Por Edward Feser
Tradução, notas e comentários de Helkein Filosofia
No contexto da discussão do problema humeano da indução, o tratamos, normalmente, como um raciocínio que parte do observado para o inobservado. Operamos indutivamente quando inferimos, por exemplo, que o pão que nos alimentou no passado também nos servirá no futuro – há, é claro, outras formas de indução, mas podemos deixá-las de lado em prol da finalidade deste texto. A resposta de Hume acerca de uma justificação do raciocínio indutivo é negativa. De acordo com sua concepção, há apenas duas formas de justificar a indução.
A primeira forma justificaria a indução nos termos que chama de “relações entre idéias”; a proposição de que todos os solteiros não são casados, verdadeira nestes termos, é também necessária por conta de ser solteiro implicar a noção de não ser casado. Justificar a indução nestes termos incluiria mostrar, por exemplo, que existe uma relação lógica no sentido de uma conexão necessária entre a idéia de pão e a de ser nutritivo para nós. Mas, de acordo com Hume, tal conexão não existe. Podemos conceber que o pão deixe de nos nutrir de uma maneira que não é concebível que um solteiro seja casado. Podemos conceber, em geral, que seu efeito falhe e deixe de segui-lo; não é lícito, portanto, que raciocinemos com base em relações de idéias para concluir que causas inobserváveis operarão da mesma forma que aquelas que observamos.
A segunda forma de justificar a indução seria em termos de “questões de fato”. A proposição de que solteiros tendem a ir em bares para não casados é verdadeira não pela idéia da solteirice implicar a de ir num bar para inuptos, mas por ser um fato empírico contingente que isto aconteça. Esta maneira de justificação inclui argumentar que, em termos de fatos empíricos contingentes, a indução é uma forma confiável de raciocínio. A ilicitude desta tentativa é ser circular; concluir que muitos solteiros não observados frequentarão bares de inuptos a partir do fato de que muitos solteiros observados o fizeram pressupõe a confiabilidade da indução. Na mesma clave, concluir que a indução será confiável no futuro baseando-nos no fato de que ela foi confiável em situações passadas pressupõe sua fiabilidade – mas esta é, precisamente, a característica que o argumento precisa demonstrar.
Em suma, a argumentação humeana contra a justificação da indução é a seguinte:
- A única forma racional de justificar a indução é em termos de relações entre idéias ou questões de fato.
- Ela não pode ser justificada em termos de relações de idéias por conta de não haver conexão necessária entre causa e efeito; um pode existir, futuramente, sem o outro.
- Ela também não pode ser justificada em termos de questões de fato por conta desta maneira pressupor a confiabilidade da indução; é, portanto, uma forma circular.
- Segue que a indução não pode ser racionalmente justificada.
Como comentado por David Stove, referindo-se à teoria platônica das idéias, o argumento humeano se tornou célebre entre os filósofos; no entanto, isto foi dito antes como zombaria contra algo superestimado do que enquanto elogio. Opino que não justifica com zombemos de Platão, mas a farpa serve bem caso dirigida contra o argumento humeano, uma vez que o que temos aqui é um dos muitos exemplos da aplicação, por Hume, de pressupostos filosóficos, na melhor das hipóteses, altamente problemáticos – e, na pior delas, falsos.
Atentemos, em primeiro lugar, que a premissa inicial do argumento humeano consiste na aplicação do garfo de Hume, o princípio de que todas as proposições cognoscíveis referem-se a relações entre idéias ou questões de fato. Mas este princípio – que não vale em virtude de relações entre idéias ou de fatos empiricamente verificáveis – é, notoriamente, autorrefutável. É tão metafísico quanto os que Hume tenta minar, e sua emissão pressupõe uma terceira perspectiva epistêmica para além das duas que o pensador se dispôs a reconhecer. Nisto, o famoso problema humeano da indução fica retido no marco zero; toda a sua força depende de uma dicotomia falsa.[1]
O argumento do garfo de Hume não pode ser salvo sequer mediante mitigação, uma vez que, nisto, assume uma entre três formas: a) o humeano pode suavizar o princípio e admitir que há uma terceira categoria para além de relações entre idéias e questões de fato, b) manter a dicotomia e ampliar a noção de relações entre idéias a fim que o próprio princípio se torne verdadeiro nestes termos e c) manter a dicotomia enquanto expande a concepção de questões de fato para tornar os garfo verdadeiro nestes termos. A possibilidade de desenvolvimento de qualquer destas soluções é outra questão. O que nos importa, segundo o escopo deste texto, é que, seja como for, para defender o garfo de Hume, é necessário mitigá-lo até que seja defensável sem recurso à indução. Um humeano deverá a) reconhecer uma terceira categoria de proposições cognoscíveis para além das duas que endossa e, nela, mostrar que a indução não funciona, ou b) ampliar a noção de relação entre idéias e, nela, demonstrar que a indução não pode ser justificada neste novo âmbito, ou c) expandir a noção de questões de fato e, nela, provar que não há, nesta esfera, como justificar a indução. Boa sorte para quem tentar, mas, até que cada uma destas formas seja desenvolvida, não há, realmente, um problema humeano da indução.
A segunda parte do problema é que a segunda premissa humeana depende do princípio de que a concebilidade serve de guia para possibilidades reais. Os filósofos contemporâneos não se cansam de expor o quanto este princípio é problemático quando os cartesianos o empregaram em argumentos a favor de sua forma de dualismo, feito quando afirmam que podemos conceber, claramente e sem contradição, a existência de mentes sem corpos e concluem que, disto, é possível ao menos em princípio, que existam mentes separadas de corpos. O crítico replica, então, que a possibilidade desta concepção pode depender de uma deficiência de compreensão. Uma pessoa dotada de vaga compreensão do que é um triângulo euclidiano pode conceber a possibilidade de que este possua ângulos que somem algo diferente de 180º, mas quando compreender melhor do que se trata, verá que é impossível.[2] Da mesma forma, sugerem os críticos, a compreensão profunda da natureza da mente revela que ela não pode ocorrer independentemente da matéria. O mesmo tipo de objeção pode ser erigido contra Hume (e, opino, de maneira mais justa). Talvez uma melhor compreensão do pão revele que não é possível que ele não seja nutritivo; mas, se assim o for, então está justificado o julgamento de que o pão nos nutrirá, no futuro, assim como o fez no passado.
A razão pela qual Hume confia que este não é o caso consiste no que os comentadores chamaram de princípio de cópia, i.e., a tese de que uma idéia é cópia enfraquecida de uma impressão. Tenho a impressão do vermelho quando olho para uma maçã; mas quando a fruta não está presente, me lembro da cor mediante uma imagem mental que, segundo Hume, é minha idéia de vermelho. Idéias complexas são formadas por combinações entre idéias simples adquiridas da mesma maneira – a idéia de pão, por exemplo, é a combinação entre a idéia de uma cor, forma, textura e assim por diante. Desta forma, parece plausível que nada há em minha idéia de pão que implique numa nutrição em todos os casos.
Entretanto, tal descrição de nossas idéias é ridícula, refletindo a tese imagista de que um conceito é, essencialmente, uma forma de imagem mental – entretanto, o imagismo é comprovadamente falso. Há muitos conceitos que não podem ser identificados com imagens mentais; a triangularidade, por exemplo, não possui phantasma. [3] Qualquer triângulo imaginável será, sempre, de uma cor específica – preto, vermelho, verde, etc.–, enquanto o conceito de triangularidade, aplicável a todos os triângulos, independe da cor, e assim por diante. Este é apenas o princípio dos problemas do imagismo (aí vai um exercício divertido: tente identificar o phantasma referente ao conceito mesmo de imagem mental.)[4]
Há, ainda, a suposição de que qualquer necessidade é lógica, digo, aquela presente nas relações entre conceitos, algo negado por filósofos aristotélicos e outros que não sejam humeanos. Os primeiros, por exemplo, sustentam que há uma forma mais profunda de necessidade, a metafísica, que rege as coisas em si e não apenas nossos conceitos. Desta perspectiva, a necessidade lógica é um eco da necessidade metafísica, e tal ressonar não pode afetar com tanta força um intelecto superficial. Suponhamos, portanto, que dada a natureza do pão e de um corpo humano saudável, que seja impossível o pão deixar de nutri-lo; ainda assim, pode ocorrer que uma pessoa conceba um cenário em que o pão deixe de ser nutritivo, não por conta de tal falha ser possível, mas devido à inteligência de tal pessoa não ser suficientemente penetrante para compreender o pão ou o corpo. Para aquele que não segue Hume, não resulta que todas as proposições sejam necessárias enquanto verdades conceituais (relações entre idéias) ou empíricas expressando verdades contingentes (fatos concretos); existem, ademais, verdades empíricas necessárias. Que o pão nutra o corpo pode ser uma verdade necessária, ainda que acessível apenas por meio da investigação empírica da natureza do corpo e do pão.[5]
Um humeano discordaria, naturalmente, de tudo o que foi dito; mas a questão é que, a menos que ele nos forneça um argumento contra tais formas alternativas de compreender a natureza dos conceitos, da necessidade, etc., não teremos razão alguma para crer que exista um “problema da indução”. O verdadeiro problema não consiste em justificar a indução, mas de justificar que haja um problema de justificação da indução que permaneça coerente após a eliminação dos pressupostos falsos empregados por Hume para argumentar que a indução não pode ser justificada.
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Notas:
[1] Willard Quine defende, em seu Os Dois Dogmas do Empirismo, que a distinção empirista entre proposições analíticas (relações ideais) e sintéticas (referentes a fatos) é pouco clara e, no limite, dogmática. Se Quine acerta, o garfo humeano é, então, falacioso. Ver De Um Ponto de Vista Lógico p.37 ss. [N.T.]
[2] A objeção ocorre semelhante àquelas dirigidas contra o argumento ontológico racionalista. A mera especulação, sem contradição, de uma entidade, não atesta sua realidade. Podemos conceber um unicórnio, mas isto não significa que ele seja possível na realidade e muito menos que exista. Atentemos, ademais, que o argumento mina a concepção racionalista por conta dela partir de um conceito para a tentativa de adição do predicado “existência”, algo que não ocorre, por exemplo, no argumento anselmiano. No caso ilustrado por Feser, o cartesiano erra por tentar reificar seu conceito de alma, digo, pressupor que de sua concepção clara e distinta ela realmente exista independente do corpo. [N.T.]
[3] Phantasma e Conceptus são os termos técnicos escolásticos para imagem mental e conceito. O primeiro refere-se à imagem de um particular, como a lembrança de uma caneca; o segundo refere-se ao correlato mental (quidditas) de uma essência (essentia) que é, por sua vez, sempre universal. Confundir ambos resulta numa série de problemas, sendo o mais grave o eclipsamento de tudo o que sabemos sobre os universais e, nisto, a impugnação da idéia de conhecimento em sentido forte. Grosso modo, isto elimina a idéia de universalidade conceitual – regride, em suma, aos primórdios da disputa dos universais e, no limite, ao período pré-platônico, onde não havia sequer o postulado das eidos como fiadoras do conhecimento certo – e a substitui pela impressão dos particulares. Em termos kantianos, todo o conhecimento humano reduz a um diverso da intuição organizado meramente pelo costume – eis, a rigor, uma conclusão retirada pelo próprio Hume. [N.T.]
[4] Identificar os conceitos como impressões de grau enfraquecido é intrinsecamente problemático. Nesta concepção compreendemos, em termos escolásticos, a quidditas com o phantasma; ora, a primeira é o correlato mental (conceito) da essência posta na realidade, um universal, enquanto a segunda, como explica Schopenhauer, é uma impressão referente à coisa percebida e não logra, por isto, extensão universal, própria do conceito; então a identificação não segue e confunde o particular e o geral – em termos aristotélicos, a substantia prima com a secunda. Em suma, o nexo entre a impressão e a idéia não é o visado por Hume na seção I da Parte I do Tratado da Natureza Humana. Hume trata, implicitamente, os graus de abstração como esvanecimento dos “graus de força e vividez” de seu impacto na mente; ora, tal identificação é abstrusa pois, como apontado por Feser, há várias abstrações sem correlato particular (i.e., não podem ser impressões enfraquecidas) e não podem ser explicadas nem conectadas num referente real senão com o uso de recursos ausentes na doutrina humeana, como a abstração aristotélico-tomista ou a visão de essência fenomenológica – podemos encontrar uma refutação husserliana de tal concepção em Investigações Lógicas: Investigações para a Fenomenologia e a Teoria do Conhecimento p.53. [N.T.]
[5] A necessidade mencionada por Feser não é a necessidade lógica e nem a metafísica. A “necessidade empírica” pode ser expressa nas leis que regem os modelos das ciências empíricas; poderiam ser de outra forma, mas, conforme sua natureza revelada mediante investigação, ocorrem sempre de tal forma. É possível argumentar que é uma forma de necessidade mais fraca do que aquela obtida a priori, mas não que não seja uma necessidade. [N.T.]
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