Por Edward Feser
Tradução de Johann Alves
Notas e comentários de Helkein Filosofia
Parte I
Aristóteles e a tradição escolástica por ele influenciada sustentavam que, para entender uma coisa, era necessário conhecer cada uma de suas quatro causas: material, referente ao estofo da qual é feita; formal, relativa à forma ou essência estampilhada no material [stuff] de que é feita e que faz com que a coisa seja algo; eficiente, ou aquela que faz a coisa vir a ser [existir]; e final, fim ou propósito ao qual é direcionada.[1] O pensamento moderno é amplamente definido por sua rejeição de duas das quatro causas aristotélicas. Para estes, não há formas substanciais ou essências fixas, assim como não há fins ou propósitos na natureza. Tudo o que há são apenas elementos materiais brutos relacionados por cadeias mecânicas de causa e efeito sem propósito e sentido.
Como destaquei em minha série de publicações sobre dualismo, a concepção mecânica da natureza, à medida que despoja e matéria de tudo o que sugira uma teleologia ou qualidades sensíveis (conforme o senso comum) e as realoca na mente, implica, mais ou menos automaticamente, uma forma cartesiana de dualismo em que a intencionalidade e os qualia são imateriais por necessidade conceitual. O resultado disto é que tal dualismo padece do “problema da interação”.
Para os modernos, toda causalidade reduz-se à forma que os aristotélicos chamavam de eficiente, i.e., para que A tenha influência causal sobre B é necessário que A traga B à existência ou, pelo menos, de alguma forma, [traga à existência] alguma modificação de B. A causa final é descartada, resultando que não há lugar, no pensamento moderno, para a ideia de que B possa servir como explicação para A, à medida que gerar B é o fim ou o objetivo para o qual A é direcionado. A causa formal também é eliminada, de maneira que, para os modernos, está fora de questão que um objeto material seja (parcialmente) explicado mediante a forma substancial que exemplifica. Em vez disso, exortam que nos refiramos apenas às relações causais de tipo eficiente que existem entre os elementos materiais básicos (os átomos, os corpúsculos, os quarks etc.).[2]
Assim, se a mente, enquanto imaterial, possuir algum papel explicativo referente ao comportamento do corpo, o será apenas através de algum padrão de relações causais eficientes — ou, grosso modo, em termos de uma res cogitans (ou talvez várias propriedades imateriais) “batendo” na res extensa (ou propriedades materiais) do cérebro, como a proverbial bola de bilhar. Como isso funciona, é notoriamente difícil de explicar. Temos dois objetos (ou dois conjuntos de propriedades) existencialmente distintos que interagem, de alguma forma, como partículas físicas, bolas de bilhar, talvez ondas ou campos de força – exceto pelo fato de que um deles carece de qualquer característica material que possibilite sua classificação como partícula, bola, onda ou campo. Somemos, ainda, considerações tais como conservação da energia ou a interação entre os reinos material e imaterial – questões excluídas in limite devido à perspectiva mecanicista sobre o funcionamento do mundo.
Do ponto de vista aristotélico-tomista, toda esta concepção da relação entre mente e corpo é, do início ao fim, irremediavelmente viciada. É errôneo pensar na alma (na qual o intelecto é um componente e não seu todo)[3] e no corpo como objetos independentes, pois esta é a forma que organiza a matéria corpórea – a primeira informa e a segunda é informada.[4] No composto de uma pedra, árvore ou minhoca, o que há não são duas substâncias interagindo mediante causa eficiente, mas dois componentes metafísicos operando numa causalidade formal; assim como a forma da pedra está para sua matéria, o mesmo com a da árvore, da minhoca, e também a alma humana em relação ao corpo. Não existe, in principio, algo como a matéria de uma pedra, árvore ou minhoca como se separada de sua forma, da mesma maneira que nenhuma dessas coisas existe sem matéria. Forma e matéria não “interagem” como se fossem objetos distintos; o que ocorre é que a primeira constitui a segunda num tipo de objeto, tornando-a “algo”.
Também não há, in principio, algo como a matéria de um corpo humano vivo que careça de uma alma humana e não existe, da mesma maneira, alma humana que não seja a de um determinado corpo (isto não implica na impossibilidade de sobrevivência da alma após a morte do corpo, mas apenas que ela não poderia existir primeiro a menos que única a algum corpo – mas este é um tópico que não podemos tratar aqui). A alma não “interage” com o corpo enquanto objeto independentemente existente, mas constitui a matéria corpórea enquanto corpo humano, i.e., sob razão de causa formal (em oposição à eficiente).
À medida que movo os meus dedos pelo teclado, o que ocorre não é a transferência de energia (ou qualquer coisa que seja) de alguma res cogitans cartesiana para uma res extensa (meu cérebro) que estabelece uma série de eventos neurais que, a partir desse ponto, ficam “por conta própria” sem nenhuma ação adicional exigida da alma. Há apenas uma substância, a saber, eu mesmo – embora a compreensão dessa substância exija a observação de cada uma de suas causas formais, materiais, finais e eficientes. Minha ação conta, decerto, como a escrita de um post de blog em vez de sofrer, digamos, um espasmo muscular, isto em parte devido ao padrão específico dos eventos neurais, contrações musculares e mecanismos a eles subjacentes, etc. – mas apenas em parte. Isto não implica a existência de um conjunto totalmente separado de eventos ocorrendo numa substância igualmente separada que influencia, de alguma forma, os acontecimentos corpóreos. Os processos neuromusculares são, por si mesmos, apenas o aspecto causal material e eficiente de um único evento no qual meus pensamentos e intenções são o causal e o final. Não há maneira de descrever completa e precisamente o evento sob exame sem referenciar cada um destes aspectos; assim como não há matéria de uma pedra ou árvore separada de suas respectivas formas, não existe um “lado físico” separado, em mim, do “lado mental”. Tratar apenas do “lado físico” seria ignorar a metade mais importante do caso, como descrever o termo “gato” tratando da forma das letras, a química da tinta, como escrevemos, etc., enquanto permanecemos sem examinar seu significado.
Como enfatizado pelo psicólogo Jerome Kagan em seu An Argument for Mind (cuja resenha pode ser conferida aqui), o problema de tentar selecionar um padrão de eventos neurais ou fisiológicos e identificá-lo a algum evento mental (ou qualquer outra forma de explicar o mental em termos fisiológicos) é que o mesmo padrão fisiológico pode subjazer diferentes eventos mentais e o mesmo evento mental pode associar-se a vários padrões fisiológicos. Este é um problema bem conhecido pelos que estudaram a história da teoria da identidade entre a mente e o cérebro (feito o monismo anômalo de Davidson),[5] embora pareça que muitos filósofos não perceberam a profundidade do problema e como ele devasta o materialismo. Autores como James F. Ross argumentam que pelo menos alguns de nossos estados mentais são determinados de forma que nenhum material ou processos materiais podem servir-lhes de princípio; assim, a esperança de tornar estados mentais idênticos ou supervenientes a estados físicos é ilusória. Sem causas formais ou finais, o projeto de atribuir algum conteúdo mental a este ou aquele substrato material é fatalmente frustrado (assim, o problema da interação incomoda mesmo os materialistas, mas sob forma de “problema da causação mental”).[6]
Não pode haver, do ponto de vista escolástico (de cepa aristotélica), questão alguma que verse sobre um conjunto de eventos fisiológicos com o qual outro, de eventos mentais independentemente identificáveis, interaja e necessite de explicações em termos de causalidade eficiente. Tudo o que há é a operação de escrever uma publicação de blog na qual os componentes formais, materiais, eficientes e finais são todos irredutíveis. Neste escopo, não há espaço para uma “questão da interação”. Como acontece, frequentemente, com objeções levantadas contra as defesas modernas de perspectivas filosóficas tradicionais (como o teísmo e a ética da lei natural), o problema da interação que afeta formas cartesianas de dualismo ocorre precisamente por serem modernas e aceitarem pressupostos [modernos] (em especial, mecanicistas e/ou nominalistas) que (eles, enquanto teístas e teóricos da lei natural) deveriam repudiar.[7]
Tratei de tudo isto em meu Filosofia da Mente e em A Última Superstição, mas exporei ainda mais estas questões numa série de publicações a favor do dualismo. Por enquanto, o objetivo é enfatizar que o que temos aqui é mais um caso (entre muitos outros que descrevo detalhadamente em A Última Superstição) em que a transição, no início da modernidade, do aristotelismo para o mecanicismo foi antes um retrocesso do que um avanço; foi um esquecimento deliberado de distinções e categorias cuja elaboração e esclarecimento foram algumas das grandes conquistas da escolástica, e sua preterição causou um empobrecimento conceitual que, inevitavelmente, cria mais problemas do que resolve – e o problema da interação não é o menor e nem o último deles.
Parte II
Sugeri, no capítulo anterior, que uma das vantagens do dualismo hilemórfico contra o cartesiano é que sua noção de causa formal permite contornar o problema da interação, pois, sendo a alma forma do corpo (em vez de uma substância separada posta em seu próprio domínio) então a questão da possibilidade de “interação” sub causa efficientis entre substâncias, no modelo das bolas de bilhar, perde sua razão de ser. Há, ao invés de duas substâncias, apenas uma, o ser humano composto de forma (alma) e matéria (corpo), e a “interação” entre seus componentes não é mais complicada do que aquela da matéria e da forma de uma árvore – a rigor, não há “interação”, pois não se trata de duas coisas separadas, apenas de distinções de uma mesma coisa. Minha intenção de levantar a mão não é um evento que, de alguma forma, necessite de contato causal com outro evento físico; é, por outro lado, a causa formal e final de um único evento no qual a atividade de meu sistema nervoso (e braço) é a causa eficiente e material. A solução do “problema da interação” é sair da cama de Procusto conceitual do mecanicismo e retornar a uma filosofia da natureza informada pelas quatro causas aristotélicas.
(Na verdade, dizer que isto “contorna” o problema da interação é enganoso e anacrônico, posto que transmite a falsa impressão de que o dualismo hilemórfico foi motivado, em parte, pelo desejo de resolver o problema da interação. Não havia, de fato, problema da interação algum até que os primeiros filósofos modernos, como Descartes, abandonassem o hilemorfismo e redefinissem a matéria, a mente e a causalidade de maneira explicitamente anti-aristotélica. Como demonstro em A Última Superstição, o “problema mente-corpo”, assim como os problemas filosóficos “tradicionais” da indução, da identidade pessoal, da causalidade e muitos outros, são, em grande parte, resultados da revolução mecanicista conduzida pelos primeiros modernos).
Alguns entre os dualistas modernos sugeriram que o problema da interação é, em primeiro lugar, exagerado, e acertam quando reclamam que os materialistas o utilizam com facilidade. De fato, o problema, corrosivo para o dualismo cartesiano, não é, per se, sua refutação. Vamos considerar brevemente o porquê – antes de continuarmos a ver por que ele é, no entanto, um problema sério o suficiente para que qualquer dualista seja exortado a considerar a opção pelo dualismo hilemórfico em vez da variante cartesiana (em especial, como eu argumentaria, por conta de haver amplas razões para adotar o hilemorfismo como uma metafísica geral).
Uma das razões pelas quais o problema da interação não refuta, estritamente, o dualismo cartesiano, é que seu defensor sempre tem a opção de negar a realidade da interação entre mente e corpo e optar pelo ocasionalismo, paralelismo ou epifenomenalismo[8] – e, é claro, a estranheza de tais perspectivas leva muitos críticos [do dualismo cartesiano] a considerá-los um recurso pouco melhor do que uma admissão de derrota, i.e., um apelo a um deus ex machina. Como observado (sem endossar tal julgamento) por Bill Vallicella, tanto o ocasionalismo de Malebranche quanto a harmonia pré-estabelecida de Leibniz foram acusados de empregar uma estratégia de deus ex machina enquanto apelam para Deus como forma de resolver o problema da relação entre mente e corpo.
Entretanto, tais acusações são tão comuns quanto injustas, pois Malebranche e Leibniz tinham razões filosóficas independentes para acreditar em Deus, e também para negar que pudesse haver interação causal entre substâncias criadas (quaisquer substâncias, não apenas a mente e o corpo). E, dadas sua respectiva compreensão da natureza das substâncias, Malebranche tinha boas razões para pensar que Deus as media continuamente – e Leibniz para pensar que Deus não o faz, mas, ao invés disso, lhes confere uma harmonia universal desde a criação.[9] Assim, Malebranche concluiu muito naturalmente que, por exemplo, quando decidimos tomar uma cerveja, nosso corpo se move em direção à geladeira não porque a decisão causa o movimento corporal, mas porque Deus, ao notar que você tomou essa decisão, faz com que o corpo se mova. Leibniz, por sua vez, concluiu que a decisão e o movimento corporal eram simplesmente o desdobramento natural do que foi pré-programado na criação de cada substância. Tais perspectivas da relação entre mente e corpo não foram desenvolvidas simplesmente para lidar com o problema da interação, mas fluíram naturalmente de duas posições metafísicas sofisticadas e independentemente defensáveis.
Mas, ainda que defensáveis, permanecem bizarras e raramente escudadas, uma vez que vulneráveis a uma série de objeções. A maioria dos dualistas modernos concordaria com os materialistas que seria preferível evitar, se for possível, o ocasionalismo e a harmonia preestabelecida e, daí, a popularidade do epifenomenalismo, segundo o qual os eventos mentais não causam eventos físicos, mas são apenas o subproduto ineficaz do fluxo de seus eventos. Quando alguém decide tomar uma cerveja, a decisão em si (ou pelo menos sua percepção consciente) não faz o com que o corpo vá até a geladeira; pelo contrário, eventos físicos totalmente inconscientes moveram o corpo e, no processo, também causaram a experiência consciente de tomar tal decisão em cujo evento, em si, não há eficácia causal alguma.
Embora isto não seja menos bizarro do que o ocasionalismo ou a harmonia preestabelecida, o epifenomenalismo possui algumas vantagens como forma de um dualista cartesiano lidar com o problema da interação entre a mente e o corpo, e parece que os materialistas perceberem que podem usá-lo como bastão contra seus adversários, posto que suas teses possuem muitos problemas para lidar com a eficácia do conteúdo mental. Se (como os materialistas costumam sustentar) apenas as propriedades físicas dos estados mentais lhe conferem poder causal, então seu conteúdo intencional parece epifenomênico. Supondo, como faria um materialista, que minha decisão de tomar uma cerveja é idêntica (ou pelo menos superveniente) a algum evento de meu sistema nervoso, então apenas suas propriedades físicas são relevantes para sua explicação; deixa de importar se houve uma representação de cerveja – ou qualquer outra representação.
Portanto, se tanto materialistas quanto dualistas cartesianos se deparam com a possibilidade de precisar engolir o epifenomenalismo, os primeiros não podem acusar os segundos de terem uma dificuldade especial para explicar a interação entre mente e corpo. Entretanto, eis antes uma vitória retórica do que de fato, pois o epifenomenalismo é notoriamente insatisfatório – não apenas porque é estranho dizer que a sua decisão de tomar uma cerveja não foi o que o levou a ir até a geladeira. Se os nossos estados mentais não influencia causalmente nossos corpos, parece que não podemos nem mesmo falar sobre eles. O próprio epifenomenalista não poderia sequer falar sobre os seus pensamentos a respeito do epifenomenalismo, uma vez que seriam tão ineficazes quanto qualquer outro estado ou evento mental. Quando o defensor diz que “o epifenomenalismo é verdadeiro”, o fato de pensar que é verdadeiro não tem absolutamente nada que ver com o fato de afirmá-lo. O que é bizarro na melhor das hipóteses e incoerente na pior. E, não obstante, os epifenomenalistas tentarem encontrar maneiras de contornar o problema, seria melhor, em primeiro lugar, não ter que lidar com ele.
Nisto, é melhor que o dualista cartesiano não negue uma interação entre a mente e o corpo, o que nos leva à segunda razão pela qual um dualista cartesiano tem o direito de reclamar que o apelo de seus críticos ao problema da interação é, com freqüência, demasiado superficial. Como apontado, em várias publicações anteriores, Bill Vallicella, se um dualista cartesiano pode explicar a interação mente-corpo, isto depende da versão que assume da tese da causalidade. Há pelo menos uma versão da causalidade – uma teoria da regularidade – na qual o dualismo cartesiano não apresenta nenhum problema de interação. Como Bill sugeriu:
Suponhamos que:
O evento-representado e1 causa o evento-representado e2 se e somente se (i) e1 precede temporalmente e2 (ii) e se e1 e e2 são representações de tipos-evento E1 e E2, respectivamente, de modo que cada representação de E1 é seguido por uma representação de E2.
Nessa teoria inspirada em Hume (sem a condição de contigüidade), a causalidade é apenas uma sucessão regular. Se essa for a teoria correta de causação, então não há nada de problemático no fato de eventos mentais causarem eventos físicos e vice-versa.
Nisto, Bill está correto; se tal análise da regularidade estiver certa – e há filósofos que defenderiam essa análise por motivos alheios ao problema mente-corpo –, então o problema da interação fica resolvido e os dualistas cartesianos podem, no mínimo, sustentar plausivelmente que objeções baseadas na interação são pouco conclusivas.
Entretanto, o “se” em questão é grande demais; será que esta teoria da regularidade da causalidade é realmente plausível ou ao menos o suficiente para mostrar que o dualismo cartesiano pode explicar a interação entre a mente e o corpo? Creio que não; uma boa razão é que, para além do uso do termo “causa”, a proposta é perfeitamente compatível com o ocasionalismo, o paralelismo e o epifenomenalismo, pois é possível, em cada uma destas perspectivas, dizer que um evento mental do tipo M é sempre seguido por um evento físico do tipo P, caso em que, na teoria da regularidade sugerida por Bill, M contará como a causa de P. Mas uma teoria “interacionista” que não difere, substancialmente, do ocasionalismo, paralelismo ou epifenomenalismo – todos os quais negam a interação – é uma teoria “interacionista” apenas em nome.
Outro problema com esta análise é que ela simplesmente não comporta o que queremos dizer com “causa”. Como o próprio Hume reconheceu, a conexão que consideramos entre uma causa e seu efeito não é apenas regular, mas também necessária. Não pensamos apenas que A foi de fato seguido por B, mas que, de alguma forma, A deve ser seguido por B. É claro que Hume acredita que, não havendo fonte objetiva para tal ideal de necessidade, esta deve advir de uma expectativa puramente subjetiva, uma vez que ele sustenta que nada há em nossa idéia de causa e efeito que as conecte necessariamente. Objetivamente falando, causas e efeitos são “soltos e separados”, e qualquer efeito ou nenhum poderia, em teoria, seguir-se a qualquer causa.
O resultado humeano que confere plausibilidade às teorias da “regularidade” causal; entretanto, tudo o que nos fornecem é um substituto da causalidade (e o mesmo vale, creio, para análises contra factuais da causalidade.) Portanto, nenhum apelo a essa teoria resolve, de fato, o problema da interação; em vez disto, apenas acrescenta um mistério ao outro, dizendo: “A causação em geral já é misteriosa, então por que a interação mente-corpo não deveria ser?”
O fato é que o motivo da causalidade soar misteriosa é o mesmo pelo qual a interação entre a mente e o coro o é: a revolução mecanicista descartou o modelo explicativo aristotélico-escolástico e, com ele, as causas formais e finais, contentando-se apenas com versões bastardas das eficientes e materiais. Conforme observado em publicações anteriores e discutido em A Última Superstição, um dos principais argumentos aristotélicos a favor das causas formais e finais é que, sem ela, a causa eficiente é ininteligível; a menos que haja algo na natureza (a “forma substancial”) da coisa em virtude da qual seja “apontada” ou “direcionada” à geração de um efeito (causa final) então não há maneira de explicar por que ela efetua (se efetuar) desta ou daquela forma. Neste sentido, o que Hume faz é delinear as conseqüências inevitáveis da revolução mecanicista (E mesmo aqui Hume é, como sempre, superestimado, já que o ceticismo em relação à causalidade, implícito na rejeição de causas formais e finais, já havia sido prenunciado por Ockham e pela tradição nominalista medieval tardia). A melhor forma de resolver tanto o problema da interação quanto o da causalidade é, no fim das contas, a mesma: retornar à metafísica aristotélica.
Parte III
Examinamos, nos capítulos anteriores, o “problema a interação” no contexto do dualismo cartesiano, originado numa concepção empobrecida da causalidade que fora herdada dos primeiros filósofos modernos e sua rejeição da perspectiva escolástica de viés aristotélico. Mas, como observado por Bill Vallicella, seja qual for nossa opinião sobre a interação no dualismo cartesiano, este problema não é suficiente para nos levar ao materialismo, uma vez que este enfrenta um problema análogo.
Parte do problema é que, mesmo que identifiquemos eventos mentais e físicos, as propriedades do primeiro não parecem ter relevância causal. Suponhamos que uma sensação de dor seja idêntica a tal padrão de disparo neural e a maneira pela qual a sentimos e cuidamos da ferida consiste em acionar processos neurais que resultam em movimentos musculares. Neste caso, tudo o que há é uma causalidade advinda de propriedades eletroquímicas – o caráter fenomênico da dor – e não de seu aspecto mental que, nisto, parece epifenomenal. Este é o “problema da causalidade mental”, variante do problema da interação específico do materialismo. Esta é a versão examinada por Bill, e possui variantes para cada espécie de materialismo (e, por conta do princípio do anomalismo mental, ameaça até o monismo anômalo de Donald Davidson).
Esta é uma das formas pelas quais o problema da interação corrói o materialismo; outra ocorre por conta de o mecanicismo tornar a interação corpo-corpo tão misteriosa quanto a interação mente-corpo. E, novamente, isto acontece devido a uma concepção empobrecida de causalidade, aquela que os modernos colocaram no lugar da escolástica de viés aristotélico.
A descrição escolástica da causalidade era teoricamente sutil e prenhe de distinções cuidadosamente elaboradas. Incluía não apenas a célebre doutrina das quatro causas – formal, material, eficiente e final – mas também a distinção entre ato e potência, a noção de simultaneidade entre causas e efeitos, divisão entre séries causais ordenadas per se e per accidens, causas primárias e secundárias, a idéia de que a causa comunica algo a seu efeito, o foco na substância em vez dos acidentes ou eventos como causas reais e assim por diante. Mas, como observa Kenneth Clatterbaugh em The Causation Debate in Modern Philosophy 1637-1739, no período entre o trabalho de Descartes e Hume, praticamente todas as teses características do aristotelismo escolástico foram abandonadas. Das quatro causas, restou apenas a eficiente, numa versão radicalmente modificada. As substâncias e sua capacidade causal essencial foi abandonada e a causalidade foi considerada uma relação entre eventos; nada foi considerado comunicado da causa para o efeito e, em princípio, qualquer coisa poderia se seguir a qualquer outra.
O resultado, naturalmente, foram os enigmas céticos humeanos. A noção de causalidade como uma característica objetiva do mundo tornou-se, na melhor das hipóteses problemática; na pior delas, ininteligível. Como argumentei longamente em A Última Superstição e Aquino – e também, brevemente, em publicações anteriores – isto fora inevitável após o abandono da causa final. Se não há nada numa causa que seja direcionado para a geração de um efeito, então não há maneira de conferir sentido ao fato de que gere algum efeito específico.
Portanto, o fato de uma causa material gerar certo efeito material não é menos misterioso, na causalidade moderna, do que ocorre na interação entre a mente e o corpo. Eis a razão pela qual teorias bizarras como o ocasionalismo e a harmonia preestabelecida receberam tanto prestígio entre os primeiros modernos, cuja motivação não era, como se supõe, encontrar uma maneira de salvar o dualismo substancial, mas lidar com o fato de que qualquer causalidade natural — mesmo aquela entre corpos materiais — se tornara impossível na nova concepção de natureza.
Mas será que os filósofos contemporâneos não tentaram resolver o quebra-cabeças da causalidade identificado pelos primeiros filósofos modernos, em especial por Hume? Certamente, mas, como mostrei em A Última Superstição e Aquino, as tentativas de explicação realista da causalidade tenderam a apelar para noções – capacidade inerente, “intencionalidade físicas, disposições, etc. – que englobam um retorno a algo como uma concepção aristotélica de natureza. Clatterbaugh cita o exemplo de Wesley Salmon, que, em Four Decades of Scientific Explanation argumenta que os processos causais genuínos envolvem uma “transmissão” de “informação” e até mesmo de “estrutura” da causa para o efeito. Como alguns dos outros autores contemporâneos que anteriormente citados (Armstrong, Molnar, et al.), Salmon não percebe que se aproxima dos escolásticos.
O “problema da interação” não é, portanto, específico do dualismo cartesiano, mas da metafísica moderna em geral, incluso o materialismo; nisto, também não serve de argumento a favor dos materialistas. O que acontece é servir de argumento a favor de uma metafísica escolástica de viés aristotélico contra seu substituto mecanicista moderno.
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Notas:
[1] A matéria é compreendida como princípio passivo [potencial] a-morfo cujo ato [estrutura, definição] advém da forma; daí que a forma é chamada ato da matéria. Não há, no mundo [concreto], matéria sem forma e nem o inverso. Toda entidade concreta é composta de matéria e forma enquanto princípios passivo e ativo. [N.T.]
[2] Isto é, da perspectiva tomista, uma contradição muito séria, posto que elemento básico algum pode ser identificado senão mediante um ato, i.e., sua essência expressa na forma. [N.T.]
[3] O intelecto é potência passiva de cognição. A alma é ato enquanto forma do corpo por ela animado [vivificado]. Identificar alma e intelecto é confundir uma faculdade com o todo de que faz parte. No limite, este é o grande erro da idéia de res cogitans. Ver S. Th. I q.79 a.1. Resp, a.2. Resp, a.3. Resp. [N.T.]
[4] Nesta concepção, não existe matéria “bruta”. Toda matéria existente é necessariamente informada; uma vez que a forma determina matéria e a torna algo existente, todo objeto material é dotado de forma. A “matéria sem forma”, matéria prima, é dada apenas logicamente mas nunca realmente. Resulta que a concepção de matéria como res extensa, realidade definida por relações espaciais e apenas isto é, nos termos de Jolivet, aberrativa. A idéia de matéria exige a concepção de uma causa formal enquanto estrutura que possibilite o haver de algum objeto material. [N.T.]
[5] O monismo anômalo prega que eventos mentais e físicos se identificam, mas os conceitos e outros temas psicológicos são irredutíveis à matéria. [N.T.]
[6] Se eventos mentais possuem alguma influência no físico, então causam; se causam, há causalidade mental. No materialismo, esta causalidade deve ser física. O problema consiste em identificar de que maneira, uma vez que os processos mentais resistem à reduzir-se aos materiais. Alguns pensadores “desistem” da questão e aderem ao materialismo eliminativista. [N.T.]
[7] Uma vez que do ponto de vista proposto por Feser não há duas substâncias separadas [dualismo moderno], mas distintas [dualismo antigo] e incompletas unidas num composto, as coisas podem ser ditas contendo apenas uma substância completa cuja causalidade interna é formal (ato) e material (potência). Não há “problema da interação” pois as substâncias não estão “separadas” e nem “impedidas de se comunicar” por algum “vão”. No limite, um “problema da interação aristotélico” questionaria como a figura (enquanto expressão da forma) de uma caneca se relaciona com seu material (porcelana, metal) quando, a rigor, são a mesma coisa. Segue, novamente, que o problema da interação ocorre apenas em versões modernas de dualismo. [N.T.]
[8] Ocasionalismo é a posição que assume duas substâncias separadas, independentes, à luz da idéia de res extensa e res cogitans e, para explicar sua interação, postula uma harmonia preestabelecida. Essa posição foi acusada de “ad-hoc” por Kant. No Paralelismo temos, novamente, um dualismo de substâncias independentes. No entanto, em vez de postular uma interação entre ambas, há operações em paralelo que, embora pareça uma relação entre substâncias, não é. Neste sentido, é como se a sobra de um corpo não se relacionasse com ele. O Epifenomenalismo prega que eventos mentais são subprodutos de processos físicos. Nele, processos físicos “causam” correlatos mentais, mas não o inverso. [N.T.]
[9] “Mas nas substâncias simples só há uma influência ideal de uma Mônada sobre outra, a qual não pode efetuar-se senão pela intervenção de Deus, enquanto nas idéias de Deus uma Mônada requer com razão que Deus, tendo regulado as outras desde o começo das coisas, também a considere. Pois, como uma Mônada criada não poderia influir fisicamente no interior de outra, só por este meio uma pode depender de outra.” Monadologia §51
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