, S. Boécio, Sto. Agostinho, Pseudo-Dionísio, Proclo, Pedro Lombardo, Avicena, Averróis, Al-Ghazali, Sto. Alberto Magno e muitos outros. Ainda que Aristóteles seja amplamente citado e seu vocabulário sobejamente utilizado, a especulação levada a cabo por Sto. Tomás é qualitativamente diferente e trata de temas muito mais avançados; portanto, é possível afirmar com segurança que Sto. Tomás não foi “mero repetidor” de Aristóteles, algo notável não apenas por suas conclusões diferentes como por, e eis algo curioso, seus comentários ao corpus aristotélico avançarem a especulação estagirita. Portanto, aqueles que acusam Sto. Tomás de mera repetição podem, com justiça, serem acusados de Ignorância.
Recomendação de Leitura:
- Alasdair MacIntyre – Justiça de Quem? [Capítulo de Sto. Tomás]
- Anderson Alves – Ser e Dever-Ser: Tomás de Aquino e o Debate Filosófico Contemporâneo
- Giovanni Reale & Dario Antiseri – Filosofia: Antiguidade e Idade Média
- Norman Kretzmann & Eleonore Stump (Org.) – Tomás de Aquino
Questão §21 – Quando livros preciso ler, por ano, para me aprofundar em filosofia?
Resposta: Não se trata, a rigor, de quantidade. Entretanto, afirmar que a quantidade não é um fato determinante não significa endossar aberrações semelhantes à média de leitura brasileira, de meros cinco livros por ano. Não se deve medir a disciplina pela regra da inépcia. Caso tomemos, aleatoriamente, um artigo de filosofia, como o The Influence of Alfred North Whitehead on Eric Voegelin, de Alessandra Gerolin, notaremos que a autora utiliza pelo menos vinte obras para referenciar o que deseja explicar. O mesmo será verificado caso tomemos uma série de artigos e, caso queiramos utilizar livros como exemplo, a quantidade subirá ao gosto do freguês. Caso Alessandra fosse uma brasileira mediana, ela demoraria 4 anos para ler as vinte obras que cita; ora, isso é absurdo. Logo, devemos considerar que esses vinte livros foram lidos em menos tempo, digamos, muito generosamente, em um ano. Portanto, parece bom que sejam lidos ao menos vinte obras por ano caso estejamos falando de um iniciante. Assim o digo, pois, caso tomemos textos típicos de pessoas habituadas a estudar, teremos muito mais obras lidas. Não obstante, tendo em conta que cada pessoa possui seu ritmo e sua forma de estudar, não é saudável se ater obsessivamente ao “cumprimento da meta”; um livro a mais ou a menos mal faz diferença. O importante é reter o conteúdo. No entanto, não caiamos na lorota daqueles que, tentando sinalizar alguma virtude, afirmam ler apenas cinco livros por ano por praticarem a leitura “lenta”. A menos que a pessoa seja uma tartaruga, ela com certeza possui problemas graves para compreender um texto e, portanto, deve procurar ajuda.
Recomendação de Leitura:
- Emilio Mira Y Lopez – Como Estudar e Como Aprender
- Jules Payot – A Educação da Vontade
- Pierluigi Piazzi – Aprendendo Inteligência
Textos disponíveis no site e que tratem de temas semelhantes:
- Conselhos ao Estudante de Filosofia
- O Grão de Mostarda: Mais Conselhos ao Estudante de Filosofia
- Guia de Leitura para a Filosofia Pré-Socrática
- Guia de Leitura de Platão
- Guia de Leitura de Aristóteles
- Guia de Leitura de Filosofia Antiga
Questão §22 – O mal existe?
Resposta: Deve-se distinguir, grosseiramente, pelo menos dois modos de existência: o substancial e o acidental. As entidades existentes substancialmente persistem por si mesmas; as entidades existentes acidentalmente devem sua persistência à existencial substancial de outro. Assim, as cores existem acidentalmente, pois podem persistir apenas “unidas” a outra entidade, por exemplo, um copo. Dito isto, afirma-se que o mal existe apenas acidentalmente na medida em que depende de um bem; nisto, o mal fica posto como distorção de um bem que lhe serve de existência substancial. Outro modo de dizer o mesmo é afirmar que o mal é uma espécie de privação do bem, conforme explicado por Sto. Tomás de Aquino, em Suma Contra os Gentios, livro III, cap. VII:
Depreende-se claramente do exposto que nenhuma essência é em si mesmo má. Com efeito, o mal, como acima foi dito (c. prec.), nada mais é que a privação daquilo que uma coisa está destinada a ter e que deve ter, pois, assim, o nome mal é usado por todos. Ora, a privação não é essência alguma, mas, uma negação na substância (IV Metafísica 2, 1104a; Cmt 3, 565). Logo, o mal não é essência alguma nas coisas.
Além disso, cada coisa tem o ser segundo a essência. Ora, enquanto tem ser, tem algo de bom, pois, se o bem é o que todos apetecem, é necessário dizer que o ser é bom, porque todas as coisas desejam ser. Segundo essa afirmação, cada coisa é boa porque tem essência. Ora, o bem e o mal opõem-se entre si. Logo, coisa alguma é má segundo a sua essência. Logo, nenhuma essência é má.
Além disso, as coisas ou são agentes ou efeitos. Ora, o mal não pode ser agente, porque tudo que age, age enquanto é ato presente e perfeito. Também o mal não pode ser efeito, porque o termo de toda geração é a forma e o bem. Logo, nenhuma coisa é má segundo sua essência.
Recomendação de Leitura:
- Alvin Plantinga – Deus, a Liberdade e o Mal
- Antonin Sertillanges – O Problema do Mal
- Sto. Tomás de Aquino – Suma Contra os Gentios
Questão §23 – Qual a diferença entre Ética e Moral?
Resposta: A distinção entre Ética e Moral não é ponto pacífico entre os filósofos. Todavia, para que tenhamos uma resposta sucinta, explicarei a distinção confeccionada por Mário Ferreira dos Santos.
Em Sociologia Fundamental e Ética Fundamental [p.124–125 Ed.1959], Mário Ferreira dos Santos distingue ambas mais ou menos nestes termos: a ética refere-se aos logoi que servem de arquétipos invariantes ou princípios universais que servem de termo último judicativo para as ações morais; por outro lado, a moral refere-se aos costumes humanos em toda a sua variedade. Entretanto, ainda que a moral seja variante, ela ocorre enquanto análoga e subordinada à ética. Assim, por exemplo, várias culturas podem ter uma moral diversa ao mesmo tempo, em que, nelas todas, ocorre o princípio ético “não matarás”.
É importante sublinhar que esta tese não é uma forma de relativismo na medida em que a diversidade da moral depende de um “esqueleto” ético invariante que, em última análise, “regula” o certo e o errado. Assim, portanto, a diversidade dos costumes não se segue a contradição moral. Por outro lado, é possível chegar aos princípios éticos através da moral desde que os costumes sejam abstraídos até que seu logoi se desvele: “é mister partir do que se dá na experiência humana para captar os logoi que analogam os costumes. Tais logoi serão as razões éticas superiores…”
O procedimento de Kant em Fundamentação da Metafísica dos Costumes consiste, de certa forma, em passar da análise dos costumes para os princípios da ética.
Questão §24 – Para estudar filosofia é recomendado focar em uma área específica, feito ética, lógica ou algo assim?
Resposta: Sim e não. Assim o digo, pois, a filosofia não é uma disciplina que funciona isoladamente e, portanto, de nada vale uma especialização anterior à aquisição do conjunto de “conhecimentos gerais” que chamamos de Cultura Filosófica. O tema foi tratado extensivamente nos seguintes textos disponíveis por aqui:
Textos disponíveis no site e que tratem de temas semelhantes:
Questão §25 – Por conta de cobrarem para ensinar, os professores atuais seriam semelhantes aos sofistas?
Resposta: Devemos entender, em primeiro lugar e em linhas gerais, o que foi o fenômeno dos Sofistas.
Os sofistas foram, latu sensu, professores itinerantes; neste sentido, qualquer um que dê cursos ou ofereça seus serviços de cidade em cidade seria semelhante aos sofistas. No entanto, isso univocaria, por exemplo, o músico que faz shows de cidade em cidade e o sofista, o que é absurdo. Portanto, não faz sentido tomarmos aqueles que oferecem seus serviços de forma itinerante como semelhantes aos sofistas. Outra nota dos sofistas consistiu no cobrar para ensinar. Ora, isso os filósofos também fizeram: Aristóteles cobrava por suas aulas exotéricas [voltadas ao público] e, durante o medievo, foi comum que professores de lógica cobrassem algo de seus alunos. Por outro lado, diferenciamos o filósofo do sofista enquanto praticamente antitéticos; então o mero cobrar ainda não serve de diferencial decisivo para o sofista.
Uma característica capital dos sofistas consistiu não no cobrar por seus serviços, mas na afirmação da posse de certa sabedoria que poderia consistir, no caso dos sofistas de segunda geração, em artifícios erísticos que fariam com que o aprendiz se sobressaísse em discussões políticas. Não obstante, ainda assim, um professor de retórica moderno nada tem que ver com um sofista – a menos que ele prometa, tal qual Eutidemo, que a aquisição de uma “virtude” consiste na aquisição de todas as outras. Outra característica dos sofistas consistiu no conteúdo duvidoso de suas doutrinas, o que por vezes os identifica também com a antítese real do filósofo, o filodoxo. Podemos conferir o dito verificando o exemplo de Górgias descrito em Platão p.53ss ou no nascimento do relativismo pelas mãos de Protágoras.
Portanto, muito curiosamente, a confusão entre o professor que cobra por seus serviços e o sofista consiste num sofisma.
A sofística é uma sabedoria aparente, não real; o sofista é um mercador de sabedoria aparente, não real.
Aristóteles – Elencos Sofísticos 1165a21
Recomendação de Leitura:
- B. Kerferd — O movimento sofista
- Giovanni Reale – História da Filosofia Grega e Romana Vol. II: Sofistas, Sócrates e Socráticos Menores
Questão §26 – Como saber se o que estou estudando é verdade?
Resposta: A resposta pode degringolar numa circularidade cética; veja, caso alguém resposta que “critério x” deve ser observado, a pergunta pedirá pelo “critério do critério” e assim ad infinitum. Portanto, é preciso encontrar um “ponto sem retorno”. Por outro lado, caso o amigo seja partidário da “preferência pela demonstração”, digo, da opinião de que tudo deve ser demonstrado [inclusa a demonstração] então segue que qualquer ponto de apoio será arbitrário, pois a regressão ao infinito se torna inevitável. Entretanto, devemos ter em conta que este raciocínio é arbitrário. A experiência permite que saibamos muitas coisas sem necessidade de demonstração ainda que a aceite enquanto reforço do que foi anteriormente mostrado. Ademais, é sabido desde Aristóteles que a demonstração mesma exige um termo último para que possa funcionar. Portanto, de forma análoga, não há mal em procurarmos algum fundamento para que julguemos o que estudamos.
Todavia, não é menos ilusório que acreditemos que possamos, de pronto, erigir um critério universal pelo qual o leigo possa julgar suas leituras com precisão absoluta, como se fosse, por exemplo, um sommellier de vinhos que descarta os de baixa qualidade apenas pelo cheiro. Por outro lado, ainda que aquele que nunca experimentou vinhos não esteja apto a julgar a bebida de forma precisa, ele ainda pode, sem problema algum, atestar o que é vinho e o que é vinagre ou suco de uva. Isto se dá por sermos capazes de distinguir o que é e o que não é de forma intuitiva. Se a bebida cheira feito suco de uva, tem gosto de suco de uva e não me deixa bêbado, decerto não é cerveja. O mesmo é válido, de forma análoga, para os estudos: é preciso ter em conta se o que está escrito num livro ou dito em uma aula confere com a vida real. Comumente se aceita que os raciocínios filosóficos tendam a contradizer o senso comum; entretanto, devemos ter em alta conta que isto, para além de tender à falsidade, ignora que a filosofia precisa partir do senso comum na medida em que deve enraizar-se na realidade. Tenhamos, aqui, em sentido estritíssimo, a definição tomista para sensus communis. Portanto, o estudante não deve ter receio de julgar um ensino esquisito enquanto esquisito caso este não confira com o que ocorre. Em termos kantianos, um juízo analítico pode ser muito robusto quanto à sua estrutura interna, mas ainda assim não ter referente real algum; e, neste caso, não será mais do que uma fantasia.
Outros critérios, inclusive o referente ao mítico pensamento crítico, foram fornecidos em Conselhos ao Estudante de Filosofia e O Grão de Mostarda.
Questão §27 – Schopenhauer está certo ao afirmar que “quem lê muito pensa pouco”?
Resposta: Sim e não. Não pelo próprio Schopenhauer ter lido muito e pensado na mesma proporção; sim, pois o contexto de suas críticas, referente à “filosofia acadêmica” de seu tempo, era voltada àqueles que, ao invés de raciocinar por si mesmos, preferem reproduzir o dito por outros de forma acrítica. Neste sentido, a crítica schopenhauriana é atemporal e ocorre em outros autores. Vejamos o que diz Sertillanges:
Já advertimos o intelectual quanto ao abuso das leituras; o que dissemos sobre isso vale em grande parte aqui, visto que memorizar é conservar aquisições das quais não podemos separar nem o que é vantajoso, nem o que é nocivo.
Todo os mestres nos dizem que sobrecarregar a memória é prejudicial ao pensamento pessoal e à atenção. O espírito afoga-se na massa das suas posses; o que permanece sem uso o abarrota e paralisa; o peso morto oprime o ser vivo, o alimento em excesso envenena-o; muitos pretensos eruditos de espírito falso e inerte, muitas “bibliotecas vivas”, “dicionários ambulantes”, são a prova disso. Não vivemos da nossa memória; servimo-nos dela para viver.
A mesma crítica aparece no Fedro, quando Platão, pela boca de Sócrates, critica aqueles que relegaram seu conhecimento aos escritos, mas são incapazes de tratar questões filosóficas por si mesmos e, assim, não são philo-sophos, mas doxo-sophos – é importante atentar que uma das características capitais do filósofo, para Platão, é ser maior do que seus textos.
Por outro lado, a crítica schopenhauriana não deve ser tida enquanto justificativa da preguiça, digo, como forma de ler pouco [sic] sem culpa. A isto devemos reproduzir a resposta daquele mesmo que afirmou o “ler pouco”:
“[…] Paul Souday, que aparentemente tinha algum motivo para se vingar de mim, tomou este preceito, “leia pouco”, para tentar encontrar nele um espírito de ignorantismo. […] Não aconselho reduzir as leituras indiscriminadamente: tudo o que precede protestaria contra esta interpretação. Queremos formar um espírito amplo, praticar a ciência comparada, manter o horizonte aberto à nossa frente: não se faz isso sem muita leitura. […] o que proscrevo é a paixão de ler, a compulsão, a intoxicação pelo excesso de alimento espiritual, a preguiça disfarçada […] a “paixão” pela leitura, que muitos honram como uma preciosa qualidade intelectual, é na verdade uma tara […] Temos que ler inteligentemente, e não apaixonadamente. […] A leitura desordenada entorpece o espírito, não o alimenta; torna-o pouco a pouco incapaz de reflexão e concentração, e por conseguinte de produção…”
Portanto, entendamos o apelo de Sertillanges não feito apologia do ignorantismo, mas, tal qual o conselho de Schopenhauer em seu A Arte de Escrever, como exortação a um critério de qualidade para leituras a fim de que possamos ter tempo para ler no “livro da vida” real, i.e., ter mais contato com o que é descrito do que com as descrições.
Recomendação de Leitura:
- Antonin Sertillanges – A Vida Intelectual
- Arthur Schopenhauer – A Arte de Escrever
- Platão – Fedro
- Thomas A. Szlezák – Platão e a Escritura da Filosofia
Questão §28 – A escrita schopenhauriana é acessível, mesmo que o autor trate de assuntos complexos?
Resposta: É preciso que reflitamos, em primeiro lugar, sobre o que entendemos com “acessível”. Expliquei, em O Grão de Mostarda, como a acessibilidade do texto filosófico consiste em certa mediania: seu excesso deforma o sentido e sua falta torna o conteúdo ininteligível. Nisto, introduções à matéria devem reter um padrão de dificuldade para que o conteúdo não seja diluído. Essa característica az com que a filosofia seja apenas hierarquicamente acessível na medida em que certos assuntos não podem ser tratados da mesma forma que tratamos os mais simples. Caso esta regra seja quebrada, teremos todos os vícios descritos no ensaio citado.
Tendo isso em conta, este que vos fala crê que Schopenhauer tenha alcançado o cume da prosa filosófica. Ele é, nos limites de cada um de seus livros, plenamente inteligível. Por outro lado, devemos ter em conta que a obra schopenhauriana pode ser distinta em duas esferas: a esfera dos escólios e esparsos [os escritos do Parerga und Paralipomena] e a dos escritos filosóficos [todos os outros]. A primeira contém escritos feito os “A Arte” e são, em suma, obras populares e, nominalmente, * serem lidos por qualquer um. A segunda contém o grosso do pensamento filosófico schopenhauriano e exigem, no mínimo, a leitura de Kant e de seus antecessores. Portanto, deve-se responder que Schopenhauer é hierarquicamente acessível.
Exemplo de escrito filosófico schopenhauriano:
As formas do conhecimento intuitivo, empírico, que são ínsitas ao entendimento e à sensibilidade pura, sendo condições de possibilidade de toda experiência, podem ser fundamento de um juízo, que então é um juízo sintético a priori. Portanto, embora tais juízos tenham verdade material, esta é uma verdade transcendental, pois o juízo não se baseia meramente na experiência, mas nas condições de sua inteira possibilidade, que nos são inerentes. Pois ele é determinado justamente por aquilo que determina a própria experiência, ou pelas formas do espaço e do tempo, intuídas por nós a priori, ou pela lei da causalidade, de que somos a priori conscientes. Exemplos de tais juízos são proposições como: duas linhas retas não circunscrevem qualquer espaço. —Nada ocorre sem uma causa. — 3 x 7= 21. — A matéria não pode surgir nem perecer. Com efeito, podem ser mencionados como comprovação dessa espécie de verdade a matemática pura em sua totalidade, assim como meu quadro dos Praedicabilia a priori no segundo volume de O mundo como vontade e representação, como também a maior parte das proposições dos Fundamentos metafísicos da ciência da natureza de Kant.
Sobre a Quadrúplice Raiz do Princípio de Razão Suficiente p.247
*Nominalmente, pois esse tipo de prática não é recomendada por conta do pessimismo corrosivo e característico do autor.
Questão §29 – Schopenhauer afirma que o teste do tempo é excelente para que reconheçamos um bom autor. Sendo assim, como reconhecer os erros filosóficos que perpassam o tempo?
Resposta: A melhor forma de reconhecer os erros filosóficos que surgem e ressurgem é conhecer a matéria, tanto segundo suas fontes primárias quanto secundarias, do ponto de vista de uma linha do tempo. Os grandes erros filosóficos têm sua natureza revelada por, principalmente, três nuances: a) sua origem duvidosa, b) natureza contrária à concepção mesma de filosofia e c) serem alvo constante de refutações de forma que sua eliminação mesma seja condição para o funcionamento e progresso da filosofia. Quando erros desta cepa aparecem pela primeira vez, tendem a ocorrer dentro do seio da filosofia; entretanto, quando ressurgem enquanto fundamento de um pensamento, tendem a ser sustentáculo de uma filodoxia. Feito exortado por Michele Sciacca em seu Filosofia e Antifilosofia, por erros assim que reconhecemos os filodoxos. Para além deste e ainda em outros autores tal qual Giovanni Reale e Mário Ferreira dos Santos, que chama tais solavancos de negativismo, a filodoxia de todos os tempos comumente segue uma “cartilha” que contém as seguintes teses: negação da possibilidade do conhecimento, negação da objetividade da moral [relativismo], negação da verdade e negação do ser – e, nisto, entendemos o motivo do termo ferreiriano.
Ainda que o tempo seja um bom teste de qualidade, devemos sempre ter em mente que esterco também fossiliza.
Recomendação de Leitura:
- Michele Federico Sciacca – Filosofia e Antifilosofia
- Giovanni Reale – O Saber dos Antigos.
- Mário Ferreira dos Santos – Filosofias da Afirmação e da Negação
Questão §30 – E se o fato de eu pensar for uma ilusão e eu não existir? Tem resposta para isso?
Resposta: Neste caso vale uma resposta de teor cartesiano: apenas pessoas que existem podem perguntar essas coisas. Entretanto, vale apontar que perguntas afins foram tratadas nos ensaios Eric Voegelin e o Eclipsamento da Realidade e Olavo de Carvalho e a Paralaxe Cognitiva enquanto reflexos de certa desordem cognitiva naqueles que as formularam. Nisto, não me refiro a um ad hominem falacioso, mas, por outro lado, a uma contradição entre a pergunta e as condições de sua confecção: pessoas inexistentes nada perguntam – e, nesse sentido, há, ainda, uma contradição performativa. Ademais, é possível apontar que existir ilusoriamente é algo profundamente metonímico, feito quando alguém que se sente excluído diz: “eu não existo” quando, na verdade, ele existe, mas se sente triste. O mesmo ocorre quando alguém se sente “uma ilusão” na medida em que finge ter uma personalidade diferente. A rigor, a única forma de uma pessoa crer, em sentido forte, ser uma ilusão, não existir ou coisas assim, é sofrendo de transtorno de desrealização ou de algo semelhante.
Questão §31 – Como saber se estou entendendo, corretamente, o que li num livro de filosofia?
Resposta: Existem alguns critérios não escritos que devemos ter em conta ao estudar um autor. Ele deve, em primeiro lugar, ser compreendido em seus próprios termos e/ou à luz do instrumental que utiliza. Esta regra serve para que não transponhamos num autor idéias estranhas àquelas que nos apresenta – como no caso dum anacronismo ou na confusão advinda da inserção de conceitos homônimos retirados de outro autor. Conceitos de outros autores devem ser tiros em conta apenas quando estivermos estudando autores pertencentes a escolas – neoplatonismo, kantismo – ou que citem com frequência outros filósofos, como ocorre com Sto. Tomás de Aquino; entretanto, devemos ter em conta que a relação não pode ser invertida, de forma que o aquinate seja interpretado sob clave aristotélica, sem que seus ditames sejam todos distorcidos: o texto tomista precisa ser compreendido segundo seus próprios termos e não dos de outro. Em segundo lugar, é preciso ter o cuidado de não nos afastarmos do assunto do texto a menos que o autor nos peça ou realmente precisemos pensar em alguns exemplos “de fora”, quando, e.g., Arthur Schopenhauer, em seus escritos morais, sugere que pensemos numa série de situações de tal ou qual teor. É comum que o leigo em filosofia, apressado em utilizar o que aprendeu, procure transpor os ditames filosóficos para muito longe dos problemas contemplados pelo autor sob exame, algo facilmente observável em qualquer palestra de filosofia: sempre há aquela pessoa que faz uma pergunta totalmente alheia ao assunto proposto na apresentação. É preciso evitar, em terceiro lugar e a todo custo, associações que não estejam mais ou menos explícitas no texto filosófico. Este critério, mui próximo do anterior, é importante para que não percamos tempo procurando por “símbolos” ou ligando as afirmações de um filósofo à de outros de forma imprudente; tendo isto em conta, deixaremos de ver fantasmas onde eles não estão.
Explicitados estes três critérios, formulados de forma mais ou menos empírica, basta prestar atenção nos ditos dos filósofos e seguir sua linha de raciocínio sem “inventar moda” que será muito difícil cair numa interpretação abstrusa. Quando Aristóteles diz que a virtude deve ser praticada, afirma, de fato, que a virtude deve ser praticada; quando Platão diz que as idéias estão num outro plano do ser, afirma, de fato, que as idéias estão num outro plano do ser. É preciso ter sempre em conta, pelo menos num primeiro momento, a interpretação mais “crua” que houver. Mesmo no caso de autores que necessitam de mitos ou símbolos para expressar seus dizeres, como o próprio Platão ou Heráclito quando utiliza o fogo como símbolo da arché, é demasiado óbvio que se trata antes dum símbolo do que do fogo que utilizamos para fazer churrasco. Nisto, a resposta pode ser resumida da seguinte forma: “basta prestar atenção e ficará tudo bem”.
Textos disponíveis no site e que tratem de temas semelhantes:
- Perguntas e Respostas Questão §26 – Como saber se o que estou estudando é verdade?
- Conselhos ao Estudante de Filosofia
- O Grão de Mostarda
Questão §32 – A onisciência divina implica num determinismo?
Resposta: Dizemos que Deus é onisciente enquanto conhece, em ato, tudo o que ocorreu, ocorre, ocorrerá ou poderia ter ocorrido. Isto decorre da atualidade do “intelecto” divino e de sua “posição” na eternidade; ele possui, num mesmo ato, o conhecimento eterno na eternidade e, nisto, engloba todas as possibilidades contidas no tempo. Entretanto, caso tratemos da liberdade humana, da mera definição de onisciência divina, não podemos derivar um determinismo (um non-sequitur, portanto; a conclusão determinística não segue da premissa da onisciência divina), e isto por vários motivos. O primeiro, absurdo à primeira vista, consiste no tolher da própria liberdade divina. O segundo, algo intuitivo, é que saber o que alguém fez ou fará não determina sua ação; sabemos que alguém comerá um hambúrguer não lhe retira a capacidade de escolher a comida. O terceiro, este polêmico – e, de certa forma, ignorando os absurdos necessários à confecção desta posição –, consiste em que caso fossemos totalmente determinados por Deus, segue que seríamos autômatos isentos de culpa; no limite, um determinismo teológico irrestrito é o fim do cristianismo na medida em que não apenas retira o sentido do pecado original, mas torna Deus seu autor enquanto tomado por algo semelhante a um mestre de marionetes. Teríamos, no caso, antes um demiurgo gnóstico que brinca num cosmo fatalista do que um Deus amoroso.
É possível, na clave do terceiro exemplo, multiplicar as objeções. Caso admitamos um determinismo deste jaez, então segue que seríamos semelhantes autômatos ou NPC’s num jogo de videogame. Todavia, para além disto ser oposto ao sentido de um decálogo ou corpus moral – e, por conseguinte, à idéia de punição ou recompensa post mortem, i.e., uma soteriologia –, mesmo que admitamos uma série de causas secundárias que, de alguma forma, nos determinasse, não teríamos mais do que a multiplicação dos fios da marionete e, novamente, Deus seria o responsável por nossas ações.
Através destes exemplos podemos concluir não apenas que da onisciência divina não segue um determinismo, mas que a admissão de um causa absurdos. Mas as objeções não precisam restringir-se à teologia e, nisto, é possível erigir objeções filosóficas.
Ignorando a discussão do determinismo físico, é possível apelar à fenomenologia da consciência e, analisando seus atos internos, verificar os movimentos da vontade em meio à influência de aspectos “externos”. Quando sentimos sede surge a opção de beber ou não; mesmo que a pessoa esteja morrendo de sede, é possível, num ato ascético, optar pela morte em vez da bebida. Mesmo que as opções sejam absurdas, devemos sempre ter em conta que, por mais forte que seja uma coerção, ela não é uma determinação: podem apontar um revólver para nossa testa e, assim, tentar nos obrigar a algo, mas a ação está sempre nas mãos do agente. É por isto que soldados podem morrer, torturados, em vez de entregar seus companheiros.
Não advogamos, aqui, num arroubo existencialista, a identificação do homem com a liberdade ou com alguma forma de liberdade irrestrita. Em verdade, a liberdade pode ser exercida apenas no seio das restrições. Nisto, ainda que rejeitemos Sartre, podemos concordar quando ele diz que negar a consciência de nossa liberdade é uma forma de má-fé. Isto posto, digo, a verificação de atos livres enquanto dado empírico, fica muito complicado, a menos que assumamos formas de fideísmo, admitir algum determinismo.
Respondo dizendo que, sem dúvida alguma, é necessário admitir no homem o livre-arbítrio. Com efeito, a fé obriga a isso, uma vez que sem o livre-arbítrio não pode haver mérito ou demérito, a justa pena ou o prêmio. A isso também levam indícios manifestos, nos quais aparece que o homem escolhe uma coisa e recusa outra.
Questões Disputadas sobre a Verdade q.XXIV a.1 Resp.
Recomendação de Leitura:
- Immanuel Kant – Fundamentação da Metafísica dos Costumes
- Reginald Garrigou-Lagrange – Deus: Sua Existência e sua Natureza (Tomo II)
- São Bernardo de Claraval – Opúsculo sobre o Livre Arbítrio
- Sto. Tomás de Aquino – Suma Contra os Gentios
- Sto. Tomás de Aquino – Questões Disputadas sobre a Verdade
Questão §33 – É necessário ler bastante literatura antes de estudar filosofia?
Resposta: A concepção de anterioridade da literatura, sobejamente divulgada no contexto da pedagogia filosófica olaviana, visa uma formação do imaginário através da aquisição de “tipos”. Isto foi explicado na Questão §17. Tratarei, aqui, da necessidade e da quantidade de leituras.
Livros não são bons por si mesmos. Dada a existência de conteúdo bom e ruim, segue na literatura o mesmo da filosofia, i.e., “ler por ler” não passa de um jargão vazio. O consumo de material inadequado mediante ocultamento de suas distinções (espécie de generalização indevida) opera antes como veneno do que remédio, posta a possibilidade de textos ruins serem vistos como exemplares. Isto foi explicado em nosso O Grão de Mostarda.
Considerando o dito, devemos reter apenas literatura de boa qualidade. No entanto, seu parâmetro de seleção deve, no contexto da questão, bifurcar-se devido à função da literatura no processo de formação do estudante de filosofia diferir de seu objetivo estético (artístico). Distinguimos, portanto, um a) parâmetro instrumental, em que o valor de um livro advém prioritariamente da quantidade de tipos inclusos em sua narrativa, e b) um parâmetro artístico, valorado principalmente pela retidão da forma. Não descartando, por óbvio, uma dialética cuja estrutura una ambos os aspectos numa obra só, o primeiro caso considerará antes o uso do material numa especulação filosófica, desconsiderando, na medida do prudente, o quão bem escrito um livro possa ser; já o segundo caso pretere o conteúdo em prol da fineza da técnica utilizada na narrativa. Temos, portanto, uma dialética análoga à matéria e à forma: ambas, na coisa, estão sempre unidas, mas podemos considerar ora uma ou outra. Digo isto para evitar desculpas onde um sujeito defende seu mau-gosto alegando atenção antes à matéria do que à forma – quando, em verdade, deficiências formais nublam a narrativa assim como a verdade fica oculta numa exposição defeituosa: a história mais bela do mundo degenerar-se-á sob a pena do mau escritor.
Parâmetros de discernimento artístico podem ser encontrados na crítica literária consagrada, como no Lições de Literatura de Vladimir Nabokov. O de discernimento instrumental pode ser adquirido pelo mesmo meio, mas também em filósofos afeitos à literatura, feito Eric Voegelin. A divisão paramétrica não exclui, obviamente, obras cujo conjunto satisfaça ambos os critérios, feito os poemas de Homero – considerado, não por menos, pai da educação grega.
Considerando esta pequena introdução, devemos dividir a pergunta em duas:
- É necessário ler literatura?
- Em que quantia?
Quanto à primeira, posta nossa realidade, sim; caso houvesse uma cultura onde lêssemos bons livros desde cedo, a naturalidade da prática eliminaria a necessidade da mesma forma que um corredor não precisa aprender a andar. Entretanto, vista a horrenda média de leitura brasileira, é preciso ter como necessário ocupar-se da literatura em duplo aspecto: instrumental para a filosofia e artístico para a alma.
Quanto à segunda, a quantia depende do leitor e do tamanho dos livros. Quem não leu livro algum necessita, por óbvio, de mais leituras do que o habituado à literatura. É coerente, o primeiro adiar seus estudos filosóficos, pois quem nunca leu literatura dificilmente leu outra coisa (desconsiderando revistas, redes sociais, etc.) – e pela filosofia exigir certo esforço imaginativo e destreza com textos, o sujeito deste caso dificilmente está apto a lê-los e extrair-lhes o sentido correto. Quanto ao tamanho dos livros, devemos considerar a existência de obras compostas de tomos, como O Tempo e o Vento, presente em versões de três ou sete. Quanto à consideração das leituras, é possível ocupar-se, em primeiro lugar, de autores brasileiros, tal Machado de Assis, Érico Veríssimo e Graciliano Ramos, pouco importando quantos livros de cada: é possível ler apenas um, ou todos. Por outro lado, a cultura literária do estudante de filosofia não pode preterir os gregos, feito Homero, Hesíodo, Sófocles, etc. devido à sua importância para compreensão da mitopoética, a “mãe” da filosofia. Para não indeterminarmos totalmente a quantidade de livros, é possível afirmar que dificilmente teremos menos de trinta — no entanto, consideramos impressionante o fato de uma pessoa ler apenas esses.
Tais números talvez assustem o leigo, em especial o jovem, naturalmente ansioso. Todavia, que isto sirva de “porta estreita”, pois o estudante de filosofia normal raramente lê menos, por ano, do que o dobro ou o triplo da soma de páginas dos livros indicados.
Quem não se esforça para aprender não tem o direito de saber.
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