Por Christopher Verney Salmon
Tradução de Arquelau dos Santos
Notas e comentários de Helkein Filosofia
As descobertas da lógica convencional não podem ser chamadas de subjetivas; existe, por assim dizer, um referencial objetivo que percorre a relação entre o abstrato e o concreto. Mesmo o abstrato lógico refere-se, através de seu escopo em particular, a outro e, através dele e assim por diante, até que chegue à esfera particular e objetiva de entidades para além das quais não há como prosseguir. O abstrato lógico é, por assim dizer, as penas da flecha enquanto as entidades físicas são sua ponta.
Uma regra fenomenológica reza que, quando apresentados a um objeto, fazemos uso de uma faculdade (ou, no caso de objetos compostos, de uma pluralidade delas) e, sempre que se usa uma faculdade, há uma oportunidade para fenomenologia. Uma fenomenologia é uma descrição, sob introspecção, da operação de uma faculdade; pode haver uma fenomenologia de qualquer faculdade e essa fenomenologia explicaria, nos termos da descrição da consciência, a maneira como nos tornamos cientes das entidades em questão e, por conseguinte, o “sentido” que tais entidades possuem para nós na medida em que são objetos [para nós]. Assim, a afirmação atribuída à filosofia como sendo a mãe das ciências em virtude de seus inquéritos lógicos é obviamente análoga, em certo sentido, à afirmação avançada pela fenomenologia.
De fato deveria ter sido evidenciado que a essência das relações dos corpos de leis abstratas de entidades particulares pode ser expressa em termos fenomenológicos e não pode, creio, ser explanada de nenhum outro modo, pois ela envolve o problema geral da relação entre sujeito e objeto e algumas das dificuldades habituais cujas soluções já foram anteriormente notadas. A justificação da passagem dos particulares observados na formação dos princípios gerais aplicáveis a estas reside no fato de que existem certos tipos de estrutura, revelados à introspecção fenomenológica, relacionados uns aos outros como modos inclusos num sistema geral de consciência; as faculdades estão relacionadas umas às outras como modos de um sistema. A abstração de princípios gerais válidos é possível pois os particulares possuem sentido ou significado para nós enquanto resultantes de certa estrutura típica mutuamente relacionada. A mudança de atitude que o cientista realiza quando deixa de considerar os facta e passa a considerar suas possibilidades encontra sua justificativa na relação ideal existente entre a consciência particular das entidades particulares e a estrutura típica geral a que cada uma delas é forçada a se conformar; todos os princípios gerais objetivos conservam, portanto, uma dupla dependência dos princípios subjetivos da consciência. Em primeiro lugar dependem das sínteses atuais na consciência, noesis e noema, por cujos meios os particulares dos quais os princípios foram extraídos são tornados presentes [à consciência]; em segundo lugar, dependem da variedades destas sínteses atualmente possíveis dentro de todo o sistema da consciência, somente em virtude das quais foi possível que as idéias gerais fossem abstraídas [dos particulares] e tornadas presentes como objetos à consciência. Todas as faculdades enquanto tipos de consciência intencional, revelam-se, mediante introspecção, como possuidoras cada uma de seu próprio sistema intencional noético-noemático em estrita conformidade com o que deve ser construído e é somente de acordo com trais processos, certas sínteses de atos intencionais que se pretendem objetos para a consciência, que a faculdade pode operar e ser aproveitada. Os princípios gerais das disciplinas abstratas, com sua referência objetiva, são a contrapartida dos princípios fenomenológicos de sistematização que sustentam o funcionamento das ditas faculdades, assim como as entidades particulares das quais nos tornamos cientes na vida comum são a contraparte da intenção atual e a faculdade intuitiva atual de que desfrutamos. O a priori lógico, por conseguinte, pode ser chamado de fundamento da ciência apenas no sentido preciso de que seu grau de a-prioridade é maior que o de outras disciplinas apriorísticas, mas está longe de ser um a priori absoluto que não exija para si fundamento algum senão sua posição à frente de uma escala de disciplinas voltadas para o alto, para uma fundação uma sobre a outra, mas referindo-se para baixo uma através da outra, indo da esfera objetiva de uma à esfera concreta da outra, mostrando que não apenas necessitam de apoio mas, ao definirem-se, onde esse apoio pode ser encontrado.
A investigação, por conseguinte, sobre a natureza do lógico a priori leva ao ponto de partida fenomenológico: a relação das entidades abstratas e dessas disciplinas entre si pode ser posta na concepção fenomenológica de significado. Entidades – e devemos confiar nas afirmações de nossas faculdades – possuem existência em si e para si mesmas, mas têm um significado para nós na medida em que são objeto para nós, que a mesma na qual criamos para nós nossa [cons]ciência sobre elas; a natureza e a existência das entidades pode ser estudada pelo fato de possuirmos as ditas faculdades e termos nossa atenção voltada ao objetivo.
Vivendo em nossas faculdades e objetivamente orientados podemos aprender tanto a particularidade quanto a generalidade desde que sigamos a maneira descrita. Mas nossa habilidade de passar do particular para o geral sugere, e a investigação revela, que o objetivo comum do particular com o geral e o a priori de diferentes graus depende de uma característica subjetiva comum das faculdades na consciência. Nossa primeira transição das entidades às generalidades, assim como nossas outras transições de generalidades a generalidades de maior grau, é feita em virtude do significado que essas entidades e generalidades nos revelam. O significado de uma entidade é a entidade tal como nós nos conscientizamos dela; e as entidades enquanto nos conscientizamos delas não são entidades mas objetos para a consciência; e objetos na consciência são fenômenos que, por sua vez, são o sistema de faculdades construídas na consciência a partir de atos intencionais e intenções aos quais os atos se referem a partir de uma certa síntese de elementos, cada um dos quais, tomados em si mesmos, é intencional – ou seja, consistentes de noesis e noemas. Mas a consciência não é usualmente ciente de si mesma, apenas de entidades; a consciência só pode notar a si mesma via introspecção e, neste ponto, é necessário que comparemos o método fenomenológico e o psicológico.
A psicologia, assim como a lógica, pode fornecer um meio de abordar os fenômenos; mas o modo como é concebida e realizada em seu escopo é perfeitamente distinto do modo da fenomenologia.
William James colocou a psicologia entre as ciência objetivas; “a mente estudada pelo psicólogo”, diz ele, “é a mente de indivíduos distintos que habitam porções definidas de um espaço e de um tempo reais. Com qualquer outro tipo de mente, como uma inteligência absoluta, livre de um corpo, insubmissa ao tempo, o psicólogo enquanto tal nada tem a dizer. “Mente”, para ele, é apenas o nome de uma classe para mente… para o psicólogo… as mentes que ele estuda são objetos em um mundo em que há outros objetos. Mesmo quando ele analisa introspectivamente sua própria mente e descreve o que encontra, diz isso de forma objetiva”.[1] Aceitando essa definição de mente, ela não é problema da fenomenologia. A mente, diz James, é um nome para uma classe de mentes; mas mentes são entidades presentes na consciência. O fato de tornarem-se presentes de uma forma diferente das outras senão de todas as outras entidades apresentadas não deve obscurecer o fato delas serem presentes como objetos e devem ser consideradas como entidades em si mesmas. Já falei da consciência de si como faculdade, e é lamentável que a consideração do fato de que devemos nossa apreensão de outras mentes ao exemplo primário da apreensão de nossa própria mente tenha induzido tantos a supor que o estudo de nossa mente é meramente objetivo. Pareceu a muitos que eis aqui a ilustração final de uma doutrina cujas verdades eles há muito buscam, aquela que, dado que nunca poderemos ir além de nossa consciência de objetos a esses objetos mesmos, se é que realmente há algum, caso queiramos entender o que chamamos de natureza ou relação desses objetos, devemos olhar, não para fora mas para dentro, na natureza e na relação de nossas experiências.[2] Caso fosse verdade, dizem eles, que estamos limitados a nossas próprias experiências em matéria de apreensão do que chamamos de experiências de outras pessoas, o mesmo deve valer para todos os objetos; em todo caso, estamos presos a nossas próprias experiências e, Den Weltlauf zu berechnen,[3] voltemo-nos à psicologia! Lá, nos termos de uma história das experiências individuais e uma análise de seus componentes encontrará, digamos, as coisas que compõe o universo. Agora, enquanto o psicólogo de sucesso sabe bem quais são os limites de sua disciplina, a descoberta da possibilidade da pesquisa psicológica têm servido para que muitos encubram a entrada para a esfera subjetiva. Mas as experiências que o psicólogo examina são objetos; é apenas, de um ângulo comparativo, recentemente que os homens aprenderam a operar de forma exclusiva a faculdade da auto-consciência. Uma consciência indistinta de si mesma é, talvez, o acompanhamento usual de tudo – menos da consciência mais ciente de outras entidades. De fato por vezes ocorreu que observações que pretendiam versar a respeito de outras entidades se tornaram imprecisas pela introdução de elementos objetivos pertencentes ao self, uma consciência não reconhecida que acompanhou a consciência das entidades sob análise. Uma das primeiras habilidades que o cientista deve adquirir é a capacidade de excluir, da esfera que deseja examinar, todo elemento que não lhe pertença.
É algo a se lamentar que o termo “subjetivo” tenha sido empregado, quase sempre, para designar as características da experiência que o cientista deve ser treinado para excluir, isso para além de outros elementos, da esfera que deseja examinar.
“Qualidades subjetivas” se tornou uma palavra de ordem que significa condições pessoais envolvidas na experiências dos objetos; distinguir aquilo que é o objeto em si do que são condições meramente subjetivas em sua percepção é, muitas vezes, o conselho dado àqueles inclinados às descobertas objetivas. Mas o conselho deve ser formulado de outra forma. Não se deve confundir os elementos de uma esfera objetiva de experiências reais com os elementos da esfera objetiva em questão. Que os elementos pertencentes a experiências reais não tenham, por muito tempo, sido reconhecidos como pertencentes a uma esfera objetiva com características próprias é uma razão pífia para que os chamemos, agora, de subjetivos, e há ainda menos escusas, quando finalmente descobrimos sua esfera específica, para chamá-los de subjetivos por serem experiências de pessoas que por vezes chamamos de sujeitos.
Agora aprendemos a operar a faculdade da auto-consciência com precisão suficiente para fundar uma ciência; pode-se dizer que, para tomar consciência de si mesmo, é necessário mudar a atenção dela [a consciência] dos objetos da experiência para a experiência de objetos. Mas tal explicação obscurece a mudança real nas faculdades que devem ser empreendidas. Não é mero desvio de atenção; para que esteja consciente de mim mesmo devo viver através de uma faculdade diferente daquelas através das quais outras entidades se fazem presentes para mim. Caso um homem esteja determinado a passar seu tempo iludido em suas próprias fantasias, ele pode fazê-lo deslocando a faculdade perceptiva em favor da imaginativa. Do mesmo modo, para tomar consciência de si mesmo, ele deve deslocar as faculdades que o tornam presente com outros objetos. Por “self” entende-se aqui aquele eu empírico cuja história pode ser descrita em uma sequência de experiências reais que o constituem; e se ele [o eu empírico] não fosse uma unidade, não seria possível falar de uma faculdade de autoconsciência, mas deveríamos supor que houvesse tantos “eus” quanto faculdades. Não se poderia falar de autoconsciência como acompanhamento da operação de outras faculdade como a imaginação acompanha a memória de forma que, por vezes, pode ser dificultoso distinguir seus objetos uns dos outros; pelo contrário, seria necessário supor que a autoconsciência fosse um elemento ou componente dessas faculdades que, de outra forma, seria dito que ela acompanha e que o próprio self fosse uma componente de cada entidade tornada presente por nossas faculdades. A plenitude do eu empírico é o objeto visado pela descrição psicológica; o self é uma unidades enquanto sua experiência é uma pluralidade; por outro lado, o eu empírico não “existe” em lugar algum senão nas experiências que, de forma tão sub-reptícia, são chamadas de suas próprias experiências. A identidade do self não é estática, mas dinâmica: é uma unidade em desenvolvimento ou em crescimento que pode ser reconhecida para que compreendamos cada experiência real, uma de cada vez. O que o psicólogo cultiva, o que sua dita introspecção lhe proporciona, é a consciência de si mesmo, digo, a autoconsciência; e o que ela não lhe proporciona é a consciência reflexiva, digo, a consciência ciente de si mesma. A autoconsciência é uma consciência de experiências reais, e experiências reais são entidades particulares em sua existência psíquica assim como objetos físicos são particulares em sua existência física; assim como entidades físicas, as psíquicas são passíveis de variação ou abstração objetivas e, da mesma forma, podem sustentar um a priori de diversos tipos.
A psicologia pode contribuir com a história dos eus empíricos, sequências de experiências no sentido exposto em que o self é identificado em cada experiência, de forma a “conter” todos aqueles que o precederam em uma a priori do desenvolvimento possível dos eus empíricos em geral, pode contribuir ainda com análises de experiências particulares reais e um a priori dos tipos de experiências reais e pode, em seu aspecto social, contribuir com um relato das relações dos eus empíricos uns com os outros e um a priori de toda sociedade empírica possível. Mas toda a sua operação pressupõe, como qualquer outra ciência natural, o uso da consciência objetivante e a operação de uma faculdade específica, pois ela pesquisa entidades que pressupõe atividade fenomênica na consciência, em virtude da qual, a saber, as entidades se fazem presentes a ela. Que a autoconsciência não seja consciência de si é tornado evidente na consideração de que sou obrigado a colocar um “ego” na condição de “pólo” de minha autoconsciência; Eu, sou forçado a dizer, sou consciente de mim mesmo. Mas, se este “pólo egóico” fosse um componente do eu, [eu] nunca poderia me tornar ciente de mim mesmo; entretanto, ele é perfeitamente distinto. É, por assim dizer, mero sinal da operação consciente; é o pólo do qual procede a intenção da consciência mesma. No sentido fenomenológico, o “ego” é o agente.
Mas o eu empírico não está preocupado quando eu, o ego puro, me torno ciente da consciência, a menos que, de fato, ele se preocupe não como uma entidade mas como um objeto da consciência, digo, um fenômeno.
O a priori psicológico, então, não menos do que o a priori lógico, necessita do fundamento final que a fenomenologia oferece na forma de descrição dos processos intencionais nos quais o ego puro constrói sua consciência daquelas experiências que são o eu empírico. Nessa descrição deve-se ter o cuidado de eliminar todos os fatos pertencentes à existência psíquica daquelas entidades experienciadas e ainda todas as leis que no processo abstrativo revelem-se como aplicáveis [às entidades]. A tentação de inclusão de fatos objetivos e apriorismos vários é paralela à tentação de inclusão de fatos e apriorismos da lógica; estes dois corpos de conhecimento objetivo são semelhantes na medida em que cada um deles possui a compreensão fundamental de quais corpos de conhecimento objetivo são capazes – cada um deles é, segundo a imagem utilizada, as penas da flecha da objetividade. Voltar-se ao subjetivo não é possível a menos que se permita que a flecha retorne ao arco que a atirou. A psicologia também se assemelha à lógica nesse aspecto, que sendo vista como é, uma ciência objetiva, rivaliza com a lógica na tentativa de demonstrar com mais força do que as outras ciências objetivas, aquele terreno [da própria consciência] em que todas [as ciências em geral] enraízam-se.
Da mesma forma que toda entidade tem um significado e a ciência dos significados (a saber, a lógica) o indica mais claramente do que qualquer outra, em que esfera, i.e., o subjetivo, a origem ou significado do significado pode ser encontrado; assim como todo objeto o é de alguma experiência, a ciência das experiências, a psicologia, deve indicar com mais clareza do que qualquer outra [ciência] e que esfera, i.e., subjetivo, deve ser encontrada a natureza ou experiência da experiência que é a consciência mesma.
Portanto, a psicologia é uma ciência de mentes; e até aquela mente em geral que pode ser obtida através da variação de mentes particulares – a saber, as entidades observáveis – possui uma referência e deriva seu significado dela [a saber, das entidades objetivas]. Mas a Fenomenologia é a ciência da única esfera subjetiva, da subjetividade em si mesma, a saber, a consciência pura, que recebe este nome quando livre de toda consciência dos objetos em geral. Assim como o cientista da natureza deve aprender a concentrar-se exclusivamente na esfera objetiva que lhe compete, como o psicólogo, que, por sua vez, deve considerar exclusivamente aquela esfera objetiva que consiste em especial em experiência reais, o fenomenológo deve concentrar-se no subjetivo e excluir tudo o mais de sua atenção: deve colocar, portanto, “sob parênteses” e dentro de uma ὲποχἡ [epoché] rigorosa o mundo objetivo e tudo aquilo. Uma exclusão tão radical poderia deixar o ego-polo nu e algum conteúdo a se examinar? Se a inclinação à hipóstase for superada e não houver particularidade concreta alguma, nenhum elemento ou particularidade concreta trazida da esfera objetiva à subjetiva, nada haverá a se descrever? Quando todas as realidades físicas e psíquicas, todos os bens, verdades e entidades possíveis forem postas entre parênteses e proibidas de ultrapassá-los, nós, caso nos consideremos capazes de algo assim, seremos postos face a face com inimaginável vacuidade? Na verdade é o contrário. Nós, entendidos não mais como pessoas, indivíduos dotados de experiência autoconsciente, mas enquanto meros egos, exemplos de consciência pura e reflexiva em si mesma, adquirimos um campo de pesquisa esmagadoramente grande, infinito, não sobrando entidade alguma diante de nós mas apenas nossa consciência de cada entidade. Temos diante de nós não realidades físicas ou psíquicas, bens, verdades ou belezas, mas todas elas na medida em que nos conscientizamos delas: do ângulo noemático, são objetos na consciência; do ângulo noético são objetos construídos na consciência. Objetos na consciência são o meio de conscientizarmo-nos de entidades e o são por serem eles mesmos intencionais e intentam algo para além deles mesmo. A estrutura intencional da consciência, todo o sistema da noese ao noema, permanece oculto no nível ordinário da vida consciente – e isso ocorre pois ela intenta além de si mesma; estamos cientes não da consciência mas de entidades. Entretanto, a consciência é capaz de revelar-se a si mesma; assim que conseguimos viver em uma faculdade e excluir dela as entidades que ela pode nos apresentar, tornamo-nos cientes de nossa própria consciência – a saber, da operação da faculdade, que se revela como sendo os objetos na consciência e os atos intencionais neles implicados.
A defesa da introspecção fenomenológica, que não o é no sentido psicológico de ter uma consciência de experiências mas de uma reflexão real, ocorre quando a consciência abandona a ciência de objetos e torna-se consciente de si mesma; repousa não sobre uma justificação “filosófica”, mas sobre sua capacidade operativa real.
Os argumentos contra a prática introspectiva, como os de Comte e J.S. Mill, referem-se antes à introspecção psicológica e às dificuldades implicadas na tomada da consciência de si; talvez fosse até melhor que a prática da concentração sobre a autoconsciência não fosse chamada de introspecção. Ao examinar, por exemplo, uma experiência perceptiva real, meu propósito deve ser observar aquilo de que eu estava ou poderia estar ciente na experiência factual de perceber o objeto em questão; deve ser o de tomar consciência de mim mesmo do modo como eu era ou poderia ter sido na experiência consciente. Na medida em que eu estava consciente de mim mesmo no momento da percepção, não há necessidade de mudar a faculdade em operação ou atentar ao objeto notado do qual eu não estava, então, consciente; por outro lado, na medida em que desejo, como psicólogo, examinar além do todo de que estava ciente, aquele todo de que eu poderia ter estado consciente, é necessário que eu note um novo objeto. Isso pode ser feito apenas deixando de operar ou não repetindo a operação da faculdade perceptiva e hipertrofiando a operação da faculdade da autoconsciência. Isso era a consciência de si como percepção de si e de tais entidades, e era operado parcialmente ou, no caso de absorção total na consciência das entidades, [a autoconsciência] não era operada de forma alguma. Se essa consciência deve ser chamada de introspecção assim como faz o psicólogo, lembrando-se daquele todo que a autoconsciência se envolveu e completando a operação de uma faculdade que estava sendo, no máximo subutilizada, então ela deve ser distinta da introspecção fenomenológica por ser reconhecida por não ser um caso de consciência reflexiva. A introspecção psicológica não reflete o implícito [na consciência] que agora sob reflexão torna-se explicito mas, pelo contrário, na medida em que utiliza a memória, traz à tona aquilo que já era um objeto de consciência (i.e., parte do eu empírico enquanto perceptor) para a noção total de uma atenção agora indivisível. Na medida em que se torna ciente, pela primeira vez, de seu eu perceptor, a memória ou não opera ou é reforçada pela experiência original, obrigando o psicólogo a cessar a operação da faculdade perceptiva em que vivia e passar para uma [faculdade] que ainda não operava. Mas a introspecção fenomenológica é reflexiva e, por seus meios, o implícito [na consciência] é tornado explícito e a consciência exatamente do modo como estava torna-se agora, pela primeira vez, consciente de si mesma; essa mesma faculdade, por exemplo, a perceptiva, que antes operava indistinta e parcialmente, pode ser novamente operada [puramente]. Apenas neste instante a direção da atenção muda, envolvendo o cessar da consciência das entidades e a ciência da estrutura imanente da faculdade mesma; é a este tipo de introspecção, a consciência reflexiva, que se referem aqueles escritores que, como Cousin[4] e Brentano, defenderam nos terrenos mais elevados. Mas a introspecção encontra sua justificativa final na prática; é possível, enquanto se vive operando cotidianamente uma ou várias faculdades, desviar a atenção para trás e para frente, da consciência das entidades para a consciência da consciência, da consciência dos objetos transcendentes para a consciência dos fenômenos imanentes. A revelação da identidade em ambas e a constância da relação entre elas que esta mudança na questão mostra prova que a introspecção fenomenológica é tão diretamente reflexiva quanto afirma e, referente à identidade reivindicada na repetição de experiências similares, dado que a fenomenologia se refere à consciência atual e não às experiências factuais, pode-se desconsiderar as diferenças numéricas e particulares destas quando se afirma a similaridade dos processos fenomênicos.
Isto me leva à conclusão de meu trabalho; ao recusar a facilidade de oferecer um panorama histórico do desenvolvimento dos pontos de vista de Husserl referentes aos seus escritos populares e, ao empreender o mais complicar mas, espero, mais interessante e certamente mais provocante tentativa de afirmar o mais descomprometidamente possível os princípios fundamentais da filosofia fenomenológica, fui obrigado a apresentar cruamente muitas teses que necessitam de argumentos mais precisos – por isso peço indulgência aos leitos. Como minha tentativa envolveu restrições radicais quanto a interpretações pessoais, não posso reivindicar a autoridade de Husserl por tudo o que foi apresentado mas, embora a responsabilidade pelas opiniões expostas pertença apenas a mim, estou em dívida com ele [Husserl] por sua parcialidade. Se, portanto, o elogio pelo que as concepções que pareçam louváveis foi atribuído a Husserl e a culpa pelo que parece ter sido ignorantemente declarado ou até mesmo indefensável for dada a mim, a crítica terá sido, pelo mesmo, justamente administrada.
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Bônus: Recomendações de leitura ao interessado em Edmund Husserl
Comentário: este que vos fala possui histórias engraçadas acerca da leitura de Husserl. Uma delas consiste num dos grandes dramas de todo estudante desavisado, a saber, adquirir algum livro do dito cujo – no meu caso, os dois volumes das Investigações Lógicas – e não entender nada após consecutivas e frustradas tentativas de leitura. Isso se dá por Husserl reunir duas características capitais frustrantes a muitos: ele não é apenas um filósofo avançado como também um matemático; sendo assim, sem alguma experiência com ambas as áreas, nosso querido autor se torna inacessível. Há ainda outro agravante a se notar: a fenomenologia, principal criação husserliana, é muito facilmente deturpada. Ainda que haja muitos livros pretensamente introdutórios à fenomenologia, alguns comicamente voltados a leigos, a verdade é que, ao menos até onde sei, o único modo de aprender como a fenomenologia funciona é lendo seu criador e/ou ao menos alguns de seus discípulos – como o Salmon, autor do artigo que o leitor acaba de conferir. Digo isso, em especial, por ter caído na ilusão de saber algo de fenomenologia após ler a Introdução à Fenomenologia da Angela Ales Bello e, crendo que autora fora genial por me ensinar algo tão complicado de forma tão simples, fui desmentido pela vida real e por Alfred Schutz, que alerta:
A tentativa de reduzir o trabalho de um grande filósofo a algumas proposições básicas ao alcance de um público não-familiarizado com o seu pensamento é, em regra, um empreendimento frustrado. E, com relação à Fenomenologia de Husserl, existem diversas dificuldades especiais. […] Só através de análises cuidadosas, firme consistência e de uma mudança radical nos nossos hábitos de pensamento é que podemos esperar revelar a esfera de uma “filosofia primeira”, que leve em conta os requisitos que uma “ciência exata” digna do nome exige.
Alfred Schutz – Fenomenologia e Relações Sociais p.53-54
Sendo assim, não quero iludir o estudante; não há leitura lenta que o faça entender as Investigações Lógicas corretamente. É como passar horas decorando as formas de um quadro esperando que com isso se aprenda a pintá-lo; podemos passar boas horas observando a Lady Agnew de Singer Sargent e, no fim das contas, desenhar, no máximo, um boneco palito.
Avisos dados, as recomendações não possuem surpresas; é preciso ler a obra capital de Edmund Husserl, a saber, Investigações Lógicas vol.1 e Investigações Lógicas vol.2. Há ainda um “apêndice”, escrito mais tarde, uma sexta investigação, que jaz disponível apenas no volume de Edmund Husserl da coleção Os Pensadores. A maioria dos autores da chamada fenomenologia realista considera este o núcleo da filosofia husserliana e foca seu esforços em aperfeiçoá-la em detrimento das teses expostas em outros livros. Caso o leitor deseje, é muito interessante, antes de tudo, conferir o artigo A Filosofia enquanto Ciência Rigorosa [Philosophie als strenge wissenschaft]. Logo em seguida é possível ler o Idéias para uma Fenomenologia Pura e uma Filosofia Fenomenológica e, encerrado este, já não há mais recomendação alguma no que se refere a uma ordem e leitura. Os Meditações Cartesianas e A Crise das Ciências Européias poderão ser lidos a qualquer momento. Para além das fontes primárias, recomenda-se ler algo sobre Husserl em sua história da filosofia favorita, como a do Reale. Recomenda-se ainda a leitura do Textos sobre Husserl e Tomás de Aquino, de Edith Stein, visto que os paralelos ali apontados podem auxiliar o estudante afeito à filosofia escolástica a entender melhor o pensamento husserliano.
Notas:
[1] W. James – Princípios de Psicologia, 1901, Vol. I, p.183 [N.A.]
[2] Solipsismo [N.E.]
[3] Para que calculemos o curso do mundo! [N.T.]
[4] Aparentemente trata-se de Victor Cousin [1792-1867], autor de Lectures On The True, The Beautiful And The Good. [N.E.]
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