Por Christopher Verney Salmon
Tradução de Arquelau dos Santos
Notas e comentários de Helkein Filosofia
Edmund Husserl, fundador da Escola Fenomenológica Alemã, é aquele que clama para si o título daquele que reestabelece as reivindicações mais ambiciosas da filosofia. Opondo-se à tendência moderna de tratar a filosofia como um todo de ciências especiais, Husserl trabalhou por mais de quarenta anos para fornecer uma concepção, um objetivo geral e uma prática metódica e suficientemente precisa para que se relacionem todas as pesquisas filosóficas num mesmo rol e sejam asseguradas sobre um mesmo fundamento. A fenomenologia é a compreensão do universum do conhecimento num a priori que condicione a aquisição de quaisquer conhecimentos que contenham o segredo do sentido do conhecer enquanto tal.
Husserl concebe a filosofia como a ciência descritiva dos constituintes (phenomena) da consciência pura,[1] e a consciência é concebida como aquela atualidade da qual nos tornamos conscientes quando privados da consciência dos objetos, que é o resultado normal de sua operação.[2] Ele está convencido de que nós, enquanto entendidos não como pessoas, mas como meros egos, tendo longamente nos devotado a estudar os objetos apresentados pela consciência, permanecemos certos ao fato de que a consciência é algo em si mesma e de certa natureza inteligível para nós. Assim, através de certa introspecção inteiramente reflexiva através da qual a consciência nota a si mesma, o fenomenólogo deve descrever os phenomena que revelam a si mesmos como fatores últimos e condições sine qua non da consciência de quaisquer objetos.
Os elementos dos fenômenos da consciência são, num sentido bem específico, as “experiências” (Erlebnisse) [certa operação comumente inconsciente ou vivência] que constituem – ou, por assim dizer, criam – a consciência que o indivíduo tem de si e dos objetos em geral.[3] Essas experiências são chamadas “intencionais”; dado que a consciência torna-se consciente dos objetos, ela em si mesma é certa referência daquilo que chamamos “objetos” num sentido modificado.[4] Aquilo que é referido ou intentado pela consciência não é uma entidade que é objeto da consciência, mas algo que “já está na consciência”, o objeto da consciência segundo nossa consciência dele. As experiências fenomênicas se manifestam como se consistissem de “atos” referenciais e “pontos” referidos, de noesis [νοέω] e de noemas [νοήμα]; o ato intencional e a intencionalidade do ato. É através de sua própria e intrínseca intencionalidade que a consciência produz a consciência dos objetos; eis a contribuição original da fenomenologia e sua proposta de solução para o problema da relação ente o sujeito e os objetos em geral.
A consciência das entidades que são, no jargão fenomenológico, “transcendentes” à consciência (todos os objetos são chamados assim na medida em que podemos estar cientes deles em todos os estados de consciência, exceto pelos reflexivos) é devida às referências reais da consciência mesma. Os pontos noemáticos aos quais a consciência refere-se em si mesma são chamados de “imanentes”; eles são o que a consciência nota quando sua atenção usual às entidades transcendentes é inibida. Em outros termos, a relação entre o sujeito e o objeto realmente “é posta”, “ocorre”, “acontece” nos limites do puramente objetivo: a relação original entre sujeito e objeto não abrange a antítese entre o sujeito consciente [de um lado] e entidades transcendentes [dos quais ele é consciente por outro]; o sujeito da única relação real entre sujeito e objeto não é self algum, pois o self não está entre as entidades das quais a consciência produz uma noção [estar consciente de], e o objeto da relação real entre sujeito e objeto não é nenhum objeto transcendente pois, caso fosse, em e para si mesmo, não teria relação alguma com o sujeito e, caso considerado como objeto de consciência, pressuporia uma relação real entre sujeito e objeto por meio da qual seria objetivado.[5]
Tentativas de explicar as relações entre experiências reais, como a psicológica, e outras entidades reais que não são experiências não satisfazem o campo do problema filosófico pois não são relações em sentido filosófico; elas são relações “factuais”, como opostas a relações “atuais”, caso seja permitido que me expresse segundo a distinção que Husserl faz entre o que é “real” enquanto existindo ou no mundo espaço-temporal ou no mundo temporal da realidades psíquica, que é como uma “bobina”, tendo sua existência entre os fenômenos da esfera subjetiva. De um ponto de vista subjetivo, as relações factuais são “mortas” e não podem explicar ou assumir o rol das relações “vivas” que ocorrem entre o sujeito e o objeto. Foram feitas, ainda, outras tentativas de resolver o problema levadas a cabo pelos materialistas, não mais em termos de relações entre objetos, mas por certa passagem misteriosa de uma entidade para um sujeito; tais tentativas tentaram precisar uma tarefa impossível, confundindo o “sense data” com a percepção psicológica, como se fosse possível que algo fosse tanto físico quanto um estado de consciência ao mesmo tempo. Podemos, naturalmente, distinguir o que é “dado” e a “sensação” ou experiência sensorial em que algo é dado, mas aquilo que é dado pressupõe a experiência sensória e, por conseguinte, já está no campo do subjetivo.[6] Estar ciente da afeição psicológica é uma coisa certamente possível, mas passar disso à consciência mesma tentando compor uma de outra é algo impossível; a sensação é ou um estado de consciência ou não é nada. Se é um estado de experiência consciente então não pode ser construído de contrações nervosas; mas dentro da consciência e é constituída de experiências intencionais; como toda sensação consciente refere-se a um objeto, ela mesma é intencional. Ou pode ser considerada, portanto, como sensação de uma entidade factual como a dor, a aspereza, o calor, a quadratura e afins, em cujo caso há um preenchimento intuitivo (Erfüllung) dos processos intencionais, mas a relação real entre sujeito e objeto permanece inexplicada, ou pode ser considerada sob introspecção como uma sensação como se estivéssemos cientes dela, e então a relação entre sujeito e objeto será explicada em termos das relações reais entre noesis e noema. Assim ambos os polos da relação permanecem inclusos na esfera subjetiva da consciência; portanto, a consciência das entidades não é uma relação do sujeito que percebe e as entidades percebidas, mas a satisfação do “preenchimento” intuitivo e “transcendente” das relações atuais ou referências feitas no próprio corpo da consciência mesma. Estas observações aplicam-se ainda como uma crítica à engenhosa tentativa que alguns escritores levaram a cabo de dar conta de nossa consciência de objetos em geral e de nossa percepção de realidades físicas em particular por meio de “presentações” [presentations] que foram também chamadas de “experiências imediatas”. As “experiências imediatas” seriam aquelas que fornecem o nexus entre o sujeito cognitivo, atento e conato de um lado, e os objetos de seu preenchimento ou a consciência aperceptiva do outro. O uso da palavra “experiência” sugere a satisfação de alguns processos subjetivos como aqueles a que chamamos intencionais, mas nos é dito expressamente que devemos pensar estas experiências como objetivas e não subjetivas. No caso da percepção, onde as experiências imediatas são chamadas de “sensações”, nos é dito, por exemplo, que “elas não são experiências imediatas que entram na constituição dos…estados subjetivos… por outro lado, são experiência imediatas que entram na constituição dos objetos apreendidos, participados, etc.”[7] Em outros termos, a distinção entre sensum ou sense-datum e o ato da sensação é expressamente negado. É nesse sentido que o princípio geral de que “as presentações… condicional a apreensão de todos os outros objetos… diretamente por sua existência atual como experiências imediatas…”.[8] Os resultados desta teoria são, em primeiro lugar, o confinamento da esfera subjetiva aos chamados “três estados” da mente, cognição, atenção e afeição e, em segundo lugar, o dilema de sermos obrigados ou a aceitar a doutrina de que o que é conhecido e atentado não são objetos transcendentes, mas experiências imediatas, ou a tolerar dois níveis de objetividade, uma aparentemente “prioritária” à outra, uma doutrina que costumava ser banal às teorias representacionais. Seja qual for a tentativa adotadas, a teoria ainda é culpada do velho erro de tentar construir a consciência a partir de tijolos feitos de objetos da consciência em vez da consciência mesma. A fenomenologia então corrigiria o problema subjetivando as “experiências imediatas” e restaurando a velha divisão da sensação entre o ato de sentir e o objeto sentido, mas, considerada agora do lado subjetivo da consciência, tal divisão transforma-se em noesis e noema e a “imediatez” [da experiência] na “imanência” fenomenológica.
Mas isso se refere ao presentacionalismo! Referindo-se aos outros esforços feitos para dar conta da relação entre o sujeito e o objeto enquanto totalmente “fora” dos limites da esfera subjetiva, estes, como demonstrado, são baseados na afirmação de “relações mortas” percebidas como existindo entre uma entidade e outra e falham por conta da pressuposição que fazem dessa relação que pretendem explicar e a relação real, i.e., da contraparte dessas entidades da noesis ao noema na construção da consciência objetivamente direcionada.
É lamentável que as tentativas de resolver o problema da relação entre o sujeito e o objeto levadas a cabo do ponto de vista idealista tenham, em sua maioria, ignorado as características da consciência e se contentado em formular teorias que, se pertencem a algum lugar, é o das ontologias da esfera das idéias abstratas. Na medida em que as especulações teoréticas descobriram a verdade ela foi verdade objetiva, obtida a partir da observação das idéias em questão e de um exame de sua natureza; as verdades assim adquiridas, sendo generalidades, são a priori e resultado da abstração. Mas, a menos que sejam emitidas a partir de uma metafísica “diluída e arejada”, que seria antinômica num sentido kantiano, elas são o resultado de uma investigação em idéias cuja objetivação é responsabilizada a alguma experiência consciente; portanto, pressupõem a relação entre sujeito e objeto que pretendem explicar. Sempre que a consciência se ocupar com objetos, os resultados de sua operação, sejam observações particulares ou leis gerais deduzidas ou aplicadas a estas, devem sempre possuir alguma referência à esfera objetiva.[9] Mas essa referência objetiva não é diluída, como alguns o sustentam, por graus de abstração; não importa o quão perfeitamente genérica possa ser a expressão final destes princípios específicos; se eles foram abstraídos ou postos como hipótese a explicar os facta, então eles se referem àquela esfera objetiva à qual os facta pertencem. Não há passagem do objetivo ao subjetivo no processo de variação ou abstração; quando esta se inicia, deve referir-se a esta esfera [a objetiva]; para se referir às coisas subjetivas, a abstração e a variação devem iniciar suas operações na esfera objetiva.
É antiquado, hoje em dia, falar de “faculdades” da consciência; a velha psicologia das faculdades [como sabemos] está morta. Mas talvez sua morte sirva para liberar o termo para que ele ressurja entre os vivos agora com um novo significado, conveniente à fenomenologia. Assim, qualquer “visão” intuitiva e “originária” capaz de tornar presente uma pessoa com um objeto poderia ser chamada de faculdade; faculdade é, portanto, o tipo de meio pelo qual a pessoa chega à consciência da classe correspondente de entidades transcendentes à consciência. A percepção seria chamada de faculdade na medida em que é o tipo de meio através do qual nos tornamos conscientes das entidades do mundo espaço-temporal; a imaginação seria chamada de faculdade na medida em que é o tipo de meio através do qual nos tornamos conscientes de eventos imaginados; memória, o meio através do qual nos tornamos conscientes de eventos lembrados – um meio obviamente semelhante tanto à percepção quanto à imaginação. O senso moral seria o meio através do qual intuímos o bem; o senso estético seria o meio pelo qual intuímos a beleza; a intuição racional seria chamada de faculdade pela qual intuímos o verdadeiro. E assim por diante; a lista, como esperado, não é completa.
A primeira vantagem que surgirá do uso desta noção de faculdade será a necessária equalização da variedade de objetos que nos são apresentados [por tais faculdades] como transcendentes à consciência. O que quer que seja objeto para uma faculdade é uma entidade – ou seja, uma coisa em si –; a natureza de algumas entidades consiste em serem reais (no sentido de factual) e a natureza de outras consiste em serem ideais. Há certo tempo existe um preconceito que confunde os objetos ideais com as experiências através das quais tomamos ciência deles; as idéias têm sido frequentemente ditas como carentes de “existência” fora de nossa consciência. Mas o que quer que seja um objeto da consciência deve ser considerado como aquele que nos é apresentado, i.e., uma entidade com “existência” propriamente dita. Certas “sensações” ou “sentimentos” têm sido por vezes tratados como se fossem indistintos de sensações ou sentimentos de algo; mas no jargão fenomenológico nada que possa ser objeto para a consciência pode ser chamado de “imanente”: o que quer que possa ser objeto para a consciência é entidade e toda entidade é “transcendente”.
Agora é possível que todas as entidades sejam estudadas em e para si mesmas; a fenomenologia, crendo na máxima confiabilidade das evidências fornecidas pela consciência, assim nos aconselha: Caso queira conhecer a natureza de uma entidade, desfrute da faculdade através da qual a entidade se apresenta para si; use-a, viva-a como normalmente o faz, apenas o faça mais cuidadosamente do que o faria ordinariamente. Na vida real vives em suas faculdades voltando sua atenção sobre os objetos apresentados; pois então não mude ou suponha que muda o viés de sua atenção; apenas atenta para que não viva simultaneamente em uma pluralidade de faculdades a fim de não introduzir nuances de outras esferas de objetividade que não são essenciais àquela que se escolheu examinar. Certifique-se, em especial, de não introduzir nenhum elemento de auto-consciência em suas observações (pois o meio pelo qual o Ego apreende o self consiste numa faculdade distinta). Tendo separado os objetos da esfera selecionada de todas as outras, disciplinado a si mesmo, i.e., no uso de apenas uma faculdade, deves certificar-se de que, ao tentar a indução através dos facta, observe leis próprias a eles e não lhe imponha leis que tu ou outro tenham crido como válidas em outras esferas que não aquelas postas agora em questão. Exemplos de tais hipóstases são comuns; as características do verdadeiro, do belo e do bom têm sido frequentemente alargadas para que expliquem o comportamento de objetos pertencentes a outras esferas; o próprio nome “metafísica” sugere que o assim chamado ramo da filosofia prosperará, como tantas vezes o fez, sobre a hipóstase racional, digo, a hipóstase de leis objetivas à faculdade da intuição racional a objetos tornados presentes por outras faculdades. Por outro lado, a tentação da hipóstase empírica, a aplicação de princípios físicos, em especial o de causalidade, a esferas não-físicas têm se mostrado, por vezes, irresistível aos pensadores que se aproximam da filosofia e da psicologia do ponto de vista da ciência natural.
A menção de tais hipóstases sugere uma comparação entre a fenomenologia e a lógica, por um lado, e da fenomenologia como a psicologia por outro; tanto uma como a outra podem fornecer um meio de abordar as concepções fenomenológicas e o método fenomenológico.
A pretensão da filosofia de considerar-se como a ciência mãe tem sido freqüentemente considerada para que se encontre sua justificação no fato de que, dado que todo o conhecimento científico é, em última análise, conhecimento racionalizado, o exame das leis da razão deve levar à formulação de um corpo de princípios a priori que deve ser reconhecido como o fundamento de toda a ciência.[10] A fenomenologia, embora admita a dependência formal de todo o conhecimento abstrato dos princípios da razão enquanto estabelecidos pela lógica, nega que esta justificativa racional do conhecimento científico forneça à filosofia seu a priori definitivo; por outro lado, afirma que o a priori lógico está, em si mesmo, carente de uma fundamentação que a descrição fenomenológica pode proporcionar. E é um erro fundamental, já muitas vezes notado, supor que um corpo específico de leis em geral é essencialmente alheio e não possui referência à esfera objetiva de onde foi retirado, i.e., de onde foi abstraído.[11] Todo conhecimento é objetivo caso possua uma referência a entidades objetivas à consciência; as leis gerais do movimento, por exemplo, são verdadeiras em referência não aos movimentos particulares de determinados corpos, embora os condicionem, mas a corpos móveis em geral. Mas, sendo assim geral em sua natureza [a lei do movimento] e um a priori de todo movimento particular – sendo impossível que qualquer corpo seja móvel senão em conformidade com tais princípios – estes princípios obviamente possuem referência ao mundo objetivo espaço-temporal tal como nos é apresentado a partir da faculdade da percepção. Comparando as leis do movimento com os princípios da forma da razão, os últimos podem ser ditos como “subjacentes” aos primeiros; não seria possível formular as leis gerais do movimento exceto em conformidade os princípios formais da razão – e, em verdade, não podem haver quaisquer formulações de princípios gerais exceto em conformidade com tais princípios. Admite-se, por conseguinte, que os princípios formais da razão encontram-se numa mesma relação com os princípios mecânicos do movimento assim como tais princípios relacionam-se com o movimento observado nos corpos determinados. Podemos falar de corpos de princípios apriorísticos como contendo graus de a-prioridade; os princípios formais da razão têm maior grau de a-prioridade em relação aos princípios gerais do movimento, mas ainda assim não possuem máxima a-prioridade. A que os princípios formais se referem? Eles se referem a idéias abstratas que, por sua vez, referem-se a entidades das quais foram retiradas. Agora já não resta, como desejariam outros, mistério algum que ligue-se a idéias abstratas. Enquanto que, psicologicamente, a mente as encontra através de uma processo de abstração de particulares e concentrando sua atenção na observação da identidade e da diferença, ainda assim, nos termos de significação objetiva, elas são entidades de natureza própria. Elas são tornadas presentes como objetos à consciência através da faculdade intuitiva da razão; se quiser compreender sua natureza, devemos desfrutar, vivenciar nossa faculdade e observar as características e o “comportamento” dessas idéias à medida em que nos forem apresentadas. Enquanto nossos objetos do primeiro exemplo, de observar a realidade de certos corpos em movimento, agora devemos observar a idealidade de idéias abstratas; no caso da investigação do movimento, o abstraímos dos particulares e observamos sua identidade na diferença para que cheguemos ao princípio do movimento em si mesmo; já no caso da investigação da idéia realizamos uma operação semelhante. Embora seja incomum que chamemos as idéias gerais de “particulares”, dado serem abstratas, ainda podemos chamá-las de “particulares” por conta de seu conteúdo e, assim, enfatizar a analogia entre os dois casos de abstração. Ao passarmos da observação de idéias abstratas particulares à formulação dos princípios gerais (os princípios lógicos) das idéias abstratas em geral, novamente abstraímos nossos objetos mantendo nossa atenção sobre a identidade na diferença.
Fim da primeira parte
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Bônus: Recomendações de leitura ao interessado em Edmund Husserl
Comentário: este que vos fala possui histórias engraçadas acerca da leitura de Husserl. Uma delas consiste num dos grandes dramas de todo estudante desavisado, a saber, adquirir algum livro do dito cujo – no meu caso, os dois volumes das Investigações Lógicas – e não entender nada após consecutivas e frustradas tentativas de leitura. Isso se dá por Husserl reunir duas características capitais frustrantes a muitos: ele não é apenas um filósofo avançado como também um matemático; sendo assim, sem alguma experiência com ambas as áreas, nosso querido autor se torna inacessível. Há ainda outro agravante a se notar: a fenomenologia, principal criação husserliana, é muito facilmente deturpada. Ainda que haja muitos livros pretensamente introdutórios à fenomenologia, alguns comicamente voltados a leigos, a verdade é que, ao menos até onde sei, o único modo de aprender como a fenomenologia funciona é lendo seu criador e/ou ao menos alguns de seus discípulos – como o Salmon, autor do artigo que o leitor acaba de conferir. Digo isso, em especial, por ter caído na ilusão de saber algo de fenomenologia após ler a Introdução à Fenomenologia da Angela Ales Bello e, crendo que autora fora genial por me ensinar algo tão complicado de forma tão simples, fui desmentido pela vida real e por Alfred Schutz, que alerta:
A tentativa de reduzir o trabalho de um grande filósofo a algumas proposições básicas ao alcance de um público não-familiarizado com o seu pensamento é, em regra, um empreendimento frustrado. E, com relação à Fenomenologia de Husserl, existem diversas dificuldades especiais. […] Só através de análises cuidadosas, firme consistência e de uma mudança radical nos nossos hábitos de pensamento é que podemos esperar revelar a esfera de uma “filosofia primeira”, que leve em conta os requisitos que uma “ciência exata” digna do nome exige.
Alfred Schutz – Fenomenologia e Relações Sociais p.53-54
Sendo assim, não quero iludir o estudante; não há leitura lenta que o faça entender as Investigações Lógicas corretamente. É como passar horas decorando as formas de um quadro esperando que com isso se aprenda a pintá-lo; podemos passar boas horas observando a Lady Agnew de Singer Sargent e, no fim das contas, desenhar, no máximo, um boneco palito.
Avisos dados, as recomendações não possuem surpresas; é preciso ler a obra capital de Edmund Husserl, a saber, Investigações Lógicas vol.1 e Investigações Lógicas vol.2. Há ainda um “apêndice”, escrito mais tarde, uma sexta investigação, que jaz disponível apenas no volume de Edmund Husserl da coleção Os Pensadores. A maioria dos autores da chamada fenomenologia realista considera este o núcleo da filosofia husserliana e foca seu esforços em aperfeiçoá-la em detrimento das teses expostas em outros livros. Caso o leitor deseje, é muito interessante, antes de tudo, conferir o artigo A Filosofia enquanto Ciência Rigorosa [Philosophie als strenge wissenschaft]. Logo em seguida é possível ler o Idéias para uma Fenomenologia Pura e uma Filosofia Fenomenológica e, encerrado este, já não há mais recomendação alguma no que se refere a uma ordem e leitura. Os Meditações Cartesianas e A Crise das Ciências Européias poderão ser lidos a qualquer momento. Para além das fontes primárias, recomenda-se ler algo sobre Husserl em sua história da filosofia favorita, como a do Reale. Recomenda-se ainda a leitura do Textos sobre Husserl e Tomás de Aquino, de Edith Stein, visto que os paralelos ali apontados podem auxiliar o estudante afeito à filosofia escolástica a entender melhor o pensamento husserliano.
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Notas:
[1] Mais tarde, em Idéias para uma Fenomenologia Pura e para uma Filosofia Fenomenológica, Husserl dirá que sua fenomenologia será uma essência eidética dedicada ao estudo das essências puras, como podemos conferir, por exemplo, aqui: “Uma vez que aqui a fenomenologia deve ser fundada como uma ciência de essência – uma ciência “a priori” ou, como também dizemos, uma ciência eidética, é útil fazer todos os esforços consagrados à própria fenomenologia serem precedidos de uma série de discussões fundamentais sobre essência e ciência de essência e de uma defesa da legitimidade original própria do conhecimento eidético diante do naturalismo.” Op. Cit. p.29. [N.E.]
[2] Ou, a consciência é uma função expressa pelo “consciência é estar consciente de algo” – como dito em Meditações Cartesianas e conferência de Paris p.11 [A propriedade fundamental dos modos de consciência em que eu, enquanto eu, vivo, é a chamada intencionalidade, é, em cada caso, o ter consciência de qualquer coisa.] –; é uma função reconhecida por sua operação e não uma substância. Pode-se dizer, ainda, que ela é uma espécie de potência. [N.E.]
[3] A consciência que temos de nós mesmos é possibilitada pela consciência que temos do mundo; nesse sentido o idealismo, especialmente o solipsista, é uma inversão do processo natural do conhecimento na medida em que coloca como prioritário um sujeito que só pode reconhecer-se enquanto tal na medida em que é consciente do que há “fora” de si. Essa inversão será chamada por Eric Voegelin de certa deformação da Distância Reflexiva que tomamos ao tratarmo-nos como sujeitos para além das coisas para fim de pesquisa; o idealista tratar-se-ia como para além das coisas como se realmente estivesse alheio. [N.E.]
[4] Aqui temos o sentido de “consciência ser consciência de algo” [N.E.]
[5] Nesse sentido temos, a relação entre sujeito e objeto como, no jargão voegeliano, estrutural à consciência. Husserl e outros fenomenólogos dirão que tal relação, essencial à consciência enquanto deve seu ser à sua operação – consciência é ter consciência de algo – serve como uma das muitas provas possíveis de nosso contato, de certa forma necessário, com uma realidade externa a nós, eliminando a possibilidade mesma de um solipsismo. Podemos encontrar um exemplo em Meditações Cartesianas e Conferência de Paris p.31: “Posso eu fazê-lo enquanto homem natural, posso eu, enquanto tal, questionar seriamente e de um modo transcendental: “como poderei sair da ilha da minha consciência e como poderá adquirir significação objetiva aquilo que surge na minha consciência como vivência da evidência?” Porquanto me aperceba como homem natural, já terei tido de antemão uma apercepção do mundo espacial, já me terei apreendido como estando no espaço, no qual terei, portanto, um fora-de-mim! Não estará, por conseguinte, a validade da apercepção do mundo já pressuposta na própria posição da questão, se bem que só da sua resposta pudesse resultar, em geral, a justificação dessa mesma validade objetiva?” [N.E.]
[6] Aqui temos uma distinção análoga aos juízos de experiência e os juízos de percepção encontrados na Crítica da Razão Pura e que são largamente utilizados por Husserl. [N.E.]
[7] Stout – Manual of Psychology, 4th ed., 1922, p.9 [N.A.]
[8] Op. Cit. 3rd. 1924, p.109. [N.A.]
[9] O “lastro” comentado por Schopenhauer, por exemplo, de forma irônica, em Sobre a Quadrúplice Raiz do Princípio de Razão Suficiente p.49: “De resto, a resposta simples a uma tal demonstração ontológica é a seguinte: “Tudo depende de onde te vem teu conceito: ele foi extraído da experiência? À la bonne heure [na hora propicia] existe seu objeto, e não carece de nenhuma demonstração ulterior. Desenganchaste-o de sua própria sinciput [cabeça oca]? Então em nada o ajudam todos os seus predicados, tu teces ficções.” [N.E.]
[10] Esse é, de certa forma, o projeto kantiano, na medida em que, através de um “mapeamento da razão pura”, o filósofo procurou pelos princípios necessários à formulação dos juízos em geral que determinariam as formas do conhecimento e, em especial, do científico. [N.E.]
[11] Esse é, de forma simples, o erro capital do nominalismo, na medida em que este “desliga” os “nomes” de seus objetos, a saber, as coisas. [N.E.]
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