Por Hans Jonas
Tradução, notas e comentários de Helkein Filosofia
O espírito e o clima de uma era
Nos primórdios da era cristã e progressivamente ao longo dos dois séculos seguintes, o mundo mediterrâneo oriental esteve em profunda efervescência espiritual. A própria gênese do cristianismo e a resposta à sua mensagem são evidências desta efervescência – mas não apenas ela. Quanto ao ambiente no qual o cristianismo se originou, recentemente foram descobertos os Pergaminhos do Mar Morto,[1] acrescentando um poderoso apoio à concepção, antes razoavelmente correta, de que a Palestina presenciava movimentos escatológicos (i.e., salvíficos) e que o surgimento da seita cristã foi tudo menos um caso isolado. A crise espiritual da época encontrou, no pensamento das múltiplas seitas gnósticas que surgiam por toda parte, sua expressão mais ousada e, por assim dizer, também sua representação mais extrema. A abstrusidade de suas especulações, em parte intencionalmente provocativas, não diminui, mas apenas aumenta sua representação simbólica como típica de um período conturbado. Antes de restringirmos nossa investigação especificamente ao fenômeno gnóstico, devemos indicar, brevemente, as principais características que delineiam esse pensamento como um todo.
Em primeiro lugar, todos os fenômenos observados que ligados à “onda oriental” são de natureza eminentemente religiosa; e isto, como repetidamente afirmado, é a característica proeminente da segunda fase da cultura helenística em geral. Em segundo lugar, todas estas correntes têm de alguma forma que ver com a salvação: a religião geral da época é uma religião de salvação. Em terceiro lugar, todas elas exibem uma concepção excessivamente transcendente (i.e., transmundana) de Deus e, em conexão a esta, uma idéia igualmente transcendente e extramunadana do objetivo da salvação.[2] Por fim, elas sustentam um dualismo radical referente aos domínios do ser – Deus e o mundo, espírito e matéria, alma e corpo, luz e escuridão, bem e mal, vida e morte – e, consequentemente, uma polarização extrema da existência afetando não apenas o homem, mas a realidade como um todo: a religião geral da época é uma religião salvífica transcendente e dualista.
O nome gnosticismo
Ao voltar-nos especificamente ao nome gnosticismo, nos perguntamos por seu significado, pela origem do movimento que recebeu esse nome e quais evidências literárias nos legou. O nome “gnosticismo”, que serve de título coletivo para uma miríade de manifestações doutrinais sectárias surgidas dentro e em torno do cristianismo durante seus primeiros – e críticos – séculos, deriva de gnosis, termo grego para “conhecimento”. A ênfase no conhecimento como meio de alcançar a salvação ou mesmo como a própria forma de salvação, e a reivindicação da posse deste conhecimento como dado em uma doutrina articulada são características compartilhadas entre as numerosas seitas em que o movimento gnóstico expressou-se historicamente. Na verdade houve apenas alguns grupos cujos membros intitulavam-se explicitamente como gnósticos, “os sábios”; já Irineu, no título de suas obras, usava o termo “gnose” (com adição “dos falsamente chamados”) para aferir todas aquelas seitas que compartilhassem com eles tais ênfases e certas outras características em comum. Neste sentido podemos falar de escolas, seitas, cultos, escritos, ensinamentos, mitos e especulações gnósticas – e até mesmo de uma religião gnóstica em geral.
Ao seguirmos os passos dos autores antigos que, em primeiro lugar, consideraram o termo para além da autointerpretação de alguns grupos, não somos obrigados a parar no mesmo pondo onde seu conhecimento – ou interesse polêmico – os levou; preferimos, assim, tratar o termo gnosticismo como um conceito classificatório aplicável onde quer que seu definiendum se apresente; assim, a tensão da “área gnóstica” pode ser tida como mais ampla ou estreita a depender do critério empregado. Os Pais da Igreja consideravam o gnosticismo essencialmente como heresia cristã[3] e confinavam suas descrições e refutações a sistemas que já haviam brotado no solo cristão (por exemplo, o sistema valentiniano)[4]ou que de alguma forma houvessem acrescentado ou adaptado a figura de Cristo ao seu ensinamento heterogêneo de uma forma ou outra[5] (por exemplo o dos naassênios frígios) ou, então, através de uma origem judaica comum, estivessem próximos o suficiente para que fossem percebidos como usurpadores e deturpadores da mensagem cristã (por exemplo, Simão o Mago). A pesquisa moderna ampliou progressivamente essa esfera tradicional e reclamou a existência de um gnosticismo pré-cristão de origem judaica e um gnosticismo pagão de origem helenística, dando a conhecer as fontes mandeístas, o mais notório exemplo de gnosticismo oriental fora da órbita helênica – além de muitos outros materiais recentes. Finalmente, caso tomemos como critério não tanto o mote do “conhecimento” como o espírito dualista e anticósmico em geral, o maniqueísmo também deve ser classificado como gnóstico.
A origem do gnosticismo
Prosseguindo na questão acerca de onde ou de que tradição história o gnosticismo se originou, nos deparamos com um antigo centro de especulação histórica: as mais conflituosas teorias perpassaram o tempo e ainda hoje estão entre nós. Os primeiros Pais da Igreja e, independentemente deles, Plotino,[6] enfatizaram principalmente a influência de Platão e de uma mal entendida filosofia helênica num pensamento cristão ainda não firmemente consolidado. Os estudiosos modernos, por sua vez, avançaram em suas origens helênicas, babilônicas, egípcias e iranianas e em todas as suas combinações possíveis, inclusos elementos judeus e cristãos. Pelo material da representação gnóstica ser essencialmente um produto sincrético, cada uma dessas teorias pode ser baseada em fontes primárias e nenhuma delas é satisfatória por si só. Por outro lado a combinação de todas também não serve, o que faria do gnosticismo um mero mosaico de elementos sem essência autônoma. De modo geral, porém, a tese oriental tem alguma vantagem sobre a grega uma vez que o significado do termo “conhecimento” é liberado das associações enganosas sugeridas pela tradição da filosofia clássica. Diz-se que as recentes descobertas coptas no Alto Egito (ver abaixo, seg. e) sublinham a participação de um judaísmo ocultista heterodoxo, embora o julgamento deva ser reservado até que se traduza o vasto material do corpus. De qualquer forma é preciso assumir alguma conexão entre o gnosticismo e os primórdios da Cabala, seja qual for a ordem entre causa e efeito. O preconceito violentamente antijudaico dos mais proeminentes sistemas gnósticos não é por si só incompatível em sua origem, seja qual for a distância, com heresias advindas do judaísmo. Independentemente, porém, de quem foram os primeiros gnósticos e quais foram as principais tradições religiosas que atraíram o movimento e sofreram reinterpretações arbitrárias em suas mãos, o próprio movimento transcendeu as fronteiras étnicas e denominacionais; seu princípio espiritual era novo. A linhagem judaica no gnosticismo é tão pouco judaica ortodoxa quanto a babilônica é a babilônica ortodoxa, a iraniana a ortodoxa iraniana e assim por diante. Referente ao caso da preponderância da influência helênica, muito depende de como o conceito capital de “conhecimento” deve ser entendido neste contexto.
A Natureza do “conhecimento” gnóstico
“Conhecimento” é, por si só, um termo puramente formal e não especifica o que deve ser conhecido; também não especifica o modo psicológico e o significado subjetivo de possuir conhecimento ou sequer suas formas de aquisição. Quanto ao significado de conhecimento, as acepções mais familiares do termo ao leigo mais acostumado apontam para objetos racionais e, de acordo com a razão natural, ao órgão de aquisição e de posse do mesmo. Entretanto, no contexto gnóstico, o termo “conhecimento” possui um significado notoriamente religioso ou supranatural e refere-se a objetos que hoje chamamos antes de objetos de fé que de razão. Embora a questão acerca da relação entre a fé e o conhecimento (pistis e gnosis) tenha se tornado importante na igreja entre a ortodoxia e os hereges gnósticos, ela não era a mesma querela moderna entre fé e razão com a qual estamos acostumados; o “conhecimento” dos gnósticos que contrastava com a fé cristã, para todos os efeitos, não era do tipo racional. Gnosis significava um conhecimento preeminente de Deus e, dado o antedito sobre a transcendência radical da divindade, segue-se que o “conhecimento de Deus” seria o conhecimento de algo naturalmente desconhecido e, portanto, não é, em si mesmo, uma condição natural. Seu objeto inclui todo o pertencente ao reino divino do ser, i.e., a ordem e a história dos mundos superiores [pleroma] e o que deles emana, i.e., a salvação do homem. Com objetos deste tipo o conhecimento enquanto ato mental é muito diferente do conhecimento racional da filosofia.
Por um lado ele está intimamente ligado à experiência reveladora de modo que a recepção da verdade, seja através da sabedoria sagrada e secreta ou iluminação interior, põe novamente a argumentação racional e a teorização (embora esse fundamento extra racional possa, então, dar margem a especulações independentes); por outro, na medida em que preocupa-se com os segredos salvíficos, o “conhecimento” não é apenas informação teorética acerca de certas coisas, mas é, ele mesmo, como uma mutação da condição humana, encarregando-a de desempenhar uma função na realização da salvação. Assim, o “conhecimento” gnóstico tem um aspecto eminentemente prático. O “objeto” último da gnose é Deus: seu acontecimento na alma transforma o próprio conhecedor tornando-o participante da existência divina (o que significa mais do que assimilá-lo à essência divina); assim, nos sistemas mais radicais, como o valentiniano, o “conhecimento” não é apenas um instrumento de salvação mas a própria forma na qual o objetivo da salvação, ou seja, a perfeição última, é possuído. Nesses casos, o conhecimento e a realização do conhecimento pela alma são descritos como coincidentes – a reivindicação de todo verdadeiro misticismo; também é, certamente, a reivindicação da theoria dos gregos, ainda que num sentido diverso. Ali, o objeto do conhecimento é o universal e a relação cognitiva é “ótica”, i.e, um analogon da relação visual com a forma objetiva que não é afetada pela relação; já o “conhecimento” gnóstico é sobre o particular (pois a divindade transcendente ainda é um particular) e a relação do saber é mútua, i.e., um ser ao mesmo tempo conhecido, envolvendo uma autorrevelação ativa por parte do “conhecido”. Ali, a mente é “informada” com as formas que contempla e enquanto as contempla (pensa): aqui, o sujeito é “transformado” (de “alma” para “espírito”) pela união com uma realidade que, na verdade, é ela mesma o sujeito supremo na situação e, estritamente falando, nunca um objeto.[7]
Estas poucas observações prévias são suficientes para que distingamos o “conhecimento” de tipo gnóstico da ideia de teoria racional nos termos em que a filosofia grega desenvolveu o conceito. Contudo, as sugestões do termo “conhecimento”, como tal, reforçadas pelo fato de que o gnosticismo produziu verdadeiros pensadores que desdobraram o conteúdo do “conhecimento” secreto em elaborados sistemas doutrinários e utilizaram conceitos abstratos, muitas vezes com antecedentes filosóficos, em sua exposição, favoreceram uma forte tendência entre teólogos e historiadores de explicar o gnosticismo através do impacto do ideal grego de conhecimento nas novas forças religiosas que vieram à tona naquela época e, mais especialmente, na infância do pensamento cristão. As aspirações teoréticas genuínas reveladas no tipo mais elevado de especulação gnóstica, corroborando como parecia o testemunho dos primeiros Pais da Igreja, levaram Adolf von Harnack à sua famosa formulação de que o gnosticismo era “a helenização aguda do cristianismo”, enquanto que a evolução mais lenta e mais comedida da teologia ortodoxa devia ser considerada como sua “helenização crônica”. A analogia médica não foi para designar a helenização como uma doença; mas o estágio “agudo” que provocava a reação das forças saudáveis no organismo da Igreja era entendido como antecipação precipitada e, portanto, perturbador do mesmo processo que, em sua forma mais cautelosa e menos espetacular, levou à incorporação daqueles aspectos da herança grega dos quais o pensamento cristão pôde realmente se beneficiar. Por mais perspicaz que seja este diagnóstico, como definição de gnosticismo ele fica aquém dos termos que compõem a fórmula “helenização” e “cristianismo”. Ele trata o gnosticismo como um fenômeno exclusivamente cristão, enquanto a pesquisa subsequente estabeleceu um alcance mais amplo; isso dá lugar à aparência helênica da conceituação gnóstica e do próprio conceito de gnosis, o que, de fato, apenas disfarça um pouco a substância espiritual heterogênea. É a originalidade, i.e., sua natureza não derivada desta substância, que derruba todas as tentativas de derivá-la e que referem-se, antes, à casca externa de sua expressão. Sobre a ideia de “conhecimento”, a grande palavra de ordem do movimento, deve ser enfatizado que sua objetivação em sistemas articulados de pensamento relativos a Deus e ao universo foi uma realização autônoma desta substância, e não sua sujeição a um esquema teórico emprestado. A combinação do conceito prático e salvífico do conhecimento com sua satisfação teórica em sistemas quase-racionais de pensamento – racionalização do supranatural – foi típica das formas superiores de gnosticismo e deu origem a uma espécie de especulação antes desconhecida, mas nunca desaparecida do pensamento religioso.
Entretanto, a meia verdade de Harnack reflete um fato que é quase tão integrante do destino da nova sabedoria oriental quanto sua substância original: o fato chamado por Spengler de “pseudomorfose”, ao qual já aludimos anteriormente. Se uma substância cristalina diferente, por acaso, preenche o buraco deixado em uma camada geológica por cristais que se desintegraram, ela é forçada pelo molde a assumir uma forma cristalina não própria que, sem análise química, enganará o observador a tomá-la por um cristal do tipo original. Tal formação é chamada em mineralogia de “pseudomorfose”. Inspirado na intuição que o distinguiu e apesar de ser amador neste campo, Spengler discerniu uma situação semelhante no período em vista e argumentou que o reconhecimento dela deve governar a compreensão de todas as suas afirmações. Segundo ele, o pensamento grego desintegrante é o cristal antigo da símile e o pensamento oriental a nova substância forçada em seu molde. Deixando de lado a visão histórica mais ampla dentro da qual Spengler coloca sua observação, é uma contribuição brilhante para o diagnóstico de uma situação histórica e, caso usada com cuidado, pode ajudar muito a nossa compreensão.
Resumo das principais tendências gnósticas
Teologia
A característica capital do pensamento gnóstico consiste no dualismo radical que rege a relação entre Deus e o mundo e, por conseguinte, àquela entre o homem e o mundo. A divindade é absolutamente transmundana e sua natureza é estranha a um universo que não foi criado e nem é governado por ela, sendo assim sua antítese: trata-se do cosmo como reino das trevas oposto a um comedido e remoto reino divino da luz. O mundo é trabalho de poderes inferiores que, embora possam ser mediatamente descendentes d’Ele, não conhecem o verdadeiro Deus e obstruem seu conhecimento no cosmo que governam. [8]A gênese desses poderes inferiores, os arcontes (governantes), e em geral a de todas as ordens do ser alheias a Deus, incluindo o próprio mundo, é o tema principal da especulação gnóstica – daremos exemplos mais adiante. O próprio Deus transcendente está escondido de todas as criaturas e é incognoscível por conceitos naturais. O conhecimento d´Ele requer revelação[9] e iluminação supranatural e, mesmo assim, dificilmente pode ser expresso de outra forma que não seja em termos negativos.
Cosmologia
O universo, enquanto domínio dos Arcontes, é como uma vasta prisão cuja masmorra mais interna é a terra, o cenário da vida humana. Ao redor e acima dela as esferas cósmicas estão dispostas como conchas concêntricas que a encerram. Frequentemente adicionam-se mais sete esferas que correspondem aos planetas e mais uma oitava que corresponde às estrelas físicas. Havia, porém, uma tendência de multiplicar as estruturas e tornar o esquema cada vez mais extenso: Basílides contava nada menos do que 365 “céus”. O significado religioso desta arquitetura cósmica reside na ideia de que tudo o que intervém entre o aqui e o além serve para separar o homem de Deus; não apenas pela distância espacial, mas através de forças demoníacas ativas. Assim, a vastidão e a multiplicidade do sistema cósmico expressam os extratos que removem o homem de Deus.
As esferas são os assentos dos arcontes, especialmente dos “Sete”, ou seja, dos deuses planetários emprestados do panteão babilônico. É notório que estes são agora frequentemente chamados por nomes advindos Antigo Testamento para Deus (Iao, Sabaoth, Adonai, Elohim, El Shaddai) que, antes sinônimos para o Deus único e supremo, são agora transpostos e transformados em nomes próprios de seres demoníacos inferiores – um exemplo da revalorização pejorativa a que o gnosticismo submeteu as tradições antigas em geral e, em especial, a tradição judaica.[10] Os arcontes governam o mundo coletivamente e cada um deles é guardião de uma esfera ou prisão cósmica; sua tirânica lei cósmica é chamada heimarmene, destino universal, um conceito tomado da astrologia, mas agora tingido pelo espírito acósmico típico dos gnósticos. Referente a seu aspecto físico, a regra se expressa enquanto lei da natureza; referente a seu aspecto psíquico, que inclui, por exemplo, a instituição e a aplicação da Lei Mosaica, ela visa a escravização do homem. Enquanto guardião de sua esfera, cada Arconte proíbe passagem às almas que procuram ascender após a morte, a fim de impedir sua fuga do mundo e seu retorno a Deus. Os Arcontes são ainda os criadores do mundo, exceto onde o papel for reservado a seu líder, que recebe o nome de demiurgo (o artífice do mundo do Timeu de Platão) e é frequentemente pintado com características distorcidas do Deus do Antigo Testamento.
Antropologia
O homem, principal objeto de tão vastas disposições, é composto de carne, alma e espírito. Caso o reduzamos a princípios últimos, sua origem é dúplice: mundana e extra-mundana. Não apenas o corpo, mas também a “alma” é produto dos poderes cósmicos que moldaram o homem à imagem do homem primordial e divino (ou arquetípico), e então o animou com seus próprios poderes psíquicos: estes são os apetites e paixões naturais do homem, cada um correspondendo a uma esfera cósmica e compondo, assim, a alma astral do homem, sua “psique”. Através de seu corpo e de sua alma, o homem é parte do mundo e submisso à heimarmene. Enclausurado na alma está o espírito ou “pneuma” (chamado também de “faísca”), uma porção da substância divina abscondita que caiu no mundo; o homem foi criado pelos Arcontes com a intenção de prendê-lo [o espírito] ali. Da mesma forma que quanto ao macrocosmo o homem é encerrado por sete esferas, no microcosmo o pneuma é encerrado pelas sete almas-vestimentas que emanam dele. Em seu estado decaído, o pneuma imerso na alma e na carne está inconsciente de si mesmo, desmaiado, adormecido ou intoxicado pelo veneno do mundo: em suma, ele é “ignorante”. Sua liberdade e seu despertar é realizado através do “conhecimento”.[11]
Escatologia
A natureza do dualismo radical determina o tipo de doutrina acerca da salvação. O “eu pneumático” é tão estranho a esse mundo quanto o Deus transcendente. O objetivo do esforço gnóstico é a libertação do “homem interior” dos laços do mundo e seu retorno ao reino da luz. A condição necessária para isso é que ele conheça o Deus transmundano e a si mesmo, ou seja, sobre sua origem divina, bem como sobre sua situação atual e, portanto, também sobre a natureza do mundo que determina esta situação. Como diz uma famosa fórmula valentiniana:
[…] que liberta é o conhecimento de quem fomos, e do que nos tornamos; de onde estávamos e para onde fomos lançados; de para onde corremos e onde somos redimidos; do que é o nascimento e do que é o renascimento.
(Exc. Theod. 78. 2)
Este conhecimento, entretanto, lhe é negado devido à sua própria condição, uma vez que a “ignorância” é a essência da existência mundana assim como o foi no princípio da existência do mundo. O Deus transcendente é especialmente desconhecido no mundo e não pode ser descoberto a partir dele; portanto, faz-se necessária uma revelação.[12] Sua necessidade fundamenta-se na natureza da situação do cosmos e sua ocorrência altera a situação em seu aspecto fundamental, a saber, o da “ignorância”, e, portanto, ela mesma é parte da salvação.[13] Seu portador é um mensageiro do mundo da luz que penetra nas barreiras das esferas, ultrapassa os arcontes, desperta o pneuma de seu sono terreno e lhe transmite o conhecimento salvador “de fora”. A missão deste salvador transcendente começa mesmo antes da criação do mundo (desde a queda do elemento divino que precedeu a criação) e corre paralelamente à sua história. O conhecimento assim revelado, ainda que chamado simplesmente “o conhecimento de Deus”, compreende todo o conteúdo do mito gnóstico, com tudo o que tem a ensinar sobre Deus, sobre o homem e sobre o mundo; ou seja, contém os elementos de um sistema teórico.
Do lado prático, porém, consiste especialmente de “conhecimento do caminho”, ou seja, da saída da alma do mundo, compreendendo os preparativos sacramentais e mágicos para sua futura ascensão e os nomes e fórmulas secretas que forçarão sua passagem através de cada uma das esferas. Equipada com esta gnosis, a alma poderá, após a morte, viajar para cima, deixando para trás, a cada esfera, parte de sua “vestimenta” psíquica a ela atribuída: assim, o pneuma despojado de todos os seus acréscimos estranhos alcançará o Deus transcendente e se reencontrará com a substância divina.[14] No nível do drama divino como um todo, este processo faz parte da restauração da própria totalidade da divindade que, em tempos pré-cósmicos, foi prejudicada pela perda de porções de sua substância divina. Foi somente através delas que a divindade se envolveu no destino do mundo e é para recuperá-las que seu mensageiro intervém na história cósmica. Com a conclusão deste processo de reunião (de acordo com alguns sistemas), o cosmo, privado de seus elementos divinos, chegará ao fim.
Moralidade
Nesta vida, os pneumáticos, que é o modo como os possuidores da gnosis se autoproclamavam, estavam além da grande massa da humanidade A iluminação imediata não apenas torna o indivíduo soberano na esfera do conhecimento (daí a ilimitada variedade de doutrinas gnósticas), mas também determina sua esfera de ação. De modo geral, a moralidade pneumática é determinada pela hostilidade para com o mundo e pelo desprezo por todos os laços mundanos. A partir desse princípio podem ser inferidas duas conclusões contrárias e ambas encontraram representantes extremistas: o ascético e o libertino. A primeira deduz da posse da gnosis a obrigação de evitar ser mais contaminado pelo mundo e, portanto, de reduzir ao mínimo o contato com ele; a segunda deriva da mesma posse o privilégio da liberdade absoluta. Trataremos mais tarde da complexa teoria do libertinagem gnóstica. Para esta descrição preliminar, tais observações devem ser suficientes. A lei de “Tu deverás” e “Tu não deverás” promulgada pelo Criador é apenas mais uma forma da tirania “cósmica”. [15] As sanções ligadas à suas transgressões podem afetar apenas o corpo e a psique; dado que o pneumático está livre do heimarmene, também está livre do jugo da lei moral: para ele todas as coisas são permitidas pois o pneumático é “salvo em sua natureza” e não pode ser manchado por ações nem amedrontado pela ameaça de retaliação arcaica. A liberdade pneumática, entretanto, é uma questão de mais do que mera permissão indiferente: através da violação intencional das normas demiúrgicas o pneumático frustra o plano dos Arcontes e paradoxalmente contribui para o progresso da salvação. Essa libertinagem antinômica expressa com mais força o elemento niilista contido na acosmia[16] gnóstica do que sua contraparte ascética.[17]
Mesmo o leigo do assunto perceberá, a partir do resumo dado, que, por maior que sejam as alturas conceituais que a teorização gnóstica atinja em pensadores individuais, existe um núcleo mitológico indissolúvel no pensamento gnóstico enquanto tal. Longe da atmosfera rarefeita do raciocínio filosófico, ele se move no núcleo mais denso do imaginário e da personificação. Nos capítulos seguintes teremos que preencher a estrutura de nossa descrição geral com a substância da metáfora e do mito gnóstico e, por outro lado, apresentar algumas das elaborações deste conteúdo básico em sistemas especulativos de pensamento.
Apêndice – Breve Resumo Doutrinal do Gnosticismo Histórico por Pe. João Batista Lourenço Insuelas
Elenco aqui um trecho do Curso de Patrologia em que o Pe. João dá um breve resumo de doutrinas gnósticas que pode auxiliar o interessado no tema.
“Partindo, evidentemente, do monoteísmo judeu, os gnósticos procuravam formar uma ideia muito elevada de Deus, uno e único, separando-o completamente das criaturas. Deus é o eterno silêncio, e o insondável abismo![18] São monoteístas e unitários. Para eles não há Trindade.
Além de Deus, existe a matéria da qual provêm todas as coisas. A matéria foi organizada pelo demiurgo, ou demiurgos. A matéria é eterna e emanada. Tanto uma como outra é má e a raiz de todo o mal. Em virtude disto, Deus, infinitamente puro e santo, não pode ser o seu autor e nem sequer estabelecer com ela qualquer contato. Em vista desta impossibilidade, viram-se forçados a admitir, não sem dificuldade, a existência de uma série de seres intermediários entre Deus e a matéria, diversamente organizados, conforme a fantasia dos autores, a que chamam eons, eternos. O último destes eons, o demiurgo, ou um servo do espírito das trevas, é o autor deste mundo material mau e do próprio homem, também mau. O homem é formado de matéria e de luz, mas esta não se encontra em todos os homens por igual.
Nuns, a luz predomina sobre a matéria e chamam-se pneumáticos, gnósticos. Noutros, a matéria e a luz estão em perfeito equilíbrio e chamam-se psíquicos; são os cristãos. E noutros, a matéria predomina, sensivelmente, sobre a luz, são os hílicos, os materiais; são os pagãos.[19] A humanidade fica assim dividida em três classes, notavelmente desiguais. Não admitem a criação ex nihilo. Rejeitam a obra dos seis dias de Moisés. O homem é estruturalmente mau.
Ora se a matéria é essencialmente má e a causa de todo o mal, segue-se: a) a impossibilidade da encarnação, porque Jesus Cristo não podia ter corpo e o que apresentava era simplesmente aparente: (docetas); b) a impossibilidade da ressurreição da carne; c) a impossibilidade da redenção pela paixão do Salvador. Admitem que a redenção é obra do Deus Supremo e consiste na libertação das partes luminosas retidas no cativeiro da matéria; d) completa inutilidade das boas obras para a salvação por serem praticadas com a cooperação do corpo, mas a verdadeira gnose, que é altíssima ciência, basta para obter a salvação; e) o matrimônio é mal visto ou proscrito; f) umas vezes defendem um ascetismo rigoroso e desumano, para submeter a carne ao espírito; outras favorecem excessivamente a imoralidade e o sensualismo, declarando o espírito irresponsável pelos excessos da carne má.[20]
A tendência gnóstica era antiga: já existia antes de Cristo e, um pouco, nas diversas religiões. A sua organização, junto da religião cristã, é atribuída a Simão Mago, contemporâneo e discípulo dos Apóstolos, homem culto e conhecedor da magia, donde lhe vem o nome.”
A Presente tradução contempla trechos do tópico 2 da parte 1 do, ainda sem tradução para o português, Gnostic Religion, de Hans Jonas.
Bibliografia recomendada:
- Eric Voegelin – História das Idéias Políticas Volume VIII
- Eric Voegelin – The Collected Works of Eric Voegelin Vol. 05
- Fabrice Hadjadj – A Fé dos Demônios
- Irineu de Lyon – Contra as Heresia
- James H. Billington – A Fé Revolucionária: Sua Origem e História
- Mircea Eliade – História das Crenças e das Ideias Religiosas vol.II
- Orlando Fedeli – Antropoteísmo
- Pe. João Batista Lourenço Insuelas – Curso de Patrologia
- Plotino – Enéadas: Segunda Enéada
- Sto. Afonso de Ligório – História das Heresias e suas Refutações
[1] Porção de manuscritos encontrados durante a década de 40 em Qumran, um sítio arqueológico na Cisjordânia. Contém trechos da Bíblia Hebraica, alguns apócrifos e escritos específicos da seita dos essênios. [N.T.]
[2] Trata-se do símbolo do Deus Absconditus, totalmente outro, inacessível; uma divindade que não pode ser entendida nem mesmo como “sendo” (daí por vezes é dita como ‘nada’ ou ‘não-ser’) e, em verdade, se dá como inacessível ao homem. No limite, o deus absconditus dos gnósticos equivale à divindade hipotética do agnosticismo na medida em que não pode ser captada pela razão humana nem que tomemos como caminho a teologia negativa ou sua dedução a partir das coisas. No pensamento moderno, que tende a ter Deus como abscôndito, tal divindade tende a sumir segundo o seguinte raciocínio: o que não é accessível de nenhum modo para nós é nulo; logo não faz diferença se há ou não um deus. Sendo assim, negando-se uma revelação, tal concepção culmina sempre num ateísmo ao menos prático. Tal pensamento comumente toma a via irracionalista, a saber, tomando como via para o divino “sentimentos”, “intuições” e diversas outras formas que “driblem” a razão natural – o que de certa forma pressuporia uma divindade não tão oculta assim; mas, daqui, podemos perceber a variedade de formas tomadas pelos desvios de inspiração gnóstica. [N.T.]
[3] Uma boa lista delas é elencada por Sto. Afonso em seu História das Heresias e suas Refutações. [N.T.]
[4] Atacado, por exemplo, por Irineu de Lyon em Contra as Heresias 11,1 [N.T.]
[5] Encontramos adaptações análogas durante o período iluminista, por exemplo, em D´Alambert: “Esta atitude algo vaga de 1751 se cristalizou, no D’Alembert dos anos posteriores, em ideias mais precisas. Numa carta a Frederico II (de 20 de novembro de 1770), D’Alembert escreveu que “christianisme” foi originalmente um deísmo puro, e Jesus, “um tipo de filósofo”. Jesus odiava perseguição e sacerdotes, ensinou boa vontade e justiça, e reduziu a lei ao amor ao próximo e à adoração de Deus. Esta religião simples foi mudada por São Paulo, pelos padres e pelos concílios. “Far-se-ia um grande serviço à humanidade se se pudesse fazer que os homens esquecessem os dogmas; se simplesmente se pregasse aos homens um Deus que recompensa e pune e que se zanga com superstição, que detesta a intolerância e não espera outro culto do homem senão do amor mútuo e solidariedade.”’ O rei não ficou muito convencido da ideia de D’Alembert; pensava que as pessoas gostariam de algo mais do que uma religião meramente razoável. D’Alembert respondeu (carta de 10 de fevereiro de 1771) que ele pediria ao rei, se o Tratado de Vestfália permitisse uma quarta religião no império, que erigisse “um templo muito simples” em Berlim ou Potsdam “onde Deus seria honrado de uma maneira digna dele, onde nada seria pregado senão a humanidade e a justiça.” Se as massas não se reunissem, numerosas, neste templo em alguns anos, apenas então ele reconheceria que o rei estava certo.” Eric Voegelin – História das Idéias Políticas Volume VIII p.117 [N.T.]
[6] (Enéadas II:IX) [N.T.]
[7] O esoterismo moderno possui um processo análogo que chama de “aquisição de estados supraindividuais”. [N.T.]
[8] Por exemplo, na gnose de Valentiniano: “Segundo Valentino, o Pai, primeiro princípio absoluto e transcendente, é invisível e incompreensível. Une-se à sua companheira, o pensamento (Énnoia), e gera os 15 pares de eões que, juntos, constituem o Pleroma. O último dos eões, sophia, obcecado pelo desejo de conhecer o Pai, provoca uma crise em consequência da qual se instalam o mal e as paixões. Precipitadas do Pleroma, sophia e as criações aberrantes que ela havia ocasionado produzem uma sabedoria inferior. No alto, cria-se um novo par, Cristo e seu parceiro feminino, o Espírito Santo. Finalmente, restaurado em sua perfeição inicial, o Pleroma gera o salvador, conhecido também como Jesus. Ao descer às regiões inferiores, o salvador compõe a ‘matéria invisível’ com os elementos hílicos (materiais) provenientes da sabedoria inferior, e, com os elementos psíquicos, forma o demiurgo, isto é, o Deus do Gênese. Este último ignora a existência de um mundo superior e considera-se o único Deus. Cria o mundo material e compõe, animando-as com seu sopro, duas categorias de homens, os ‘hílicos’ e os ‘psíquicos’. Mas os elementos espirituais, oriundos da sophia superior, introduzem-se, sem saber, no sopro do demiurgo e dão origem à classe dos ‘pneumáticos’. A fim de salvar essas partículas espirituais presas na matéria, Cristo desce à Terra e, sem encarnar-se no sentido próprio do termo, revela o conhecimento libertador. Desse modo, despertados pela gnose, os pneumáticos, e somente eles, tornam a subir em direção ao Pai.” História das Crenças e das Ideias Religiosas vol.II p.328-329 [N.T.]
[9] Algumas dessas “revelações” são muito curiosas, como a revelação dos Elkassaítas descrita pelo Pe. João Batista Lourenço Insuelas em seu Curso de Patrologia (p.72): “Consideraram a sua doutrina como revelada, no ano 100, por um anjo gigantesco, chamado Filho de Deus, tendo ao seu lado uma esposa de dimensões análogas, o Espírito Santo. Um batismo estranho, acompanhado de fórmulas mágicas e de encantações bizarras, dava entrada na seita.” [N.T.]
[10] O gnosticismo moderno comete os mesmos atos; podemos reconhecê-lo facilmente sob o nome de “Nova Era”, “omnismo” e outras formas de sincretismo que procuram, por quaisquer rodeios, forçar certa conciliação de vários credos. A forma mais comum de encontrar tal tentativa é em discursos que apoiem certo “fundamento transcendente comum” que, dado sua natureza, é interpretado de forma diversa por vários credos; tal fundamento transcendente é, de toda forma, o deus absconditus, abismo ou silêncio afirmado pelo gnosticismo antigo. [N.T.]
[11] Como comenta Eliade: “Na literatura gnóstica, a ignorância e o sono são igualmente expressos em termos de “embriaguez”. O Evangelho de verdade compara aquele “que possui a gnose” com “uma pessoa que, depois de estar ébria, fica sóbria e, ao voltar a si, reafirma o que é essencialmente seu”. O “despertar” implica a anamnese, a redescoberta da verdadeira identidade da alma, isto é, o reconhecimento de sua origem celeste. “Desperta, ó alma de esplendor, do sono de embriaguez em que caíste”, está escrito num texto maniqueísta. “Segue-me ao sítio glorioso onde residias no princípio.” Na tradição mandeia, o mensageiro celeste dirige-se a Adão, depois de havê-lo despertado de seu sono profundo: “Não cochiles mais, nem durmas, não te esqueças daquilo de que te incumbiu o Senhor.” No fim das contas, a maior parte dessas imagens – a ignorância, a amnésia, a prisão, o sono, a embriaguez – torna-se, na pregação gnóstica, metáfora para assinalar a morte espiritual. A gnose outorga a verdadeira vida, isto é, a redenção e a imortalidade.” [N.T.]
[12] Essa característica, a saber, o “ocultamento” de Deus ao homem no sentido de certa impossibilidade de postulá-lo é algo que ressurge na filosofia moderna. [N.T.]
[13] Fabrice Hadjadj vê certa influência gnóstica adentrar o cristianismo através de fontes como as estoicas: “Não se afirma a fé dos demônios sem pesadas consequências sobre nossa aproximação do mal moral. Daqui para a frente está proibida toda concepção gnóstica da redenção, assim como toda redução carnal do pecado. Por concepção gnóstica da redenção, entendo a ideia de que o conhecimento especulativo ou o autodomínio técnico seriam suficientes para salvar-se, o que sempre levaria a reduzir o pecado à ignorância ou à fraqueza, isto é, à nossa condição carnal — a carne sendo, ao mesmo tempo, o que esconde e o que atrapalha. Essa visão das coisas contamina o pensamento cristão através do estoicismo, sem dúvida, ainda tão caro a Pascal dos Entretiens avec M. de Sacy. Epíteto aqui enuncia: “Quando alguém te faz mal, é ele que se engana”; e escreve noutro lugar: “Não há senão uma única rota que conduz a ser um homem livre: é desprezar tudo o que não depende de nós”. Ser dono de si e não se deixar submergir pelas paixões da carne e as representações errôneas do espírito, tal seria o único caminho da salvação. Ora, o demônio não tem nem paixão que desviasse sua vontade nem representação que falsificasse sua inteligência. Ele é perfeitamente dono de si. Ele não buscou algo mais, só buscou aquilo que depende dele. Sua cidadela interior é tão inexpugnável que o próprio Deus não poderia mais entrar nela.” – A Fé dos Demônios p.177 [N.T.]
[14] Eric Voegelin, em seu Science, Politics and Gnosticism (CW5 P.255), nota semelhanças entre a estrutura simbólica do gnosticismo histórico e o pensamento moderno que por um tempo chamou de “gnosticismo moderno”: “The great speculative mythopoems of Gnosticism revolve around the questions of origin, the condition of having-been-flung, escape from the world, and the means of deliverance. In the quoted texts the reader will have recognized Hegel’s alienated spirit and Heidegger’s flungness [Geworfenheit] of human existence. This similarity in symbolic expression results from a homogeneity in experience of the world. And the homogeneity goes beyond the experience of the world to the image of man and salvation with which both the modern and the ancient Gnostics respond to the condition of “flungness” in the alien world. If man is to be delivered from the world, the possibility of deliverance must first be established in the order of being. ln the ontology of ancient Gnosticism this is accomplished through faith in the “alien” “hidden” God who comes to man’s aid sends him his messengers, and shows him the way out of the prison of the evil God of this world (be he Zeus or Yahweh or one of the other ancient father-gods). In modern Gnosticism it is accomplished through the assumption of an absolute spirit that in the dialectical unfolding of consciousness proceeds from alienation to consciousness of itself; or through the assumption of a dialectical-material process of nature that in its course leads from the alienation resulting from private property and belief in God to the freedom of a fully human existence; or through the assumption of a will of nature that transforms man into superman.” É muito curioso observar como o simbolismo utilizado para falar de uma divindade absolutamente transcendente no gnosticismo antigo é transmutado e utilizado para falar de uma divindade absolutamente imanente que, a depender do pensador em questão, identificar-se- à com o próprio homem: no gnosticismo antigo o pneumático ascendia à Deus para fundir-se com ele e no gnosticismo moderno Deus funde-se ao homem na medida em que é tomado como projeção deste. [N.T.]
[15]Por exemplo, como comenta Eliade: “Sendo o mundo o resultado de um acidente ou de uma catástrofe, e estando dominado pela ignorância e regido pelas forças do mal, o gnóstico se vê completamente alienado de sua cultura e rejeita-lhe todas as normas e instituições. A liberdade interior obtida pela gnose permite-lhe dispor livremente de si próprio e proceder de acordo com sua vontade. O gnóstico faz parte de uma elite, resultado de uma seleção decidida pelo Espírito. Pertence à classe dos pneumáticos ou dos “espirituais” – os perfeitos, os “filhos do rei’ –, os únicos que serão salvos. Tais como os rishis, os sannyasi e os iogues, o gnóstico sente-se liberto das leis que governam a sociedade: situa-se para além do bem e do mal. E, prosseguindo na comparação com os fatos indianos, as técnicas sexuais e aos rituais orgiásticos das escolas tântricas da “mão esquerda” (c.f. vIII cap.XXXVIII) correspondem a orgias das seitas gnósticas libertinas (em primeiro lugar, os fabionistas).” – História das Crenças e das Ideias Religiosas vol.II p.325-326 [N.T.]
[16] Orlando Fedeli vê na acosmia gnóstica a ponte que ligará o gnosticismo antigo às duas formas modernas: “A Gnose apresenta-se como anticósmica, mas, apesar disso, é fundamentalmente naturalista, no sentido de que afirma a capacidade natural do homem de alcançar o êxtase e a divinização, negando, pois, qualquer distinção, no fundo, entre a ordem sobrenatural e a ordem natural. São esses naturalismos e racionalismos absolutos que permitem fazer a ponte entre a Gnose, anticósmica e antirracional, e o Panteísmo, racionalista e naturalista. Por outro lado, o Panteísmo cientificista, em seu afã de explicar de modo absoluto o universo material, afirma que a própria matéria é, no fundo, espírito e, por fim, chega a negar a própria realidade material. É essa ponte criteriológica entre Panteísmo e Gnose que permite compreender como do materialismo comunista dos “enragés” nasceu o culto religioso da deusa Razão, durante a Revolução Francesa, ou, então, como do cientificismo racionalista do século XIX foi gerada a religião positivista de Comte.” Orlando Fedeli – Antropoteísmo p.83 [N.T.]
[17] Tal expressão encontrou análogos entre grupos de revolucionários franceses, como podemos encontrar em A Fé Revolucionária [p.60]: “A verdade parece estar em que os cafés ofereciam não só um lugar seguro para encontros políticos, mas também o clima inebriante de uma utopia terrena. Distinções de status inexistiam, e os homens eram livres para exercer liberdade sexual, bem como política.”
[18] Essa concepção de Deus foi muito popular durante o renascimento e, curiosamente, aparece constantemente em autores do idealismo alemão, como Schelling. [N.T.]
[19] Tal divisão “por casta”, com certa “elite iluminada” e uma “massa mundana”, ou ao menos um corpo maior de pessoas que não podem compreender a “gnosis dos pneumáticos”, sobreviveu tanto no esoterismo moderno quanto nas ideologias políticas em geral. O “pneumático” fica como o único que pode compreender o conteúdo da gnose enquanto o “psíquico” pode compreender apenas sua “forma”; por outro lado, comumente o “pneumático” permanecerá oculto sob a “forma” de psíquico em nome da “ordem das coisas”. [N.T.]
[20] Pode-se entender a recente moda antinatalista como uma espécie de gnose moderna na medida em que seus defensores comumente defendem a maldade do mundo e da matéria (por isso ter filhos é imoral) e a ausência de um deus bom e criador (dado que um deus bom não criaria um mundo mau). Aqueles que defendem suas próprias imoralidades ao citar que “Para os puros todas as coisas são puras. Para os corruptos e descrentes nada é puro: até sua mente e consciência são corrompidas” (Tito 1:15) estão, para além de deturpar a Escritura, cumprindo, essencialmente, o apontamento. [N.T.]
Posts Relacionados
-
Disputas Metafísicas
Sobre a Natureza da Filosofia Primeira ou Metafísica Por Francisco Suárez S.J. Tradução,…
-
Niilismo, Ética e o Dilema do Bonde
Por Richard Cocks Tradução de Tibério Cláudio de Freitas Notas e comentários de Helkein Filosofia…
-
O Status Metafísico da Preferência
Em Defesa do Livre Arbítrio Por Richard Cocks Tradução, Notas e Comentários de Helkein…