Por Edward Feser
Tradução de Helkein Filosofia
O cotidiano nos revela um mundo onde há mesas, cadeiras, pedras, árvores, cães, gatos, maçãs e laranjas; nisto, o senso comum considera tais entidades como paradigmas de matéria: o “material” ou físico é, para o homem comum, o visível, o audível, o palatável, o sensível e o olfativo. Os objetos mencionados — diversos em cor, sabor, odor, etc. — são, portanto, exemplos óbvios. As pessoas também vêem as coisas como compostas de partes que, por sua vez, possuem seus próprios componentes — pensadas como exemplos de elementos do mesmo tipo daqueles mencionados, i.e., dotados de tamanho, forma, cor, localização, movimento e assim por diante (e não feito entes independentes em seu próprio direito). Embora lhes ocorra que tais partes sejam invisíveis a olho nu — ou inaudíveis sem instrumentos de amplificação, etc. —, a tendência natural é pensá-las análogas a algo visível.
O homem comum também infere, na mesma clave, a existência de um universo maior do que o cotidiano; já ouviu falar de planetas, sistemas solares, galáxias, aglomerados e objetos distantes, qual buracos negros, ou eventos longínquos, como o Big Bang. Permanece, no entanto, a tendência de modelá-los conforme o familiar e, assim, pensar o universo e seus objetos à luz das coisas circundantes, mas maiores. Quando conceitua-se o grande e o pequeno, o faz por analogia com o que houver de mais próximo.
O senso comum considera, ainda, os objetos familiares enquanto continentes de uma natureza que os distingue nitidamente uns dos outros e lhes proporciona certa estabilidade ao longo do tempo: a pedra é uma coisa diferente da madeira e o cachorro difere do pássaro. Tais diferenças manifestam-se em certos fatos: a madeira queima quando lhe tocamos um fósforo aceso, mas a pedra, não; os pássaros constroem ninhos e caçam minhocas, mas os cães, não. As discrepâncias persistem, ainda, em características superficiais: podemos mudar a cor de uma pedra pintando-a, mas isto não a tornará menos pedra desde que ela mantenha suas características específicas. Um cão começa filhote, se torna num cachorro vigoroso e termina grisalho e letárgico, mas, ainda assim, abanará o rabo na hora do jantar e correrá atrás de uma bola de maneira impossível a um pássaro. Também associamos a natureza das coisas a propósitos distintos, permeados pelo mundo; os pássaros objetivam, por sua natureza, construir ninhos e encontrar vermes para alimentar seus filhotes; os olhos servem para ver e as pernas para andar; as raízes das plantas buscam água, e por aí vai.
Expomos o dito pelo senso comum; mas ele está correto? E como se relaciona com os ditames da ciência moderna? Tais questões possuem algum interesse para além do acadêmico? Os filósofos defenderam várias posições, mas destacaremos, devido à sua relevância, apenas três delas. A primeira é a opinião de filósofos feito Aristóteles e Tomás de Aquino, onde é afirmado que o senso comum é correto, embora carente de correções e rearticulações. Ela também é conhecida como hilemorfismo e recebe uma defesa curiosa por Robert C. Koon em seu Is St. Thomas’s Aristotelian Philosophy of Nature Obsolete?
Atomismo e Monismo
A tese hilemórfica pode ser explicada mediante contraste com outras duas concepções. A primeira é o atomismo, desenvolvida, inicialmente, por filósofos antigos feito Leucipo e Demócrito, e revivida sob várias formas pelos primeiros pensadores modernos associados à revolução científica (tal Galileu e Robert Boyle, cujas variantes podem ser englobadas no chamado “corpuscularismo”). O atomismo concebe o mundo material enquanto composto de partículas inobserváveis radicalmente diferentes dos objetos do senso comum: são incolores, insonoras, inodoras, insípidas e não podem ser quentes ou frias; tudo isto fica posto sob o nome de “qualidades secundárias” e não existem, como suposto pela experiência cotidiana, “materialmente”. Em vez disso, ao experimentarmos coisas físicas, lhes projetamos certas qualidades e, daí, supomos perceber algo real (do mesmo modo alguém olhando o mundo através de lentes rosadas pode supor, erroneamente, que o rosado reside no mundo e não nos óculos).
Não há, no atomismo, uma distinção nítida e real entre as pedras, a madeira, os cachorros, os pássaros e quaisquer outras coisas materiais, pois são, no fundo, todas as mesmas, i.e., conjuntos de partículas incolores, inodoras, etc. A diferença entre as entidades é de grau, não de espécie, e refere-se à organização de seus componentes. Ocorre, assim como com dois castelos de areia de formas diferentes, que a distinção entre as coisas materiais é meramente superficial.
Tampouco há propósito genuíno [teleologia] na natureza. Conjuntos de partículas interagem uns com os outros e, quando resultam em padrões suficientemente complexos (cujo exemplo são os seres vivos), comportam-se como se propositadamente — mas, na verdade, não o fazem, pois a cor, o odor e outros qualia são projeções em vez de realidades independentes de nossa mente. Para o atomismo, o senso comum se equivoca profundamente ao tratar da verdadeira natureza do mundo material.
Este também é o juízo da segunda posição filosófica, o monismo, defendido inicialmente por filósofos antigos, feito Parmênides e Heráclito. Sua posição enuncia que a variedade de objetos materiais distintos revelada pelo senso comum é, na verdade, ilusória; existe apenas uma coisa: o universo como um todo. Nisto, a cor, o tamanho, a forma e o peso de uma pedra são seus modos e não uma entidade em si mesma. O monismo considera que todas as entidades são modos de apenas uma, o universo. Presume-se que a física de partículas justifique as teses centrais do monismo, e a relatividade geral einsteiniana é, por vezes, considerada tributária de uma versão do monismo enquanto interpretada de forma que implique um universo feito um bloco único e quadridimensional — sendo o tempo a dimensão adicionada às três dimensões espaciais. Como argumentado por Koons, se qualquer destas afirmações fosse correta, as implicações filosóficas, teológicas e éticas seriam profundas e terríveis, inclusive para a própria ciência.
Se o atomismo e o monismo fossem verdadeiros, a realidade não seria da forma como nos aparece; os objetos de médio alcance seriam irreais, meros conjuntos de partículas, ou o universo seria como uma grande massa. Uma implicação direta é a inexistência tanto da natureza quanto do propósito que consideramos intrínsecos às coisas e a nós mesmos; e se não houver uma natureza distintamente humana, não há fundamento para uma moralidade — como o jusnaturalismo ético considera haver. As implicações teológicas, segundo Koons, são que na doutrina católica não haveria natureza de pão ou vinho que, na transubstanciação, seria transformada no corpo e no sangue de Cristo na missa.
Os céticos aceitariam, claramente e de bom grado, tais conclusões, endossando-as enquanto resultados científicos. Mas, ressalta Koons, a ciência mesma também é prejudicada, pois não haveria natureza ou propósito algum nos órgãos dos sentidos e, então, não teríamos razão para crer que o mundo como nos aparece corresponde ao realmente existente — e, neste caso, todas as evidências experimentais caras às ciências seriam tão ilusórias quanto o resto.
Hilemorfismo
Por outro lado, o hilemorfismo sustenta que o aspecto da realidade apresentado por nossa experiência sensível corresponde, mais ou menos, ao realmente existente, e inclui os objetos (e não as partículas ou o universo) como partes do mundo real. O termo “hilemorfismo”, derivado das palavras gregas para matéria [hyle] e forma [morphé], refere-se à idéia de as entidades físicas serem compostas de matéria e forma. A matéria, em si mesma, é indeterminada e apenas potencialmente determinável, enquanto a forma, por sua vez, é uma essência — ou natureza — exemplificável em vários elementos de um mesmo tipo (qual a forma das pedras, das árvores, dos cachorros ou dos homens). A forma atualiza a matéria em potência para tornar-se algo determinado – esta pedra em particular, ou cachorro, ou o que for.
No hilemorfismo, os componentes de uma coisa importam menos que seu todo – e, de fato, o todo contém partes apenas potencialmente independentes e não como entidades reais em pleno direito. O hidrogênio e o oxigênio, por exemplo, não existem na água senão enquanto seus constituintes — e não em si mesmos —, possuindo apenas uma existência potencialmente independente (atualizada, por exemplo, pela eletrólise) e restrita enquanto compõe uma única substância, a água. Os olhos e as patas de um cachorro existem, mas apenas como partes de um organismo e não podem ser, de fato, compreendidas senão em termos de seu papel no organismo do animal. Enquanto estiverem em seu estado “normal”, sua existência é potencial e não de entidades em sentido pleno.
O erro do atomismo — sob lente hilemórfica — é tornar as partículas realidades fundamentais e os objetos meros agregados (de partículas). O hilemorfismo afirma o contrário: as coisas são as entidades fundamentais e as partículas suas partes potencialmente independentes; assim, o todo fica irredutível à soma das partes e conserva uma realidade superior. Enquanto isso, o universo é a soma dos objetos que engloba — afirmação contrária ao monismo, onde o universo é a única realidade fundamental e as coisas reduzem-se a modos. O hilemorfismo endossa, assim, a metafísica do senso comum.
Hilemorfismo Quântico
O conteúdo mais original do livro de Koons, Is St. Thomas’s Aristotelian Philosophy of Nature Obsolete?, é seu argumento de que a mecânica quântica é melhor interpretada enquanto reivindicação do hilemorfismo aristotélico. Houve, sem dúvida, quem afirmasse o mesmo, feito Werner Heisenberg, pai da física quântica, mas Koons é o primeiro filósofo proeminente a apresentar a tese em livro de modo a combinar uma perícia em idéias filosóficas e bibliografia relevante com a seriedade e o detalhismo dos conceitos científicos de forma a forçar trabalhos futuros relacionados aos mesmos temas — científicos e filosóficos — a levarem seus argumentos em conta.
Koons aponta vários aspectos da mecânica quântica passíveis de interpretação aristotélica. Há, por exemplo, o famoso princípio de Heisenberg, onde a posição e o momento de uma partícula são indeterminados, exceto pela interação com um sistema no nível intermediário dos objetos cotidianos (qual um observador). Há, também, o “método da soma das histórias”, do físico Richard Feynman, onde as previsões devem englobar todos os caminhos que uma partícula possa tomar, em vez de considerar apenas seu curso real. Há o fenômeno do “emaranhamento”, no qual as propriedades de um sistema de partículas são irredutíveis às suas partes, relações espaciais ou velocidade relativa. Temos a estatística quântica, na qual partículas de mesmo tipo são tratadas como fundidas e perdem sua individualidade num sistema maior. Estes exemplos indicam que a matéria em menor escala possui exatamente o mesmo tipo de potencialidade e indeterminação atribuídas pelo hilemorfismo, e apenas características de nível superior (nos sistemas quânticos) atualizam esta potência e tornam a matéria algo determinado — papel atribuído à forma.
Entretanto, isto apenas arranha a superfície da análise de Koons; a parte mais interessante do livro é composta de uma crítica a várias interpretações famosas da mecânica quântica, como a da interpretação de onda piloto de David Bohm, a dos múltiplos mundos de Hugh Everett, a teoria do colapso objetivo e a leitura padrão de Copenhague. Koons aponta as dificuldades próprias de cada uma e, em alguns casos, incoerências como as descritas acima (enquanto não conseguem conferir sentido à realidade do mundo cotidiano que, por sua vez e em primeiro lugar, fornece as evidências para as afirmações da própria mecânica quântica). Ele propõe, em vez disso, o chamado “hilemorfismo quântico”, cuja vantagem é resolver alguns enigmas próprios da teoria quântica e justificar o hilemorfismo mesmo.
Algum tomista, não me lembro quem (quiçá Ralph McInerny), observou que devemos consultar Aristóteles ao termos uma nova idéia para conferir suas opiniões sobre ela há 2.300 anos. Koons defende com veemência a validez do ditado para a mecânica quântica ou, pelo menos, para o cerne de sua concepção de matéria. Fica clara, assim, a importância disto para questões de longo alcance na filosofia, na ciência e também na teologia.
Bibliografia citada e/ou recomendada.
- Edward Feser — A última superstição: Uma refutação do neoateísmo
- Edward Feser — Filosofia da Mente: Um Guia para Iniciantes
- Edward Feser — Aristotle’s Revenge: The Metaphysical Foundations of Physical and Biological Science
- Edward Feser — Scholastic Metaphysics: A Contemporary Introduction
- Terry Eagleton — Materialismo
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