Der einzig mogliche Beweisgrnnd zu einer Demonstration des Daseins Gottes (1763)
Por Immanuel Kant
Tradução de Geovane Campanher
Prefácio
Não tanto estimo esforços como os atuais a ponto de supor que o mais importante de nossos conhecimentos, a saber, a existência de Deus, vacilaria ou estaria em perigo se não fundamentado em profundas investigações metafísicas. Não foi da vontade da Providência que os insights tão necessários à nossa felicidade dependessem do sofisma de sutis inferências. Ao contrário, a Providência transmitiu diretamente essas percepções ao nosso senso comum natural. E, desde que não se confunda com a falsa arte, não deixa de nos conduzir diretamente ao que é verdadeiro e útil, pois temos extrema necessidade dessas duas coisas. Assim, esse emprego da razão sã, que ainda está dentro dos limites das intuições ordinárias, produz provas suficientemente convincentes da existência e das propriedades desse Ser, embora o erudito sutil sinta em toda parte a falta de demonstração e da exatidão de conceitos precisamente determinados e silogismos regularmente conectados. No entanto, não se pode deixar de buscar essa manifestação, na esperança de que ela se apresente em algum lugar. Pois, sem mencionar o desejo razoável de alcançar, em conhecimento de tal importância, algo que é completo e distintamente compreendido, — e nenhum entendimento acostumado à investigação pode renunciar a esse desejo -, é de esperar que tal discernimento, uma vez alcançado, será capaz de iluminar apropriadamente este objeto. Para atingir esse objetivo, porém, é preciso aventurar-se no abismo sem fundo da metafísica. A metafísica é um oceano escuro sem margens e sem balizas. Portanto, deve-se proceder como o marinheiro procede em um mar não navegado: assim que desembarca, submete sua viagem ao escrutínio, a fim de determinar se correntes não detectadas, por exemplo, não poderiam tê-lo desviado do curso, apesar de todos os cuidados prescritos pela arte da navegação que tomou.
Essa demonstração, no entanto, ainda não foi descoberta, e essa falha já foi notada por outros escritores. E, de fato, o que estou oferecendo aqui é apenas um argumento em apoio a uma demonstração. O que estou fornecendo aqui é o material para a construção de um edifício; estes materiais foram montados com grande dificuldade e agora são oferecidos ao escrutínio crítico do especialista na esperança de que o útil entre eles possa ser usado para construir um edifício de acordo com as regras da durabilidade e da harmonia. Não desejo mais que a análises dos conceitos; cujo emprego deva ser tomado como definições do que desejo que seja mantido para a demonstração em si. As análises que ofereço fornecem marcas características corretas das coisas de que estou tratando: elas nos permitem chegar a definições precisas, e são úteis em si mesmas para a obtenção da verdade e da distinção. Mas elas ainda aguardam a mão final do artista, e até que a recebam não podem ser consideradas como definições. Em uma ciência como a metafísica, há momentos de comprometimento e confiança para tudo definir e tudo demonstrar; e então, novamente, há momentos em que alguém se aventura em tais empreendimentos apenas com medo e trepidação.
As observações que aqui apresento são frutos de uma longa reflexão. Mas, porque uma variedade de compromissos me impediu de dedicar o tempo necessário a este trabalho, a maneira como essas observações são apresentadas mostra a marca característica de algo incompletamente elaborado. No entanto, pleitear a indulgência do leitor por apenas poder atendê-lo com algo de qualidade inferior, seja qual for a causa, seria uma bajulação muito fútil. O leitor nunca concederá seu perdão, não importa qual seja a desculpa. No meu caso, a forma incompleta da obra deve ser atribuída menos à negligência do que à omissão deliberada. Minha única intenção foi esboçar um rascunho principal. É minha convicção que um edifício de nenhuma excelência poderia ser erguido com base nesse projeto, contanto que mãos mais habilidosas que as minhas lhe dessem maior precisão nas partes e perfeita regularidade no todo. Tendo sido esta minha intenção, dispender cuidados excessivos e ansiosos na pintura precisa de todos os lineamentos nas partes individuais teria sido um esforço supérfluo, pois o esboço em geral deve primeiro aguardar o julgamento estrito dos especialistas da área. Por esta razão, muitas vezes aduzi argumentos sem pretender afirmar ser capaz, por ora, de mostrar distintamente sua conexão com a conclusão. Tenho, de vez em quando, avançado juízos comuns do entendimento sem lhes dar aquela forma de rigor, pela arte da lógica, que os elementos de um sistema devem ter. A razão para esta omissão foi o fato de achar a tarefa difícil, ou o fato de que a extensão da preparação que teria sido necessária era desproporcional ao tamanho pretendido do trabalho, ou o fato de que eu considerava não ter prometido uma demonstração, como livre das exigências que são legitimamente feitas de autores sistemáticos. Daqueles que se atrevem a julgar as obras do espírito, é uma minoria que olha corajosamente para a tentativa como um todo e que dá particular atenção à possível relação de suas partes principais com um edifício bem construído, uma vez que certos defeitos foram sanados e certos erros corrigidos. O julgamento desse tipo de leitor é particularmente benéfico para a cognição humana. Quanto ao outro tipo de leitor: incapaz de apreender uma conexão no todo, ele fixa sua atenção tácita em um detalhe ou outro, indiferente se uma censura, talvez merecida por uma parte, não afeta também o valor do todo, e se melhorias detalhadas de partes individuais podem salvar o esquema geral, que é apenas parcialmente defeituoso. Leitores desse tipo, cuja única e constante preocupação é reduzir a ruínas qualquer edifício que encontrem, antes de sua conclusão, podem, é verdade, ser temidos por causa de seu número. No entanto, seu julgamento é de pouca importância para pessoas razoáveis quando se trata de decidir o verdadeiro valor de um trabalho.
Talvez, em alguns lugares, não me expliquei com detalhes suficientes para privar aqueles que desejam apenas um pretexto ilusório para lançar a amarga censura da heterodoxia sobre um livro, de toda oportunidade de fazê-lo. Mas, então, que precauções poderiam ser tomadas para evitar isso? Acredito, porém, que falei com bastante clareza para aqueles cujo único desejo é encontrar em uma obra aquilo que o autor pretendia colocar nela. Envolvi-me o menos possível com objeções, embora minhas afirmações sejam muito diferentes das dos outros. Tal desacordo deixarei à consideração do leitor que compreendeu ambos os lados da questão. Se os julgamentos da razão imparcial de diferentes pessoas pensantes fossem examinados com a franqueza de um advogado incorrupto — um advogado que tanto pesou os fundamentos das duas posições em disputa que foi capaz de se imaginar na posição dos dois proponentes, de modo a ser persuadido tão fortemente quanto possível de seus respectivos pontos de vista, e que só então decidisse em que lado desejaria se comprometer — os filósofos discordariam muito menos entre si. A verdadeira justiça, ao adotar tanto quanto possível, a opinião oposta, logo uniria as mentes inquiridoras num único caminho.
Numa reflexão tão difícil como a presente, posso resignar-me de antemão ao fato de que muitas das coisas que direi serão incorretas, que muitas das elucidações que oferecerei serão inadequadas e que muitas das posições que desenvolverei se mostrarão frágeis e defeituosas. Não reivindico a concordância incondicional do leitor; eu mesmo dificilmente concederia tal apoio incondicional a um autor. Não ficarei, portanto, surpreso se for corrigido por outros em muitos pontos. Eu serei, de fato, considerado receptivo a tal instrução. Se, no início, quando se está lançando os fundamentos de seu argumento, alguém afirma confiantemente não estar enganado, é difícil retirar tal afirmação mais tarde; é menos difícil retirar uma reivindicação que foi apresentada com moderação, desconfiança e modéstia. Mesmo a vaidade mais sutil, desde que se entenda, perceberá que se deixar convencer pelos outros merece tanto crédito quanto convencer aos outros, e que talvez a ação anterior, na medida em que exige maior abnegação e mais autoexame, é mais verdadeiramente digna de crédito que outras. Pode parecer que a ocorrência periódica de explicações físicas detalhadas o bastante em uma obra seja prejudicial à unidade que se deve observar ao refletir sobre o assunto. No entanto, uma vez que minha intenção nesses casos foi especialmente focada no método de usar a ciência natural para alcançar o conhecimento de Deus, eu dificilmente alcançaria esse propósito sem empregar tais exemplos. Por isso a Sétima Reflexão da Segunda Seção exige maior indulgência. Isto é particularmente verdadeiro porque seu conteúdo é extraído de um livro que uma vez publiquei anonimamente e no qual tratei do mesmo tema com mais detalhes, embora em conexão com várias hipóteses de caráter um tanto ousado. No entanto, a afinidade que existe entre pelo menos a liberdade permitida para me aventurar em tais explicações e minha intenção principal, e também o desejo de ver certos aspectos da hipótese sujeitos à crítica dos especialistas, justificam a inclusão desta reflexão. Para aqueles que desejam entender todos os seus argumentos, talvez seja muito curto. E para aqueles que não esperam nada além de metafísica, talvez seja longo demais. Esses últimos leitores podem convenientemente pular esta reflexão. Será, talvez, necessário, antes de ler a obra, corrigir certos erros de impressão que podem afetar o sentido das minhas palavras. Uma lista de tais erros pode ser encontrada no final do livro.
A obra propriamente dita é composta por três seções: a primeira apresenta o argumento propriamente dito; a segunda explica sua ampla utilidade; a terceira oferece razões que pretendem mostrar que nenhum outro argumento em apoio de uma demonstração da existência de Deus é possível.
Seção I
Em que se fornece o argumento em apoio de uma demonstração da existência de Deus
Primeira Reflexão: Da Existência em Geral
Mesmo nos tratados mais profundos, a regra da meticulosidade nem sempre exige que todos os conceitos empregados sejam desenvolvidos ou definidos. Não existe tal exigência, a saber, se for assegurado que o conceito claro e comum por si só não pode ocasionar mal-entendidos no contexto em que é empregado. Tal é o caso do geômetra que, com a maior certeza, descobre as propriedades e relações mais secretas do que é extenso, ainda que ao fazê-lo apenas faça uso do conceito comum de espaço. E é assim também na ciência mais profunda de todas, onde a palavra “representação” é entendida com suficiente precisão e empregada confiantemente, mesmo que seu significado nunca se possa analisar via definição.
Portanto, nestas reflexões não seria necessário analisar o conceito muito simples e bem compreendido de existência, não fosse o fato de que o presente caso é um em que tal omissão poderia causar confusão e levar a erros graves. É certo que em qualquer outro lugar da filosofia o conceito poderia ser empregado com confiança da forma não desenvolvida em que ocorre no uso comum. A única exceção é a questão da existência absolutamente necessária e da existência contingente. Neste caso, uma investigação de tipo mais sutil tirou conclusões errôneas de um conceito infeliz, mas muito puro. Essas conclusões errôneas se estenderam a uma das partes mais sublimes da filosofia.
Não é de se esperar que eu comece oferecendo uma definição formal de existência. Tal procedimento é sempre indesejável quando a exatidão da definição sugerida é tão incerta. Esta situação surge com mais frequência do que talvez se perceba. Meu procedimento será como o de quem busca uma definição e que, antes de tudo, se assegura do que pode ser dito com certeza, seja afirmativamente ou negativamente, sobre o objeto da definição, mesmo que ainda não se tenha estabelecido detalhadamente o conceito de objeto. Muito antes de alguém arriscar uma definição de seu objeto, e mesmo quando lhe falta coragem de oferecer esta definição, ainda há muito que pode ser afirmado com o mais alto grau de certeza sobre o objeto em questão. Duvido que alguém já tenha definido corretamente o que é o espaço. Mas, sem me envolver em tal definição, estou certo de que onde o espaço existe também devem existir relações externas, que ele não pode ter mais do que três dimensões, e assim por diante. Qualquer que seja o desejo, ele se baseia em uma representação ou outra, pressupõe prazer no objeto do desejo, e assim por diante. Do que é conhecido com certeza e antes da definição de uma coisa, é frequentemente possível inferir com total certeza o que é relevante para o propósito de nossa investigação. Aspirar a uma definição é aventurar-se em dificuldades desnecessárias. A mania do método e a imitação do matemático, que avança a passos firmes por um caminho bem pavimentado, ocasionaram um grande número desses percalços no terreno escorregadio da metafísica. Esses percalços estão constantemente diante de nossos olhos, mas há pouca esperança de que as pessoas sejam avisadas por eles ou que aprendam a ser mais cautelosas como resultado. Só por este método espero chegar à iluminação que em vão procurei em outros. Quanto à lisonjeira ideia de que a maior perspicácia de cada um garantirá o sucesso que foi negado a outros: é bom lembrar que esse sempre foi o estilo daqueles que desejavam nos afastar dos erros cometidos por outros para nos conduzir para erros de sua própria concepção.
- A existência não é um predicado ou uma determinação de uma coisa
Esta proposição parece estranha e absurda, mas é indubitavelmente certa. Pegue qualquer sujeito que você queira, por exemplo, Júlio César. Faça uma lista de todos os predicados que podem ser considerados como pertencentes a ele, sem exceção até mesmo dos do espaço e tempo. Você verá rapidamente que ele pode existir com todas essas determinações ou não existir. O Ser que deu existência ao mundo e ao nosso herói, dentro desse mundo, poderia conhecer cada um desses predicados sem exceção, e ainda ser capaz de considerá-los como uma coisa meramente possível que não existiria, na ausência da decisão desse Ser de criá-lo. Quem pode negar que milhões de coisas que não existem realmente são apenas possíveis do ponto de vista de todos os predicados que elas conteriam se existissem?
Ou quem pode negar que na representação que o Ser Supremo tem delas não falta uma única determinação, embora a existência não esteja entre elas, pois o Ser Supremo as conhece apenas como coisas possíveis. Não poderia ocorrer, portanto, que, se existissem, contivessem um predicado extra; pois, no caso da possibilidade de uma coisa, não pode faltar nenhum predicado a sua determinação completa. E se tivesse agradado a Deus criar uma série diferente de coisas ou criar um mundo diferente, esse mundo teria existido sem nenhuma determinação adicional, que Ele reconhece ter, embora esse mundo fosse apenas possível.
No entanto, a expressão “existência” é usada como predicado. E, de fato, isso pode ser feito com segurança e sem erros incômodos, desde que não se insista em derivar a existência de conceitos meramente possíveis, como se costuma fazer quando se quer provar a existência absolutamente necessária. Pois então se busca em vão entre os predicados de tal ser possível; a existência certamente não se encontra entre eles. Mas quando a existência ocorre como um predicado na linguagem comum, é um predicado não tanto da coisa em si, mas do pensamento que se tem da coisa. Por exemplo: a existência pertence ao unicórnio do mar (ou narval), mas não ao unicórnio da terra. Isso significa simplesmente: a representação de um unicórnio marinho (ou narval) é um conceito empírico; em outras palavras, é a representação de uma coisa existente. Por isso, também, não se examina o conceito de sujeito para demonstrar a correção da proposição sobre a existência de tal coisa. O conceito de sujeito contém apenas predicados de possibilidade. Se alguém deseja demonstrar a correção de tal proposição, examina sua fonte cognitiva do objeto. Um diz: “Eu vi” ou “Eu ouvi sobre isso de quem o viu”. A expressão “Um unicórnio marinho (ou narval) é um animal existente” não é, portanto, totalmente correta. A expressão deve ser formulada ao contrário para ler. “Os predicados, que penso coletivamente quando penso em um unicórnio marinho (ou narval), ligam-se a certo animal marinho existente”. Não se deve dizer: “hexágonos regulares existem na natureza”, mas sim: “Os predicados, que se pensa coletivamente quando se pensa em um hexágono, ligam-se a certas coisas da natureza, como as células do favo de mel e o cristal-raiz”. Todas as línguas humanas têm certos defeitos inextirpáveis que surgem das circunstâncias contingentes que cercam suas origens. Seria pedante e fútil refinar excessivamente a linguagem e impor-lhe limites nos casos em que, no uso comum, não pudessem surgir mal-entendidos. É suficiente que essas distinções sejam feitas nos casos mais raros em que se está engajado na reflexão de um tipo mais sutil e profundo, onde tais distinções são necessárias. O que está sendo dito aqui só pode ser julgado adequadamente à luz do que se segue.
- A existência é a posição absoluta de uma coisa. Assim, a existência também se distingue de qualquer predicado; esta é, como tal, sempre posta apenas em relação a alguma outra coisa.
O conceito de colocação ou configuração é perfeitamente simples: é idêntico ao conceito de ser em geral. Ora, uma coisa pode ser pensada como meramente relativa ou, para expressar melhor a questão, pode ser pensada meramente como a relação (respectus logicus) de alguma coisa como marca característica de uma coisa. Neste caso, o ser, isto é, a colocação dessa relação é apenas a cópula em um juízo. Se o que se considera não é apenas esta relação, mas a coisa é posta em si e para si, então este ser é o mesmo que a existência. Este conceito é tão simples que não é possível dizer mais nada à guisa de elaboração, exceto apenas notar a cautela que se deve ter para não confundi-lo com as relações das coisas com suas marcas características.
Uma vez entendido que toda a nossa cognição se resolve, em última instância, em conceitos não analisáveis, também se entenderá que há conceitos quase não analisáveis; em outras palavras, haverá alguns conceitos em que as marcas características são apenas em um grau muito pequeno mais claras e simples que a própria coisa. Tal é o caso da nossa definição de existência. Admito prontamente que é apenas em um grau muito pequeno que nossa definição torna distinto o conceito daquilo que é definido. Mas a natureza do objeto em relação à faculdade de nosso entendimento não admite um grau mais alto de distinção.
Se digo: “Deus é onipotente”, tudo o que está sendo pensado é a relação lógica entre Deus e onipotência, pois esta é uma marca característica do primeiro. Nada mais é colocado aqui. Se Deus é, isto é, se Deus é postulado absolutamente ou existe, não está contido de forma alguma na afirmação original. Por esta razão, “ser” também é corretamente empregado mesmo no caso das relações que os absurdos mantêm entre si. Por exemplo: O Deus de Spinoza está sujeito a mudanças contínuas.
Se imagino Deus proferindo Seu todo-poderoso “Que haja” sobre um mundo possível, Ele não concede novas determinações ao todo que é representado em Seu entendimento, pois não adiciona nenhum predicado a ele. Pelo contrário, postula a série de coisas absoluta e incondicionalmente, e a postula com todos os seus predicados; tudo o mais dentro da série das coisas é posto apenas em relação a esse todo. As relações dos predicados com seus sujeitos nunca designam nada de existente; se o fizessem, o sujeito já teria que ser posto como existente. A proposição “Deus é onipotente” deve permanecer verdadeira mesmo para alguém que não reconheça a existência de Deus, desde que entenda como eu construo o conceito de Deus. Mas Sua existência deve pertencer diretamente à maneira pela qual Seu conceito é posto, pois Sua existência não será encontrada entre os próprios predicados. Se a existência do sujeito não está já pressuposta, todo predicado é sempre indeterminado quanto a pertencer a um sujeito existente ou a um sujeito meramente possível. A existência não pode, portanto, ser ela mesma um predicado. Se digo: “Deus é uma coisa existente”, parece que estou expressando a relação de um predicado com um sujeito. Mas há uma impropriedade nesta expressão. A rigor, a questão deveria ser formulada assim: “Algo existente é Deus”. Em outras palavras, pertencem a uma coisa existente aqueles predicados que, tomados em conjunto, designamos por meio da expressão “Deus”. Esses predicados são colocados em relação ao sujeito, enquanto a coisa mesma, juntamente com todos os seus predicados, é colocada absolutamente.
Meu medo é que, ao oferecer uma explicação muito elaborada de uma ideia tão simples, eu me torne ininteligível. Eu também poderia ter medo de ofender as ternas sensibilidades daqueles que se queixam especialmente da monotonia da exposição. No entanto, embora eu não queira descartar essa crítica como trivial, devo, nesta ocasião, ansiar por indulgência. Tenho tão pouco gosto quanto qualquer outro homem pela sabedoria meticulosa daqueles que passam tanto tempo em seus laboratórios de lógica submetendo conceitos sólidos e úteis a uma análise excessiva, destilando-os e purificando-os até que tornem-se completamente em vapores e sais voláteis. No entanto, o objeto desta presente reflexão é de tal natureza que ou se deve abandonar toda esperança de chegar a uma certeza demonstrativa sobre o assunto, ou se deve aceitar pacientemente uma análise de si mesmo.
- Pode-se dizer com propriedade que há mais na existência que na mera possibilidade?
Para responder a esta questão, deixe-me apenas observar de antemão que uma distinção deve ser feita entre o que é colocado e como é colocado.
Quanto ao primeiro, nada mais é posto em uma coisa real do que é posto em uma coisa meramente possível, pois todas as determinações e predicados da coisa real também se encontram na mera possibilidade dessa mesma coisa. No entanto, no que diz respeito a este último: mais é posto através da atualidade. Pois se eu perguntar: “Como tudo isso é colocado no caso da mera possibilidade?” percebo que a colocação só ocorre em relação à própria coisa. Ou seja, se existe um triângulo, então também existem três lados, um espaço fechado, três ângulos etc. Ou, para expressar melhor: as relações dessas determinações com algo como um triângulo são meramente postas; mas, se o triângulo existe, então tudo isso é posto de maneira absoluta. Em outras palavras, a própria coisa é posta junto com essas relações; e consequentemente, algo é adicionado. Portanto, para resumir tudo em uma representação suficientemente sutil, a fim de evitar confusão, sustento que nada mais é posto em uma coisa existente do que é posto em uma coisa meramente possível (pois então fala-se dos predicados daquela coisa). Mas é posto mais por uma coisa existente que por uma coisa meramente possível, pois a colocação de uma coisa existente também envolve a colocação absoluta da própria coisa. Com efeito, na mera possibilidade, não é a própria coisa que é posta; são apenas as relações de algo com algo que são postas de acordo com a lei da contradição. E permanece certo que a existência não é realmente o predicado de uma coisa. Embora não faça parte da minha intenção atual entrar em polêmicas, e ainda que, em minha opinião, um autor, que leia com imparcialidade as ideias de outros e as faça forçosamente suas, pode com razoável grau de certeza confiar a avaliação de suas novas e heterodoxas doutrinas ao julgamento de seu leitor — embora tudo isso seja verdade, direi, no entanto, algumas breves palavras a esse respeito.
A definição de existência de Wolff, que é uma conclusão da possibilidade, é obviamente muito indeterminada. Se não se sabe de antemão o que se pode pensar sobre a possibilidade de uma coisa, não se aprenderá nada com a definição de Wolff. Baumgarten introduz o conceito de determinação interna completa, e sustenta que é isso existe mais que a mera possibilidade, pois completa o que é deixado indeterminado pelos predicados inerentes ou decorrentes da essência. Mas já vimos que a diferença entre uma coisa real e uma coisa meramente possível nunca está na conexão dessa coisa com todos os predicados que podem ser pensados nela. Além disso, a proposição de que uma coisa possível, considerada como tal, é indeterminada em relação a muitos de seus predicados, pode, se tomada literalmente, levar a um erro grave. Pois tal indeterminação é proibida pela lei do terceiro excluído, que sustenta que não há intermediário entre dois predicados que se contradizem. Por exemplo, é impossível que um homem não tenha certa estatura, posição no tempo, idade, localização no espaço e assim por diante. Nossa proposição deve ser tomada no seguinte sentido: os predicados que são pensados juntos em uma coisa de modo algum determinam os muitos outros predicados dessa coisa. Assim, por exemplo, o que é reunido no conceito de ser humano em nada especifica as características especiais de idade, lugar e assim por diante. Mas então esse tipo de indeterminação deve ser encontrado tanto em uma coisa existente quanto em uma coisa meramente possível. Por esta razão, não pode ser usado para distinguir os dois. O célebre Crusius considera o onde e o quando como pertencentes às inconfundíveis determinações da existência. Mas, sem nos envolvermos no exame da própria proposição de que tudo o que existe deve estar em algum lugar e em algum momento, esses predicados ainda pertencem a coisas meramente possíveis. Poderiam, assim, existir muitas pessoas em muitos lugares determinados em um determinado momento. O Onisciente certamente conheceria todas as determinações que seriam inerentes a tais pessoas, se existissem, mesmo que na verdade não existam. Sem dúvida, o judeu eterno, Ahasuerus, é com respeito a todos os países pelos quais vagou e todos os tempos pelos quais viveu, uma pessoa possível. Espero que ninguém insista que o onde e o quando são marcas características suficientes da existência apenas quando a coisa realmente existe e está em algum lugar. Pois isso seria exigir que se concedesse antecipadamente aquilo que se pretende tornar claro por meio de uma marca característica adequada.
Segunda Reflexão: Da possibilidade interna na medida em que pressupõe a existência
- Distinção necessária no conceito de possibilidade
Qualquer coisa que seja autocontraditória é internamente impossível. Esta é uma proposição verdadeira, mesmo que seja deixado em aberto se é uma definição verdadeira. No caso de uma contradição, no entanto, é evidente que algo deve estar em oposição lógica a outra coisa; isto é, nega-se algo que está sendo afirmado na mesma proposição. Crusius não situa esse conflito meramente em uma contradição interna; ele afirma que esta contradição é percebida pelo entendimento de acordo com uma lei que lhe é natural. Mas, mesmo para ele, o impossível contém sempre a combinação de algo posto com algo que também o anula. Chamo essa repugnância de elemento formal na incomensurabilidade ou impossibilidade. O elemento material que é dado aqui como conflitante é ele mesmo algo que pode ser pensado. Um triângulo quadrangular é absolutamente impossível. No entanto, um triângulo é alguma coisa, assim como um quadrilátero. A impossibilidade baseia-se simplesmente nas relações lógicas que existem entre uma coisa pensável e outra na qual uma não pode ser marca característica da outra. Da mesma forma, em toda possibilidade, devemos primeiro distinguir o que é pensado, e então devemos distinguir a concordância do que é pensado de acordo com a lei da contradição. Um triângulo que tem um ângulo reto é em si mesmo possível. O triângulo e o ângulo reto são os dados ou o elemento material dessa coisa possível. O acordo, porém, de um com o outro, segundo a lei da contradição, é o elemento formal da possibilidade. Eu também chamarei este último de elemento lógico da possibilidade, pois a comparação dos predicados com seus sujeitos, segundo a regra da verdade, nada mais é que uma relação lógica. O algo, ou aquilo que está neste acordo, às vezes é chamado de elemento real de possibilidade. Aliás, gostaria de chamar atenção ao fato de que o discutido aqui será sempre a possibilidade e a impossibilidade internas ou ditas absolutas e incondicionais.
- A possibilidade interna de todas as coisas pressupõe uma existência ou outra.
Pelo aduzido anteriormente, fica claro que a possibilidade desaparece não apenas quando uma contradição interna, como o elemento lógico da impossibilidade, está presente, também quando não existe nenhum elemento material ou nenhum dado a ser pensado. Pois deste modo, nada por se pensar. Mas todo possível é algo que pode ser pensado, e a relação lógica lhe pertence segundo o princípio da contradição. Ora, se toda existência é cancelada, então nada é posto absolutamente, nada é dado, e não há elemento material para nada que possa ser pensado; todas as possibilidades desaparecem completamente. Reconhecidamente, não há contradição interna na negação de toda existência. Pois, para que haja uma contradição interna, é necessário que algo seja posto e ao mesmo tempo cancelado. Mas não há nada aqui postulado. Consequentemente, é evidente, que não se pode dizer que a negação de toda existência envolva uma contradição interna. Por outro lado, é algo autocontraditório dizer que existe uma possibilidade e ainda assim nada real. Pois se nada existisse, então também nada poderia ser pensado, e estaríamos em contradição ao afirmar que algo é possível. Em nossa análise do conceito de existência vimos que ser ou ser absolutamente posto, desde que essas palavras não sejam empregadas para expressar relações lógicas entre predicados e sujeitos, significam exatamente o mesmo que existência. Assim, a afirmação “Nada existe” significa o mesmo que a afirmação “Não há absolutamente nada”. E é obviamente autocontraditório acrescentar, apesar disso, “algo é possível”.
Fim da primeira parte
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Bônus: Recomendações de leitura ao interessado em Immanuel Kant
Comentário: Kant nunca foi um filósofo bem compreendido e, até onde se sabe, continuará assim para sempre. Sua filosofia possui muitos pressupostos que poucos estão dispostos a cumprir e, assim, desde a primeira edição da Crítica da Razão Pura, é possível encontramos um espantalho por esquina. Boa parte desses problemas de interpretação advém de problemas simples; listemos alguns deles: a) leitura não da Crítica da Razão Pura inteira mas apenas de sua primeira metade b) redução do pensamento kantiano apenas à primeira crítica c) tentativas de entendimento do autor apenas segundo comentários d) desconsideração do sistema das 3 críticas e de suas obras adjacentes, sendo uma delas a da presente tradução, o Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza, em que Kant fala do aspecto metafísico que condiciona os objetos no espaço e no tempo empíricos, abordagem diversa da encontrada na primeira parte da CRP onde se fala do espaço e do tempo como formas puras. Forneço aqui uma pequena bibliografia que, espero, ajude o interessado em Kant a percorrer seu caminho.
Will Dudley & Kristina Engelhard — Immanuel Kant: Conceitos fundamentais
Immanuel Kant — Manual dos Cursos de Lógica Geral
Paul Guyer (Org.) — Kant
Comentário: Recomenda-se a leitura do Manual dos Cursos de Lógica Geral como primeira obra do autor por este conter extensas e valiosíssimas explicações acerca da teoria do juízo de Kant que é praticamente o estopim para a principal pergunta da Crítica da Razão Pura: como são possíveis os juízos sintéticos puros a priori? Recomenda-se ainda a leitura da Introdução e do capítulo 1 do Cambridge Companion do Kant para que o leitos esteja ciente do percurso intelectual do autor, suas leituras pressupostas e dos problemas que ele deseja resolver. Caso interesse, é possível ler ainda os Escritos Pré-Críticos a título de curiosidade.
Immanuel Kant — Crítica da Razão Pura
Immanuel Kant — Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza
Immanuel Kant — Fundamentação da Metafísica dos Costumes
Immanuel Kant — Crítica da Razão Prática
Immanuel Kant — Crítica da Faculdade do Juízo
Comentário: Após a leitura do “grande monólito” das três críticas e “seus dois filhotes”, a saber, os dois pequenos livros sobre os princípios da natureza e os princípios dos costumes, o estudante já tem uma boa idéia de como funciona o sistema kantiano. Organizei-os desta forma pois o Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza “completa” exposições da Crítica da Razão Pura e a Fundamentação da Metafísica dos Costumes “prepara” o caminho para a Crítica da Razão Prática; em verdade seria convenientíssimo se houvesse uma edição que contivesse os dois livros. A partir daqui o estudante não precisa mais de ajuda para ler Kant — na verdade o correto seria que o estudante já fosse capaz de pesquisar sozinho muito antes de chegar nele — então tudo o que resta é recomendar meu comentador favorito, a saber, Ottfried Hoffe.
Esclarecimento (Aufklärung) significa a saída do homem de sua minoridade, pela qual ele próprio é responsável. A minoridade é a incapacidade de se servir de seu próprio entendimento sem a tutela de um outro. É a si próprio que se deve atribuir essa minoridade, uma vez que ela não resulta da falta de entendimento, mas da falta de resolução e de coragem necessárias para utilizar seu entendimento sem a tutela de outro. Sapere aude! Tenha a coragem de te servir de teu próprio entendimento, tal é portanto a divisa do Esclarecimento.
Immanuel Kant — Resposta à pergunta: O que é o Esclarecimento? (tradução de Luis Paulo Rouanet)
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