Em Defesa do Livre Arbítrio
Por Richard Cocks
Tradução, Notas e Comentários de Helkein Filosofia
O pseudônimo de “Filósofo Robô” sugere, na linha de Sam Harris, que não escolhemos nossas preferência e, por conseguinte, não possuímos livre-arbítrio — o que é uma linha de raciocínio peculiar para um determinista, dado que o conceito de preferência é dependente da mente. Nunca nos referimos, senão metaforicamente, a fenômenos que não contenham uma mente como se possuíssem “preferências”, e os deterministas também não podem permitir que mentes sejam causalmente eficazes pois, caso o façam, então teremos um fenômeno imaterial dotado de idéias e conceitos e que é capaz de contornar a causalidade meramente física.[1] O determinismo físico requer o postulado de que cadeias causais estendem-se até um passado indeterminado; dada certa causa A, segue-se e o efeito B, que por conseguinte torna-se a casa C e assim ad infinitum. Quando o combustível contido no interior do cilindro do motor de um carro é inflamado, a explosão faz o pistão descer, e é inútil referirmo-nos a preferências num contexto assim. Se fôssemos autômatos acéfalos, meras marionetes das leis físicas, assim como querem as conjecturas deterministas, então não faria sentido discutirmos sobre preferências, visto que não seriam elas a nos levarem a agir de tal ou qual forma, mas apenas a física mesma; inconsistências de mesmo jaez serão encontradas neste tópico.
É dúbio se o filósofo robótico ou Sam Harris estão de fato interessados no tema da preferência enquanto tal e, assim, parece desonesto redigir uma resposta que leve o tópico a sério; de toda forma, talvez seja gratificante que o façamos.
Parte do conceito de preferência consiste em que nem sempre executamos o que preferimos; isso lhe confere um aspecto perfeitamente voluntário, visto que nem sempre seguirmos o que preferimos e vice-versa. Dado o elemento voluntário, o determinismo é impugnado. Eu poderia preferir ler filosofia em vez de levar minha esposa ao aeroporto, relaxar à noite em vez de supervisionar a prática musical de meu filho e depois ler para ele – ainda que este último item seja o mais divertido – mas faço o que acho que deveria fazer, colocando o amor por minha esposa e meu filho à frente de minhas preferências pessoais.[2] Assim chegamos ao motivo que pode ter levando Sam Harris a tomar as preferências como se contivessem implicações deterministas, visto que ele poderia responder nossas afirmações sobre a escolha das preferências replicando que nossas ações revelam nossas preferências reais. Caso não fique lendo filosofia no sofá em vez de dirigir para sua esposa ou assistindo TV em vez de supervisionar seu filho, então sua preferência real deve ser o que é melhor para sua esposa e filho – em vez de sua própria recreação. O problema com esse tipo de raciocínio é que ele envolve uma falácia que legisla em causa própria conhecida como falácia do verdadeiro escocês,[3] e que pode ser exemplificada da seguinte forma: alguém ouve falar de um crime terrível que foi cometido em Londres e então diz: “nenhum escocês faria algo assim”. Algum tempo depois é revelado que o crime foi cometido por um escocês e, ao tomar nota do fato, o mesmo homem afirma: “nenhum verdadeiro escocês faria algo assim”. Ele está tornando tautologicamente verdadeiro [verdadeiro por definição] que os escoceses não cometem crimes terríveis pois caso o fizessem não seriam escoceses. Harris estaria tomando como verdadeiro que as pessoas sempre seguem suas preferências e, assim, desligando-se de asserções referentes a fatos empíricos. Se tomarmos “sempre seguimos nossas preferências” como uma afirmação empiricamente verdadeira, então deve ser possível erigir hipóteses em contrário; em que circunstâncias poderíamos considerar que não estamos seguindo nossas preferências? Se não houver nenhuma situação deste tipo então estamos meramente afirmando uma questão semântica e não algo que se refira ao funcionamento do mundo.
A falácia inicia-se com uma afirmação empírica, um fato supostamente verdadeiro acerca do mundo, por exemplo, “sempre seguimos nossas preferências” – e eis algo fácil de desmentir, dado que frequentemente fazemos o que preferimos não fazer. Eu preferiria não preencher as pesquisas comprovadamente inúteis e/ou estúpidas que a administração me impõe; entretanto, as faço para não perder meu emprego. Sendo assim, as faço por coação e não por preferência e, assim, temos um exemplo em contrário.[4] O determinista então faz com que seguir nossas preferências seja verdadeiro por definição quando afirma: “você prefere não perder seu emprego; logo, sua preferência real é fazer a tarefa chata imposta pela administração”. Não posso lhe dizer [ao chefe] o quanto não quero fazer tal ou qual coisa mas, caso coloque uma arma na minha cabeça, decerto o farei; nesse caso não estarei seguindo ativamente minhas preferências. Caso tome como verdade tautológica que o que quer que eu faça revelará minha “real” preferência mesmo que isso não seja remotamente verdadeiro, então temos que “sempre seguimos nossas preferências” é verdadeiro por definição. E assim adentramos no reino das falácias: você diz: “sempre seguimos nossas preferências” como suposto fato sobre a realidade empírica; replico com um exemplo em contrário, algo simples, sem rebuscos; e então você responde tornando sua afirmação inicial verdadeira por definição, imunizando-a contra exemplos contrários. O problema é que a afirmação inicial deveria ser um fato empírico e agora é apenas uma questão semântica, uma discussão sobre palavras que tiveram seu significado redefinido para que se adequem à conclusão desejada.
Rotineiramente fazemos o que não preferimos; Bartleby[5], quando se recusa a atender a algum pedido de seu chefe, diz: “eu preferiria não fazer”. Este é o uso normal do termo “preferência”, e é óbvio que Bartleby, ao menos verbalmente, não recusa fazer o que seu patrão pede. Isto é desconcertante para o chefe pois, até onde me recordo da história, Bartleby não intenda fazer o que lhe foi mandado, mas recusa no subjuntivo em vez de responder diretamente pois, caso seu chefe ameaçasse despedi-lo, então o funcionário poderia responder: “eu não disse que não o faria; apenas disse que preferiria não o fazer!”. Portanto, a noção mesma de preferência implica a possibilidade de que ela não seja seguida e, portanto, não possui implicações determinísticas. Caso se insista em que o que fazemos revela nossas preferências [reais] então resulta que o é apenas para que nos enredemos em falácias, um jogo de palavras e não afirmações factuais.
Podemos conceder a Harris e ao filósofo robótico que muitos aspectos da preferência são casuais e para além das escolhas individuais – mas não que eles sejam determinantes. Algumas preferências definitivamente não são objeto de escolha, como a de não passar fome, que foi “construída” pela evolução e é um elemento fixo de nosso comportamento. Entretanto, o que faremos para satisfazer nossas preferências, como a escolha de um emprego para que possamos pagar pela comida e que tipo de comida o será é o que os biólogos chamam de elemento orientador, algo que requer flexibilidade e capacidade de improvisação – e é isto que esta coisa misteriosa chamada consciência nos permite. A raposa vai no galinheiro para comer [fixo], mas para que satisfaça seu desejo ela deve descobrir como entrar [orientador]; uma vez dentro, ela perseguirá as galinhas, que correrão por direções imprevisíveis, e a raposa deverá gerenciar seu direcionamento no percurso da perseguição. Ela não pode seguir uma regra fixa pois ninguém sabe como uma galinha reagirá num determinado momento e, visto que algoritmos não podem ser criados para eventos pontuais, a raposa não pode ser um mero autômato acéfalo seguindo um algoritmo. O máximo que pode haver é uma heurística, uma regra de ouro; por exemplo: uma vez que a raposa tenha capturado uma galinha, poder-se-ia escrever um algoritmo que alcançasse o mesmo resultado, mas seria algo inútil uma vez que não teria aplicação alguma da próxima vez. Podemos comparar a situação com uma receita de cantada: caso funcione e o casal se casar, o mesmo procedimento não funcionará se alguém fizer exatamente o que o marido fez para conquistar o coração de sua amada e, caso alguém o tente, a mulher decerto achará assustador. Esse foi um dos elementos da trama de O Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, em que o personagem de Kate Winslet, embora tenha tido sua memória de relacionamentos passados apagada, reage com repulsa quando o [personagem] de Elijah Wood repete os eventos e encontros que a conquistaram quando feitos pelo personagem de Jim Carrey. Algumas memórias vestigiais permanecem e podem ser reativadas – como concebido por Platão no mito do Rio Letes[6], onde as pessoas se esquecem de tudo mas retém vestígios da Verdade, da Beleza e da Bondade que podem ser recuperados através das experiências terrenas – e por isso ela foge do personagem de Wood.
No caso de preferirmos não morrer de fome, ainda que a preferência não seja escolhida, sua satisfação requer a liberdade do arbítrio – algo que não concatena com as teses deterministas.[7] É bom que existam preferências como esta, que preservem nossa vida e saúde. De acordo com o uso corrente do termo “preferência”, a de não morrer de fome pode ser anulada; conheci uma pessoa que, não sabendo que tinha tumor cerebral, ao receber a notícia de sua doença terminal, foi para casa e simplesmente recusou-se a comer ou beber, morrendo em três ou quatro dias – sendo que antes disso ele se sentia saudável e em forma. Ainda me sinto intimidado ao pensar em sua demonstração de autocontrole.
O filósofo robótico poderia responder nosso argumento afirmando que a raposa continua sendo um dispositivo que segue regras, uma máquina, assim como já afirmou que somos como bonecos mecânicos com um maior leque de respostas pré-programadas na forma de condicionais “se… então…”. Mas isto não pode ser pois há muitos eventos que nunca ocorreram e não podem ser antecipados: o Big Bang precisaria pré-programar uma quantidade quasi-infinita de condicionamentos em todos os organismos possíveis de forma que seria necessário algo próximo à onisciência.[8] Por exemplo, Bárbara McClintock realizou experimentos em que bombardeava pés de milho com radiação de forma que as extremidades de seus cromossomos fossem rompidas e as células das plantas precisassem reparar seus danos; isso envolveu transposão e reordenamento do código do DNA até que as extremidades rompidas pudessem ser reparadas e a reprodução celular fosse possibilitada. Por vezes funcionou, mas em outras vezes não.[9] Num experimento semelhante, cientistas intencionalmente furaram os funis de entrada dos ninhos das vespas da lama – sendo que elas constroem seus ninhos assim para que outros insetos fiquem presos na lateral do funil e os ovos de vespa permaneçam seguros no fundo do alojamento. Eles [os cientistas] fizeram os furos enquanto as vespas estavam longe, uma situação impossível de ocorrer na natureza e um evento totalmente novo para as vespas da lama que, ao retornarem ao ninho, inspecionaram os furos e depois providenciaram tampões improvisados – em um dos casos a opção foi construir um funil no buraco do outro. Todas estas situações impossíveis de ocorrer na natureza não poderiam ter tido solução alguma derivada evolutivamente como se estivessem à espera de sua ativação pois nunca haviam ocorrido antes.
O filósofo robótico poderia responder que a heurística pode ser, por exemplo, “ter, no ninho, um funil funcional”, mas o grau de criatividade e imaginação para satisfazê-lo implicaria livre-arbítrio – e o determinismo implica que tais coisas jazem resolvidas desde o Big-Bang, há bilhões de anos, apesar de nada haver para saber acerca das circunstâncias das vespas da lama.[10] A parcimônia aponta que a vespa da lama possui alguma consciência e capacidade de improvisar uma solução para seus problemas.[11]
Em todos os exemplos, a saber, o da raposa, das células do pé de milho e das vespas da lama, vemos um comportamento teleológico orientado por metas descartado pelo determinismo que, por conseguinte, supõe que as coisas funcionem através do mero impulso da causalidade. Mas as metas existem no futuro, não o são fisicamente, e ainda assim orientam o organismo a seguir em frente: sendo assim, não é compatível com os processos causais defendidos pelo determinista e, ainda mais importante, se algo não pode ser antecipado então não pode haver regras aguardando implementação.
O trabalho de um matemático é descobrir novas verdades matemáticas, e bem sabemos que sua disciplina não pode ser reduzida à mera manipulação de símbolos, dado que seu significado deve ser verificado em certos pontos do processo para que seja possível aferir novas descobertas[12] e, nesse sentido, nem a matemática mesma é uma questão de algoritmos em forma de condicionais. É comum que os mais brilhantes matemáticos intuam uma nova verdade matemática antes mesmo de que sejam capazes de prova-la e, portanto, não seguem um procedimento meramente mecânico, como o caso extremo das provas de Solomon Lefschetz que, embora quase sempre erradas, partiam de percepções corretas.[13] Outras preferências são inspiradas ou modificadas à medida em que vivemos; por exemplo, em minha adolescência, eu aspirava ser “educado” e inteligente, e parte disto foi para evitar situações vergonhosas, digo, eu não queria ser ignorante a ponto de precisar de explicações para entender piadas culturalmente sofisticadas, sendo que foi uma preferência decerto adquirida em meu meio social – a elite intelectual de Christchurch, na Nova Zelândia dos anos 70 e 80. Não creio que eu tenha sido forçado a adotar tal preferência; parte dela envolvia a busca de uma realização [intelectual], mas como eu poderia alcançá-la dependia de meus interesses, habilidades e gostos. Tentei ler o Das Kapital quando tinha dezesseis anos de idade e precisei abaixar o padrão de minhas tentativas, pois não entendi palavra alguma; por outro lado, pude ler Gustave Flaubert e Thomas Mann. Tentei ler Crime e Castigo mas foi algo tão deprimente que desisti e consegui encerrá-lo apenas quando já havia alcançado a meia idade. Quando cheguei aos E.U.A, vivi com meu mentor e herói de infância que, por sua vez, era ouvinte assíduo de música clássica e apreciador de Proust. O Der Ring des Nibelungen era presença constante. Não eram minhas preferências, mas dada minha admiração por meu mentor, esperei que viessem a se tornar, algo que infelizmente não aconteceu, embora tenha tentado apreciar algumas sinfonias de Mahler. Visto que cresci tocando violino em orquestra e, portanto, fui muito exposto à música clássica, devo ser impermeável aos encantos da música da alta cultura – um filisteu, eu diria. Os protagonistas propositalmente autodestrutivos de Proust, como Monsieur Swann[14], também nunca estiveram em meus gostos. Perseguir uma prostituta esperando que ela a ame e seja fiel foi demais para o meu eu de vinte e quatro anos de idade.
Sendo assim, as preferências são, em grande parte, apenas o que são; entretanto, os objetivos de uma pessoa dependem de suas escolhas e, por conseguinte, as preferências modificam-se a depender das coisas sobre as quais temos controle. Dado o objetivo de nos tornarmos cultos e admiráveis, podemos tentar convencer nossas preferências em certas direções: prefiro Dostoievski a reality shows na TV – mas na verdade qualquer coisa é preferível a reality shows –, ainda que lê-lo seja custoso; de qualquer forma, visto que ressoa em minha sensibilidade, ou seja lá por quais razões, o acho tremendamente gratificante. Aspiro preferir uma coisa em vez de outra. Já os objetivos podem ser escolhidos por uma série de razões que, por conseguinte, podem envolver argumentos persuasivos que, por sua vez, são algo totalmente de acordo com o livre-arbítrio – com a lógica e a razão provando sua eficácia. Apelando à imaginação, alguns dirão que seus objetivos são belos, ou ainda tomarão socorro de outros conjuntos de objetivos, como a adoção de metas de curto prazo para que se atinja metas de longo prazo. As pessoas podem ou não ter preferências consistentes com seu ideário de uma boa vida e, talvez, haja um permanente conflito entre o que se quer e o que realmente se quer, como no exemplo da oração de Sto. Agostinho para Deus em que pedia para ser um bom homem, mas ainda não, algo como desejar ter um pouco mais de diversão hedonista antes de se comprometer com o bem.[15] Um pouco mais tarde na vida, Sto. Agostinho se sentiu culpado por ter tido uma namorada[16]; quando li as Confissões de Agostinho pela primeira vez, achei algo idiota, mas quando mais velho também me senti culpado por ter tido praticamente uma esposa com a qual, entre outras coisas, fazia sexo, mas que deveria ser abandonada em favor de outra pessoa – um comportamento deveras vergonhoso. Depois de ter tido uma relação com alguém, não há problema em se arrepender; de fato: deixe-me ser bom, mas ainda não.
Talvez modelo de quadro quadrantes de Ken Wilber nos ajude; nele, a cultura intersubjetiva oferece muitas das opções de escolha – tanto num aspecto limitante quanto expansivo, enquanto os aspectos interobjetivos envolvem possíveis ocupações que possam afetar as escolhas de cada um; por exemplo, a disponibilidade para compra dos equipamentos necessários à satisfação de certo objetivo, por exemplo, caixa de som, piano, livros, raquetes, CD´s, e assim por diante. Caso não seja possível satisfazer as condições para dada meta, ela será abandonada. Elementos objetivos incluem DNA, hormônios, cromossomos XY ou XX e quaisquer itens biológicos e, finalmente, na esfera do subjetivo e do pessoal, temos os elementos-chave relevantes ao livre arbítrio: questões de gosto, ideais, valores, estados de ânimo e sentimentos.
Certa feita contei uma anedota sobre uma pessoa que reluta em exercitar sua prática de piano; então, um dia, um pianista famoso se apresenta em sua cidade, fazendo com que o preguiçoso se sinta inspirado e decida que também deseja ser um pianista e tocar num concerto. A partir deste ponto a pessoa toma uma atitude diferente a respeito de sua prática de piano e muda sua preferência que, anteriormente, era fazer o mínimo necessário. Em dadas condições a questão sobre a escolha de nossas preferências complica-se, visto que algumas [delas] provavelmente s incorporadas e outras relativas a objetivos e propósitos decerto escolhidos [de antemão]. Por vezes aspiramos por novas preferências, tentamos e falhamos. Nossas metas e propósitos dependem de nossos valores, do que achamos inspirador e do que apela à nossa imaginação, sendo que o que preferimos incluirá toda sorte de coisas, desde interesses e razões compartilhadas até o que achamos admirável. Nem tudo isso estará sob nosso controle e haverá elementos fortuitos, por exemplo, pessoas que encontramos por acaso e que nos influenciam – uma noção de seleção de preferências puramente racionalista não é mais atraente do que o determinismo e também não parece particularmente “livre”; deve haver um elemento artístico incluso na equação. Um homem autista desenvolveu uma planilha que continha os vinte e seis elementos de sua mulher ideal; quando finalmente encontrou uma mulher que satisfez todos os seus vinte e seis elementos, ela não quis ter nada com ele – e eu não a culpo!
Winstonscrooge escreve:
Levei a cabo uma análise semelhante [à tua] acerca do livre arbítrio após ter lido o livro de Sam Harris. Seu argumento consiste, basicamente, em que nós não escolhemos a situação em que nascemos (um ponto discutível) e todas as situações que nos influenciaram ao longo do caminho. Portanto, é a formação dessas situações (fora de nosso controle) que rege nossas escolhas. De qualquer forma há um furo nesse argumento, dado que mesmo que nossas escolhas sejam 99% moldadas por fatores fora de nosso controle e 1% de livre arbítrio, então o livre arbítrio existe.[17]
A situação poderia ser comparada à da professora de estudos feministas que afirma que o gênero é uma construção social sem quaisquer contribuições biológicas, sendo que a “sociedade” diz às mulheres o que significa ser mulher, com quais brinquedos as meninas bonitas brincam e assim por diante; por outro lado, de alguma forma misteriosa, a professora possui sua própria opinião sobre o assunto, e é uma que não está conforme o determinismo social. Este é o quadrante “subjetivo” que entra em cena. Deve haver, semelhantemente, alguma verdade na afirmação de que o gênero, a classe e a raça influenciem nossas idéias mas, por outro lado, membros do mesmo gênero, classe ou raça podem ter visões radicalmente opostas e incompatíveis: portanto, essas concepções devem ser apenas algumas entre muitas e, caso pensemos que não, a crença de que o gênero, a classe e a raça determinam nossas crenças será, por si só, meramente o produto do gênero, da classe e da raça e, portanto, não será verdadeira.
A resposta do filósofo robótico a este artigo ignora grande parte de seus argumentos e segue uma lógica circular. Ele pensa que sabe que as preferências estão sempre totalmente fora de nosso controle e que são determinantes causais, alegando ser assim por conta do determinismo ser verdadeiro. Entretanto, o argumento das preferências [algo notoriamente oposto às suas crenças] foi usado por ele e por Harris para tentar justificar a veracidade do determinismo.
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Bibliografia citada e/ou recomendada:
- Arthur Schopenhauer — A Vontade na Natureza
- Arthur Schopenhauer — O Mundo como Vontade e como Representação Tomo II
- Ernest Nagel &James R. Newman — A Prova de Gödel
- Fiódor Dostoiévski — Crime e Castigo
- Gustave Flaubert — Madame Bovary [provavelmente]
- Herman Melville — Bartleby, o Escrivão
- Immanuel Kant — Crítica da Razão Prática
- Marcel Proust — Em Busca do Tempo Perdido
- Peter Berger — Perspectivas Sociológicas
- Platão — A República
- Sto. Agostinho — Confissões
- Sto. Agostinho — O Livre Arbítrio
- Sto. Tomás de Aquino — O Livre Arbítrio
- Viktor Frankl — Psicoterapia e Existencialismo
Notas:
[1] É o que Kant faz, por exemplo, em Crítica da Razão Prática A175 quando separa o sujeito fenomênico e o sujeito enquanto coisa em si, um submisso ao mecanismo da natureza e o outro livre sendo que, na verdade, ambos são apenas um que é visto de dois ângulos diversos. [N.T.]
[2] Este é, de certa forma, o argumento schopenhauriano contra o livre-arbítrio exposto em Uber der willen in der Natur, por vezes traduzido como Sobre a Vontade na Natureza ou O Livre-Arbítrio. [N.T.]
[3] Também chamada de “apelo à pureza”; consiste em tentar manter, via ad hoc, afirmações sem fundamento. É vastamente cometida por ideólogos que, tentando desligar sua ideologia dos regimes que a exerceram, afirmam que tal ou qual regime não é o que diz ser por ter perpetrado tal ou qual ação. Exemplos comuns são o desligamento de Stalin ou Trotsky do socialismo ou da afirmação de que o regime cubano não tentou um socialismo pois os verdadeiros ideais socialistas não incluem em seu arcabouço teórico a perseguição a seus inimigos – o que é falso. Muito curiosamente podemos encontrar esse tipo de coisa sendo ensinada em sites nomeadamente didáticos, como visto aqui. [N.T.]
[4] Um dos pontos nevrálgicos do determinismo tende a ser a confusão entre coerção e determinação. Coerção é a pressão exercida sobre pessoas para que exerçam tal ou qual ação; determinação é a causalidade necessária que faz com que ente A exerça ação B. Uma pessoa que faz o que não quer enquanto possui uma arma apontada para a cabeça o faz sob coerção; a pessoa que faz o que não quer pois caso não o faça sofrerá sanções diversas também está sob coerção e, ainda que no vocabulário popular digamos que “não tínhamos escolha”, a verdade é que escolhemos a alternativa que implicava um sofrimento menor. É uma situação radicalmente diferente da, como exemplificada no texto, do funcionamento do motor: o pistão, de fato, não tem escolha. O ato de dizer que não tivemos escolha quando o tivemos foi chamada por Sartre de má-fé e, nesse sentido, o determinismo é um grande exercício de má-fé. [N.T.]
[5] Personagem de O Conto do Escrivão, de Herman Melville. [N.T.]
[6] Rio mítico citado no contexto do Mito de Er, em que Platão comenta sobre a vida após a morte e a transmigração das almas. Podemos encontrá-lo em República 621a: “Desse lugar, sem se poder voltar para trás, dirigia-se para o trono da Necessidade, passando para o outro lado. Quando as restantes passaram, todas se encaminharam para a planura do Letes, através de um calor e uma sufocação terríveis. De facto, ela era despida de árvores e de plantas. Quando já entardecia, acamparam junto do Rio Âmeles, cuja água nenhum vaso pode conservar. Todas são forçadas a beber uma certa quantidade dessa água, mas aquelas a quem a reflexão não salvaguarda bebem mais do que a medida. Enquanto se bebe, esquece-se tudo. Depois que se foram deitar e deu a meia-noite, houve um trovão e um tremor de terra. De repente, as almas partiram dali, cada uma para seu lado, para o alto, a fim de nascerem, cintilando como estrelas. Er, porém, foi impedido de beber. Não sabia, contudo, por que caminho nem de que maneira alcançara o corpo, mas, erguendo os olhos de súbito, viu, de manhã cedo, que jazia na pira. [N.T.]
[7] A relação e confusão entre os elementos fixos e os elementos voluntários do comportamento humano é outro entre os calcanhares de Aquiles do determinismo em geral. Podemos encontrá-lo em argumentos pretensamente neurocientíficos, como o seguinte: durante a vida experienciamos situações que moldam nosso comportamento; logo não temos livre-arbítrio pois agimos segundo o que aprendemos com nossas experiências passadas. Mas o argumento sofre de muitos problemas. O primeiro é que ele pressupõe que o livre-arbítrio dependa de uma liberdade irrestrita, digo, caso não ajamos livremente de forma absoluta, sem condição alguma que direcione esta ou aquela escolha, então não somos livres; dado que esse tipo de liberdade não exista então não existe liberdade alguma. Mas isso é como dizer que, dado que o círculo ideal não existe [concretamente na realidade enquanto coisa] então não existem coisas circulares, o que é falso. O mero dado de que existimos corporalmente é uma restrição à liberdade [restrição física]; o dado de que existimos num corpo de relações sociais e morais também é um fator restritivo [restrição socio-moral]; mas nada disso determina nossas ações, apenas as condicionam. Por exemplo, ainda que seja imoral cometer crimes, as pessoas ainda os cometem. Da mesma forma, ainda que nossas experiências nos mostrem, ainda que por vias traumáticas que tal situação foi assim ou assado e que devemos agir assim ou assado, elas não nos determinam mas apenas nos coagem. As experiências são o estofo sobre o qual decidimos, mas não são um aspecto determinante pois podemos imaginar modelos ideais e preferi-los em vez de escolher nossas próprias experiências; ademais, podemos atentar antes à experiências de outros do que à nossa. Sendo assim, tomar as experiências como determinantes, como ocorre, novamente, no exemplo do pistão do carro, é um erro filosófico crasso. Outro argumento de mesmo jaez alega que os neurônios revelam atividade antes da tomada consciente de decisão; logo eles escolhem por nós. Ora, isso é como dizer que nosso estômago ronca antes de decidirmos comer ou, pior, assume um background fisicalista antes da investigação: o pressuposto falso da causalidade física [do pistão] está assumido antes da afirmação acerca da liberdade e assim o argumento quer provar a própria premissa [falácia de argumento circular] no seguinte modelo: só há causalidade física; ora, as decisões humanas ocorrem após a verificação de fenômenos físicos; mas visto que a causalidade física não admite a voluntariedade, a liberdade é ilusória. [N.T.]
[8] O argumento determinista exigiria uma programação potencialmente infinita já inclusa no big bang; mas o algoritmo teria que legislar sobre entidades inexistentes e, nesse sentido seria uma programação feita para eventos futuros que, por sua vez, leva à questão de se tal programação exigiria, por conseguinte, uma mente onisciente, visto que não apenas as coisas precisariam ser pré-programadas mas também o tempo e o espaço. Criamos algoritmos para fazer coisas, digo, eles possuem uma causa eficiente e uma causa final e, se assim o for, a afirmação de um algoritmo físico-determinístico é baseada em duas premissas ocultas e contraditórias, a saber, a antropomorfia [algoritmos são invenção humana] e o programador universal. É possível que alguém diga que a idéia platônica é algo como um algoritmo, mas o dado é que a idéia platônica não apenas exige o Demiurgo enquanto causa eficiente [inteligente e voluntaria] mas rege apenas a essência enquanto imagem estampilhada na coisa, algo radicalmente diferente de um fisicalismo determinista que, muito curiosamente, possui um “deus nas lacunas”. [N.T.]
[9] Os organismos alteram seu DNA de cima a baixo quando necessário, expondo o problema do ne egoísta promovido por Richard Dawkins em seu trabalho de mesmo nome, livro que transforma a biologia em teoria da conspiração, ainda que se ouça pessoas supostamente especializadas elogiando-o. Os genes são frequentemente alterados e até eliminados no decorrer da vida de um organismo. Certamente, a forma como o gene é expresso é frequentemente alterada, resultando em epigenética; até mesmo a quantidade de lambidas que uma mãe rato concede a seus filhotes provou ser condição de mudança na expressão gênica. [N.A.]
[10] Novamente vemos o determinismo fisicalista permitindo que suas veias teológicas saltem. Podemos apontar que a programação das coisas existentes teria que ser anterior ao espaço e ao tempo [logo um ser eterno] e que, mesmo que ele houvesse programado toda a causalidade física do universo isso não significaria a redução de toda causalidade à física – assim o determinismo não consegue sequer justificar a si mesmo. Ou, como comentado há quase dois séculos atrás, por Schopenhauer: “Assim, o naturalismo, ou o modo puramente fisicalista de explicação, jamais será suficiente: assemelha-se a um exercício de cálculo insolúvel na aritmética. Cadeia causal sem começo nem fim, forças fundamentais insondáveis, espaço infinito, tempo sem começo, divisibilidade sem fim da matéria, e tudo isso ainda condicionado por um cérebro que conhece, unicamente no qual existem, justamente como o sonho, e sem o qual desaparecem, — tudo isso constitui o labirinto no qual o naturalismo nos faz dar voltas incessantemente. A altura que nos nossos dias as ciências da natureza escalaram coloca, nesse sentido, todos os séculos precedentes em densa sombra e é um cume que a humanidade alcançou pela primeira vez. Porém, por mais progresso que a física (entendida no sentido amplo dos antigos) possa fazer; com ele não se terá dado o menor passo para a metafísica; tão pouco quanto uma superfície jamais adquire conteúdo cúbico por mais vasta que seja a sua ampliação.” O Mundo como Vontade e como Representação Tomo II p.216. [N.T.]
[11] Navalha de Ockham. A explicação do “Big-Bang” consciente que programa tudo é um ad hoc que, em verdade, não possui razões sólidas de credibilidade. [N.T.]
[12] Ver Teorema do Gödel e Problema da Parada. [N.A.]
[13] É possível exemplificar o mesmo através do caso de Srinivāsa Rāmānujan. [N.T.]
[14] Personagem de Em Busca do Tempo Perdido. [N.T.]
[15] “Agora, no entanto, quanto mais ardentemente amava aqueles dois de quem conhecera a salutar decisão de se entregarem completamente a ti para serem curados, mais profundamente eu me detestava, ao comparar-me com eles. Pois já eram decorridos muitos anos, talvez uns doze, desde a idade de dezenove anos, quando, ao ler o Hortênsio de Cícero, eu me sentira inclinado ao estudo da Sabedoria. E mesmo agora não me decidia a desprezar a felicidade puramente terrena e empenhar- me a procurar aquela da qual, não só a posse, mas a própria busca, era de preferir-se a todos os tesouros, a todos os reinos da terra, mesmo já alcançados, e aos prazeres do corpo postos à minha disposição. Eu, porém, jovem tão miserável, miserável desde o despertar da juventude, tinha implorado a ti a castidade, dizendo: “Dá-me a castidade e a continência, mas que não seja para já”. Pois temia que me atendesses logo e me curasses imediatamente do mal da concupiscência, que eu achava melhor satisfazer do que extinguir. Eu caminhava assim por maus caminhos, seguindo uma sacrílega superstição, sem dela estar seguro, é verdade, mas preferindo esta às outras doutrinas, que eu combatia ardentemente ao invés de estudá-las com devotamento.” Sto. Agostinho – Confissões VIII 17-18 [N.T.]
[16] Na verdade foi algo bem distante de uma namorada; era uma relação de concubinato que, nos termos da moral cristã a qual Sto. Agostinho fala, seria mera fornicação pré-marital e ocasião de pecado que leva a alma ao inferno. Vejamos o que diz o santo em Confissões VI. 25: “No entanto, multiplicavam-se os meus pecados. Quando de mim foi arrebatada a mulher com quem vivia, considerada impedimento ao meu casamento, meu coração, que lhe era afeiçoadíssimo, ficou profundamente ferido e sangrou por muito tempo. Ela voltou para a África fazendo a ti o voto de jamais pertencer a outro homem e deixando para mim o filho que me havia dado. Mas eu, infeliz, fui incapaz de imitar a esta mulher! Eu não conseguia suportar a espera de dois anos para receber a esposa que tinha pedido. Na realidade eu não amava o matrimônio; eu era, sim, escravo do prazer. E tratei de arranjar outra mulher, não como esposa legítima, para manter e alimentar intacta ou agravar a doença da minha alma até o casamento, e aí chegar sem haver interrompido meus hábitos. No entanto não cicatrizara ainda a ferida aberta pela separação de minha companheira. Mas, após o momento da dor mais pungente, a ferida gangrenava e me fazia sofrer, talvez menos agudamente, porém, com maior desesperança de cura.” [N.T.]
[17] Uma boa resposta pode ser encontrada no Psicoterapia e Existencialismo de Viktor Frankl [p.22-3]: “Obviamente, a liberdade de um ser finito como o homem é uma liberdade limitada. O ser humano não é livre de condicionamentos, sejam eles de natureza biológica, psicológica ou sociológica. Mas ele é, e sempre permanece, livre para tomar uma posição diante de tais condicionamentos; ele sempre conserva sua liberdade para escolher sua atitude perante esses condicionamentos. O homem é livre para elevar-se sobre o plano dos determinantes somáticos e psíquicos de sua existência. Do mesmo modo, abre-se aí uma nova dimensão. O ser humano adentra a dimensão noética, que se distingue dos fenômenos somáticos e psíquicos. Ele se torna capaz de tomar uma posição não só diante do mundo exterior mas diante de si mesmo. O homem é um ser capaz de refletir sobre si próprio e, até mesmo, de rejeitar-se. Ele pode ser seu próprio juiz, o juiz de suas próprias ações. Em suma, os fenômenos especificamente humanos ligados entre si – autoconsciência e consciência – só são compreensíveis na medida em que interpretamos o homem como um ser capaz de distanciar-se de si mesmo, deixando o “plano” do biológico e do psicológico e atravessando o “espaço” do noológico.”
Artigo gentilmente concedido por Voegelinview.com. Original aqui.
Do mesmo autor: O Niilismo Epistêmico Permite Apenas a Força Bruta
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