τὸ γὰρ αὐτὸ νοεῖν ἐστίν τε καὶ εἶναι
Parmênides – Da Natureza
Talvez o Parmênides seja, entre os diálogos platônicos, o primeiro a causar algum trauma cognitivo no estudante de filosofia. Assim o digo pois, no início dos estudos, é natural que leiamos textos mais amigáveis, comumente bem anotados, para que não precisemos de mais do que um dicionário e algum esforço para que seu conteúdo seja bem entendido e, mesmo que leiamos os diálogos platônicos sem apoio, eles não representam um desafio grave desde que tenhamos feito a lição de casa. Entretanto, o Parmênides representa algo próximo de uma cisão nos estudos na medida em que, mesmo que consultemos comentadores, manifesta um aspecto áspero e por vezes alucinante nos trechos em que as teses são continuamente confrontadas com sua contraparte. Assim, embora o modo como apresenta suas teses seja algo natural em livros de filosofia, ele é aquele que causará o primeiro “susto” no estudante e lhe ensinará, na prática, os rudimentos da dialética.
Todavia, o diálogo é duplamente instrutivo. Em primeiro lugar por ser preciso que o estudante exercite seu cérebro, operando algo parecido com o conselho de Mário Ferreira dos Santos: a filosofia não deve se abaixar para vir até nós; é nosso dever elevar-nos à filosofia. Em segundo lugar por descrever uma situação comum: a do jovem, ávido por conhecimento, ainda desenvolvendo suas próprias teses e que percebe, ao apresenta-las e discuti-las com um interlocutor mais velho e instruído, que não as lapidou o suficiente. Dividiremos o diálogo em duas partes: a primeira, que trata da gênese da teoria das idéias, e a segunda, que trata da demonstração do método parmenídico para a aferição do uno.
- O Jovem Sócrates e a gênese da teoria das idéias
O diálogo, que é narrado por Céfalo enquanto conversa com seus amigos, descreve o encontro de alguns jovens, incluso Sócrates, com Zenão, que passava algum tempo na cidade. Contrariamente ao ocorrido em outros diálogos, em que Sócrates figura como o velho sábio que oculta o que sabe detrás de um véu de ironia de tons ácidos, aqui ele é posto como um jovem que dá seus primeiros passos em direção à filosofia e, sendo assim, não pode operar a tão célebre maiêutica. Sendo assim, a liderança do diálogo caberá aos interlocutores mais velhos, a saber, Zenão, e seu mestre, o já idoso Parmênides, que chega ao local da discussão apenas ao término do discurso de seu discípulo.
Assim que Zenão encerra sua exposição acerca da impossibilidade da união entre a unidade e a multiplicidade, Sócrates, confuso sobre o tema da semelhança e da dessemelhança, questiona o filósofo sobre o motivo de tais restrições, tendo em vista que os entes aqui postos, as coisas, são múltiplas e distintas entre si mas, ainda assim, conservam alguma unidade. Sendo assim, dado o múltiplo na experiência, de onde vem sua impossibilidade em favor de uma unidade também manifesta na experiência? Sócrates sugere, assim, um misto entre a unidade e a multiplicidade, ou melhor, entre o semelhante e o dessemelhante. Tais questões surgem da tese advogada por Zenão de que a multiplicidade consiste em não-ser e, assim posto, jaz impossível que a multiplicidade consista em ser; mas se assim o for então admite-se apenas a unidade enquanto sendo [ato de ser]. A forma de argumentar de Zenão intriga Sócrates, que aponta que seu interlocutor discursa de forma curiosa, a saber, expondo suas teses de forma que o que nega confirme o afirmado por seu mestre: enquanto Zenão, nega a multiplicidade, Parmênides afirma a unidade.[1] Zenão, concordando com Sócrates, confirma que sua intenção é esta mesma, digo, servir de respaldo aos argumentos parmenídicos, mas com uma diferença: enquanto o mestre afirma as teses, o discípulo nega os argumentos contrários. Estamos defronte uma demonstração via absurdo na medida em que Zenão reduz a contradições capitais todas as teses que neguem o uno e afirmem o múltiplo.[2]
Sócrates, ainda intrigado com as afirmações parmenídicas e negações zenonianas, propõe o que dará origem à mais famosa das teses platônicas: a existência de algo como uma forma [eide], um elemento unificador da semelhança, presente na multiplicidade dos semelhantes e que seria participada por eles. Assim, os semelhantes conteriam, em si, os elementos ideais [a semelhança] presentes na idéia [idea] e, nesse sentido, comungariam de sua ratio,[3] tal qual as coisas circulares [múltiplas] podem ser reconhecidas mediante sua forma circular [una]. É importante, para que se entenda a discussão do Parmênides, que se atente que a discussão é eminentemente abstrata: a ratio do uno dos eleatas consiste, grosso modo e com o perdão do anacronismo, numa forma pura da unidade enquanto considerada em si mesma, de forma que, ainda que não possua contradição em si mesma e nem possa ser negada in limine, não possui equivalente concreto e, assim, não estamos falando de uma coisa determinada mas de uma forma simbólica que expressa, de forma rudimentar, um aspecto do que mais tarde será a noção de ser.[4] Entretanto, o uno parmenídico ainda não havia “descolado” o suficiente da physis para tornar-se, enfim, meta-physico. Por outro lado, o múltiplo, tão atacado, refere-se à forma pura da multiplicidade considerada enquanto oposta ao uno; ora, mas se o uno é reconhecido como ser e, na verdade, o único que é em sentido forte, todo o mais que difira dele será considerado como não-ser e, assim, alguma forma de ilusão.[5] Se não podemos afirmar o não-ser, se as coisas aqui postas não se identificam rigorosamente com o ser, o uno, então elas não-são. Mas, sendo assim, como podem estar aí? A única forma de manter a coerência é afirmar sua ilusão, quiçá como forma de deixar a questão num ponto em que seja pensável para que, futuramente, se resolva a aporia com mais propriedade. Eis, novamente, grossíssimo modo, o modo correto de “sobreviver” ao início do Parmênides, diálogo que em que, de certa forma, Platão faz com que o leitor passe pelo mesmo apuro do jovem Sócrates: como lidar com um construto racional que, ainda que contenha centelhas da verdade, está em franca contradição com que vivemos? E, pior, como lidar com essa aporia sendo que não possuímos o aparato filosófico para tratá-la, mesmo na companhia de um filósofo de verdade, tendo em vista que ele mesmo está “enroscado”, de alguma forma, em sua própria tese? Nesse sentido, o Parmênides é ainda um exercício de humildade e paciência.
O jovem Sócrates, ainda especulando acerca das idéias, as entendia, para além de um princípio unificador, também como princípio delimitador e fator de distinção na medida em que uma mesma forma que afirma a estrutura dos semelhantes nega que o dessemelhante possua os mesmos caracteres do primeiro; assim, por exemplo, a forma do quadrado nega os caracteres contidos na forma do círculo, os diferenciando, portanto. Todavia, a multiplicidade das coisas nos leva à multiplicidade das idéias na medida em que, assim como para que desenhemos o corpo humano utilizamos uma variedade de formas geométricas, as coisas mesmas participam de uma pletora de formas ao mesmo tempo: uma coisa redonda de um lado e quadrada de outra participaria de duas idéias e, nesse sentido, assemelhar-se-ia, neste aspecto, a qualquer outra coisa que participasse da idéia redonda ou da idéia quadrada mas, por outro lado, diferenciar-se-ia, por exemplo, de uma coisa participante da idéia triangular. Ainda tomando as coisas mesmas como fio condutor, podemos predicar, como Sócrates, a gradação das idéias desde que possa haver várias coisas redondas mas algumas mais ou menos perfeitas do que outras como, por exemplo, uma série de bolinhos nos quais alguns saem redondos e outros disformes.
Exemplo de multiplicidade de formas geométricas utilizadas para esboçar a figura humana. Retirada de https://www.joshuanava.biz/human-body/structuring-the-whole-from-simple-forms.html
Assim compreendida, a tese socrática une, portanto, a multiplicidade a unidade num misto em que as idéias garantem a unidade e as coisas a multiplicidade ao mesmo tempo em que a multiplicidade das coisas participa da unidade da idéia e as idéias mesmas são, por si mesmas, múltiplas.[6] Sócrates aduz, então, alguns exemplos, entre eles a) o quase-cômico de que, ele mesmo, é apenas um, ainda que as [múltiplas] partes de seu corpo difiram entre si: logo, Sócrates é tanto uno quanto múltiplo ou, em outros termos, é uma unidade que contém a multiplicidade[7]; b) o de que, embora haja sete pessoas no recinto, todas são homens e, assim, participam da idéia de homem; logo, a idéia de homem é una ainda que os homens difiram entre si: logo, há a participação da multiplicidade na unidade e o real manifesta-se enquanto mescla entre a semelhança e a dessemelhança. Entretanto, o um e o múltiplo, em si mesmos, não se confundem.[8]
Parmênides, que observara atentamente o discurso de Sócrates e admirou-se com o talento do jovem, decide fazer algumas perguntas, sendo que a primeira delas é sobre se foi ele mesmo [Sócrates] que confeccionou aqueles argumentos e principalmente a distinção entre a idéia e as coisas que dela participam e, nesse caso, se a semelhança em si mesma é uma e a semelhança enquanto concretizada nas coisas é outra; em outros termos, o filósofo quer saber se a idéia é uma coisa distinta de sua imagem concreta e, se for assim, também quer saber se aconteceria o mesmo com categorias como o belo, o bom, o justo e todo o mais. [9]
Sócrates, por sua vez, ainda que aceite uma idéia do bem, do justo e de outras categorias consideradas nobres, receia em aceitar que existam, igualmente, idéias para a sujeira ou para a lama, consideradas repugnantes, algo que, para o Platão maduro, não seria problemático de se admitir, tendo em vista que a eidos [idéia] será tratada como elemento estruturante do real e, assim, devendo abarcar e regrar todas as suas possibilidades enquanto condição de sua existência. Aqui é importante que atentemos que a teoria das idéias não nasceu pronta, sendo fruto de uma longa especulação e de certa lapidação perante críticos capacitados, entre eles o grande filósofo eleata que, percebendo as falhas contidas da tese, pressionou-a até seus limites após fazer a seguinte observação:
“Isso é porque és ainda jovem”, disse Parmênides, “e a filosofia ainda não se apoderou de ti, Sócrates, como penso que fará no futuro. E então nessa ocasião não as desprezará; agora, porém, ainda levas em conta as opiniões das pessoas, devido à tua juventude.”
Parmênides 130e
Então Parmênides inicia, de um modo parecido àquele operado por Sócrates em sua velhice, uma série de perguntas,[10] entre as quais as principais são as seguintes: pressupondo que uma entidade participante de uma forma [idéia], e o faz totalmente ou apenas segundo uma parte? Ademais, caso uma entidade participe de uma forma e, assim, assemelhe-se a ela, isto não implicaria numa multiplicidade de coisas dotadas de certa semelhança entre si e, assim, na diluição da forma que, por conseguinte, ter-se-á tornado múltipla? Caso assim o seja, o postulado da forma enquanto princípio unificador perde sua razão de ser.
Sócrates então replica que tal objeção carece de sentido na medida em que, por exemplo e analogamente, o dia é apenas um [unidade], mas jaz ao mesmo tempo em muitos [multiplicidade] sem diluir-se entre os locais em que repousa a luz do sol. Todavia, Parmênides retruca: ao segurarmos uma vela acima de muitas pessoas, é evidente que todas podem observar a luz ainda que sua fonte não esteja, especificamente, acima de ninguém; todavia, alguma de suas partes com certeza jaz acima de alguém. Mas, se assim o for, da mesma forma a idéia, pois apenas partes de si contemplarão aqueles que jazem abaixo de si enquanto participantes iluminados por ela.[11]
Tais argumentos, como salta aos olhos, consideram a idéia [eidos, forma] enquanto entidade physica e, de certa forma, divisível. Enquanto pré-socrático, Parmênides ainda não operou a segunda navegação[12] para além do plano da physis e, por conseguinte, ainda não contempla a infinitude potencial subjacente à unidade da idéia eterna enquanto entidade meta-physica que nada perde mesmo que uma miríade de coisas participem de sua ratio. Tendo isso em mente é possível entender o motivo de Parmênides, ao contrário do Platão maduro, não conseguir entender como algo que opera enquanto princípio de unificação [uno] possa ser participado [outro conceito que falta à filosofia do eleata] por uma infinitude [múltiplo] de entidades sem diluir-se nelas; entretanto, o jovem Sócrates difere muito das concepções finais de seu mais célebre discípulo e, assim, permanece incapaz de responder às perguntas de seu interlocutor, como aquela que questiona como uma entidade que participe da idéia da igualdade e, contendo apenas uma de suas partes [atentar ao tratamento das eidos enquanto físicas e finitas] poderia assemelhar-se a qualquer coisa, dado que sua “porção de igualdade” é pequena [ou seja, menor do que sua fonte] ou, em outro caso, considerando a idéia da pequenez, se algo que lhe participe [logo, ser pequeno] poderia ser maior do que suas próprias partes.[13]
Parmênides sugere, por fim, que, na hipótese de uma idéia da grandeza que contemple todas as coisas que são grandes, tal idéia seria una; entretanto, caso consideremos a grandeza em si mesma, digo, a definição mesma da idéia [eidos] em questão, dado um infinito matemático [potencial, mas não metafísico], haverá sempre a possibilidade de uma grandeza superior e, assim, a forma da grandeza estaria submissa a uma aporia de regressus ad infinitum.[14]
Então Sócrates, num misto de lucidez e desespero, sugere que suas idéias [eidos] exerçam seu ser [sejam algo] apenas no pensamento, tal qual conceitos[15] – solução que será, curiosamente, desenvolvida por Aristóteles na crítica à teoria platônica das idéias e também enquanto resolução da questão da realidade dos universais. Entretanto, como apontado por Parmênides, caso a realidade das idéias dependesse do pensamento, as coisas pensadas enquanto formas [eidos] participariam do pensamento mesmo e, assim, teríamos algo como conjuntos que contém a si mesmos, e isso é absurdo; “ou tudo é constituído de pensamentos, e todas as coisas pensam, ou que, ainda que sejam pensamentos, não são pensamentos”.[16] Sócrates, por sua vez, retorna à concepção que considera a idéia enquanto subsistente por si mesma enquanto paradigma, modelo participado pelas coisas concretas que imitam sua ratio; entretanto, como antedito, tal concepção, em seu estado atual, jaz vulnerável aos ataques parmenídicos.[17]
Como espécie de “golpe final,” Parmênides oferece ainda um argumento contra a cognoscibilidade das idéias: admitindo, ex hypothesi, que as idéias sejam substâncias reais, em si e por si mesmas e, assim, distintas das coisas que delas participam, então distinguem-se ainda no seu plano de atuação; mas se jazem em outro plano, relacionar-se-iam entre si e não conosco, de forma que as relações ideais [entre as eidos] diferir-se-iam das relações entre as coisas: assim, as relações entre o escravo e o senhor, ambos pessoas concretas, não são as mesmas do senhor-em-si ou do escravo-em si. Mas, se assim o for, o conhecimento possuído por nós refere-se antes às coisas aqui postas, concretas, do que às suas idéias que, por não serem concretas e nem manterem relações conosco, não podem ser conhecidas, como poderiam ser, no caso, por um conhecimento-em-si que decerto não possuímos. Assim Parmênides “fecha o certo” das idéias não apenas enquanto aporéticas, mas enquanto incognoscíveis,[18] pois caso houvesse um conhecimento-em-si, exato, pleno, este pertenceria apenas a Deus e, se assim o for, então Deus fica apartado do mundo humano pois não o conhece na medida em que seu conhecimento fica restrito ao plano das idéias.[19]
Após o encerramento de sua bateria de objeções e asseverando que Sócrates não é capaz de resolver as aporias de sua própria tese, Parmênides conclui que o jovem ainda não está filosoficamente maduro pois não recebeu o treinamento adequado e, assim, procura especular sobre assuntos complexos, como a definição do belo e do bom, sem ser capaz sequer de resolver os problemas de suas próprias afirmações. Aqui temos, novamente, um ensinamento atemporal; quantos de nós não quisemos resolver as maiores aporias sem antes sequer decorar uma terminologia básica? Fazer deduções metafísicas sem sequer atentar ao fundamento real, experiencial, do termo “ente” e, assim, deixar fórmulas tão comuns, como secundum ratio et secundum rem destituídas de sentido? Quantas vezes não tentamos retirar teses da cartola sem atentar à gravidade do problema? Foi algo assim que houve com o jovem Sócrates ao tentar resolver o problema da relação entre a unidade e a multiplicidade sem atentar corretamente às possíveis objeções referentes à solução proposta, como apontado pelo próprio Parmênides, ao comentar que não se deve especular apenas sobre as coisas que são [afirmação da tese] mas sobre aquelas que não-são [objeções à tese], de forma que se possa aferir as consequências da eliminação de um elemento tido como certo e, assim, quiçá, concluir sua necessidade.[20]
- O Velho Parmênides e o método que leva ao uno
Curioso acerca da sugestão do velho filósofo e interessado em proceder, ainda que não saiba como, em sua investigação, Sócrates roga para que Parmênides lhe demonstre o funcionamento de seu método através da análise de algum tema, pedido aceito ainda que com alguma hesitação. Então o filósofo pede que um dos jovens ali presentes responda suas perguntas enquanto Sócrates, agora retirado da discussão, observe como o método funciona.[21] O argumento parmenídico ocupará o resto do diálogo platônico e consistirá, grosso modo, na derivada de uma série de consequências predicadas da avaliação da hipótese do uno, aferidas por vezes da negação e por vezes da afirmação de algumas de suas propriedades. Portanto, perfilarei, aqui, apenas as linhas gerais do início do discurso enquanto referente às características capitais do uno.
Parmênides, por meio de perguntas e respostas, mais uma vez prefigurando o método socrático, coloca a hipótese do uno [unidade]; caso exista, não poderá conter as mesmas propriedades de seu oposto, o múltiplo [multiplicidade], pois são auto-excludentes[22]: o uno não pode ser múltiplo e vice-versa, um raciocínio semelhante ao que tomamos para aferir a absurdidade de um quadrado-redondo. Eliminada a multiplicidade e verificada a unidade [considerada em termos absolutos] segue-se que o uno não pode possuir parte alguma pois isso implicaria certa composição e, por conseguinte, em partes; ora, o que contém partes contém alguma multiplicidade e, assim, dilui-se a unidade, o mesmo valendo para a hipótese de o uno ser uma espécie de todo pois o todo é composto de partes e, assim, inclui certa multiplicidade; neste ponto é interessante frisar que a unidade visada por Parmênides assemelha-se a um conceito comum na teologia escolástica, a saber, simpliciter simplex[23], certa unidade em termos absolutos passível de realização apenas em Deus. Concluída a absoluta unidade do uno [redundância pedagógica] segue-se sua infinitude, digo, ele não pode ter um princípio, um meio e um fim, de forma que estivesse posto num lugar, pois a distinção de onde ele principiasse, estivesse ou terminasse implicaria numa forma de divisão vista por Parmênides como espécie de multiplicidade; entretanto, a negação da multiplicidade referente ao princípio, meio ou fim postula sua ilimitação e o exclui do conjunto das coisas determinadas, pois a determinação é uma espécie de finitude que incluiria o uno entre as coisas caracterizadas por todas aquelas propriedades que lhe foram negadas. Daqui conclui-se que o uno não pode estar em local algum pois não é determinado e nem possui partes passíveis de relacionamento com as coisas ou com pontos determinados do espaço.[24] Da negação da posição espacial do uno conclui-se a famosa tese da imobilidade, o chamado imobilismo eleata, que reza que o uno, o único que é por excelência, não pode mudar pois, caso o fizesse, seria de duas formas: ou mudando de lugar ou de estado; entretanto, caso mudasse do segundo modo – tendo em vista que o primeiro foi impugnado devido à implicação da especialidade, afastada nas conclusões anteriores, passaria a ser algo que não era e, assim, romper-se-ia a unidade. Assim conclui-se que o uno não se move nem sofre mutação alguma e, portanto, nem poderia ter vindo a ser pois isso implicaria em sua geração de algo distinto de si e “se alguma coisa vem a ser em alguma coisa […] seria necessário que a primeira ainda não estivesse na segunda, visto que se encontra ainda no processo de vir a ser e não é mais completamente externa a ela”.[25] Mas, se o uno não possui parte alguma e é inextenso, cumpre que não esteja dentro ou fora de coisa alguma; e então Parmênides conclui a imutabilidade do uno. [26]
É notório que o curso da discussão faça com que o estudante perceba certa semelhança da dedução das propriedades do uno com as deduções escolásticas acerca das propriedades do ser, e tal apontamento algo correto quando temos em mente que as questões deixadas por resolver no Parmênides são retomadas no Sofista[27] no contexto da discussão sobre o ser e em que sentido devemos entender o não-ser, diálogo cujas conclusões serão a seiva de toda a metafísica clássica. De toda forma, uma das poucas conclusões positivas do Parmênides consiste em que, caso o uno não seja [certa identificação do uno com o ser] então nada mais o será [a saber, a multiplicidade das coisas], algo análogo à posterior constatação do ser necessário [unidade] e, por conseguinte, da relação de dependência para com ele de todos os seres [multiplicidade] contingentes.
Após a discussão dos diálogos aporéticos, a herança parmenídica poderá ser vista na agrapha dogmata[28] platônica enquanto princípio de ilimitação em oposição à díada, no neoplatonismo plotiniano enquanto princípio para além das coisas que são e, muitos anos depois, no tomismo, no contexto da dedução dos transcendentais, quando o uno será tratado enquanto ato de ser enquanto indiviso [est unum quam ens indivisum]. Neste sentido passamos a compreender o Parmênides não como um livro traumatizante, mas como uma obra que exige um mui saudável esforço por parte do estudante na medida em que inicia a discussão que desembocará não apenas na criação da metafísica mas também em seu desenvolvimento muitos anos após a morte de Platão e, assim, urge que sigamos o conselho do velho filósofo:
“[…] te empenhas prematuramente (isto é, antes de obter o devido treino) em definir o belo, o justo, o bom e todas as demais formas. Eu o notei ao ouvir-se ontem quando dialogava com Aristóteles aqui. Podes assegurar-se que teu impulso para o discurso racional mostra-se nobre e divino, mas convém que treines enquanto ainda és jovem naquilo que parece inútil e é considerado pela maioria das pessoas pura loquacidade; se não o fizeres, a verdade te escapará.”
Parmênides 135 d
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Bibliografia citada e/ou recomendada
- Anaximandro/Parmênides/Heráclito — Os Pensadores Originários
- Giovanni Reale — História da Filosofia Grega e Romana Vol. III: Platão
- Giovanni Reale — História da Filosofia Grega e Romana Vol. VIII: Plotino e o Neoplatonismo
- G.S. Kirk, J.E. Raven & M. Schofield — Os Filósofos Pré-Socráticos
- Lloyd P. Gerson (Org.) — Plotino
- Mário Ferreira dos Santos — Platão: O Um e o Múltiplo — Comentário sobre o Parmênides
- Michael Erler — Platão
- Sto. Tomás de Aquino — O Deus Uno e Trino
- Sto. Tomás de Aquino — Questões Disputadas sobre a Verdade
Notas:
[1] Parmênides 128b
[2] Parmênides 128d
[3] Parmênides 129d
[4] A concepção de ser enquanto ser, um actus essendi considerado em si mesmo, não existiu para os gregos. O grau de abstração mais alto alcançado pela metafísica grega antiga foi a de ente considerado em si mesmo enquanto referente às coisas que são, sentido onipresente tanto no corpus platônico quanto no corpus aristotélico.
[5] Eis razão da afirmação do ser na concepção eleata descartar as coisas como ilusórias; se apenas o ser é e, assim, é a única entidade em sentido estrito, as coisas em geral estarão exclusas da definição e, assim, não-serão.
[6] Parmênides 129a-d
[7] Parmênides 129c
[8] Parmênides 129e
[9] Parmênides 130b-d
[10] Michael Erler, em seu Platão [p.232-234] crê que a discussão do Parmênides reflita, de certa forma, o debate intra-acadêmico acerca da teoria das idéias.
[11] Parmênides 131c
[12] Para informações sobre a metáfora da segunda navegação, ver História da Filosofia Grega e Romana Vol. III p.52
[13] Novamente, todos erros advindos não apenas das limitações da filosofia pré-socrática mas também à juventude do proponente da tese – caso coloquemos tais objeções, por exemplo, no contexto de uma avaliação aristotélica, boa parte delas seria considerada como falaciosa. Ver Parmênides 131 c-e.
[14]Eis uma forma do famoso argumento do terceiro homem. Ver Michael Erler, Platão p.234-5 e Mário Ferreira dos Santos, Platão: O Um e o Múltiplo p.96
[15] É interessante frisar que um dos erros mais frequentes quanto à interpretação de Platão consiste precisamente na confusão entre a idéia [entidade real subsistente fora da mente, secundum rem] e o conceito [entidade racional subsistente na mente, secundum rationem].
[16] Parmênides 132 c-d
[17] Parmênides 133 a
[18] Parmênides 133b-134c. Eis algo parecido com as objeções modernas ao idealismo transcendental kantiano na medida em que se entende a coisa-em-si [kantiana] não enquanto conceito negativo necessário para que entendamos a realidade do fenômeno mas enquanto essência subsistente incognoscível. De qualquer forma, no caso platônico, o plano ideal [eidos] foi posto para além do alcance, separado abismalmente do plano concreto, erro de interpretação que seja será perpetrado por uma miríade de críticos de Platão, entre eles Nietzsche. Para um comentário acerca da relação entre o plano concreto e o plano ideal enquanto faces de apenas um mundo, conferir História da Filosofia Grega e Romana Vol. III p.80.
[19] Atentai que Parmênides trata o plano ideal e o plano concreto enquanto conjuntos fechados. Parmênides 134 d-e.
[20] Parmênides 136 b-d. É interessante ter em conta que as Disputatio escolásticas funcionam considerando os argumentos pro e os argumentos contra quaisquer teses. Eis, talvez, mais uma contribuição de Parmênides para o desenvolvimento da filosofia.
[21] Parmênides 137 a-c
[22] Aqui fica evidente a consideração do uno enquanto espécie de conceito puro; a unidade será considerada de forma que qualquer nota de multiplicidade deverá ser eliminada; o principal “alvo” de Parmênides é a eliminação de quaisquer distinções na medida em que elas postulam algum tipo de relação – e relações exigem dois termos, o que não pode ser admitido na consideração da unidade absoluta. Tal consideração, que pode ser considerada abstrata, pode parecer tacanha para o estudante com algumas leituras a mais, mas devemos ter em mente que a primeira consideração sobre quaisquer temas, quando o filósofo ainda está tateando os conceitos que acabou de encontrar, devem ser tratadas com certa indulgência. Assim como no xadrez, é fácil identificar erros depois de termos visto a solução do problema.
[23] Podemos encontrar um exemplo desta simplicidade o artigo 1 da questão 7 do De Potentia Dei de Sto. Tomás de Aquino, disponível no livro Deus Uno e Trino.
[24] Parmênides 137c-138b
[25] Parmênides 138d
[26] Parmênides 138d0139a
[27] É dito que a discussão do Sofista, enquanto superação definitiva das aporias do Parmênides, configura seu parricídio. Ver História da Filosofia Grega e Romana Vol. III p.108 e seguintes.
[28] Doutrina não escrita.