Por Edward Feser
Tradução, notas e comentários de Helkein Filosofia
É famoso o ensinamento de Cristo: “Não julgueis, para que não sejais julgados” (Mt. 7:1). Como apontado por Sto. Tomás de Aquino, Cristo não pretende impugnar quaisquer ajuizamentos acerca das ações ou caráter alheio mas, inversamente, condena o julgamento multiplamente deficiente, como lemos no exemplo:
“[…] portanto, deve-se dizer que no lugar citado, o Senhor proíbe o juízo temerário, tendo por objeto as intenções secretas do coração ou outros domínios incertos, como diz Agostinho. – Ou então, interdiz que se julgue das coisas divinas, pois estando acima de nós, não as devemos julgar mas crer nelas simplesmente, assim o explica Hilário. – Ou condena todo julga mento, inspirado não pela benevolência, mas pelo ressentimento amargo. Tal é a interpretação de Crisóstomo.” S. Th. II-II q.60 a.2 Ad.1
Semelhantemente e no mesmo artigo, Sto. Tomás expõe que num ajuizamento “se alguém julga sem autoridade, o juízo será usurpado. Enfim, se carece da certeza, quando por exemplo, se julga de coisas duvidosas e obscuras, apoiando-se em simples conjecturas, o juízo será qualificado de suspeito e temerário.”[1] Ele prosseguirá comentando, nos dois artigos seguintes, a natureza do estado de espírito suspeito que leva ao julgamento precipitado.
Em primeiro lugar, Sto. Tomás identifica as três causas de tal estado de espírito: a primeira é aquela “longa experiência” típica dos mais velhos que, neste caso, fazem com que os ajuizamentos dela resultantes possuam caráter insuspeito na medida em que a experiência produz maior certeza; por outro lado, as outras duas causas envolvem a “perversão dos afetos”. As fontes de suspeita que levam a um julgamento precipitado são:
“1º Alguém é mau em si mesmo e, consciente de sua própria malícia, atribui facilmente o mal aos outros. Como diz o Eclesiastes: “Indo pelos caminhos, o insensato, porque é desprovido de razão, julga que todos os demais são insensatos.” – 2º Alguém está mal disposto com seu próximo. Ora, quando um homem despreza ou detesta um outro, contra ele se irrita ou então o inveja, os mais leves indícios bastarão para o julgar culpado. Pois, cada um crê facilmente o que deseja.” S. Th. II-II q.60 a.3 Resp.
Sendo assim, “por isso, toda a suspeita é algo viciosa, e quanto mais se afirma como suspeita, tanto mais viciosa é.”[2] O pecado em questão pode, entretanto, ser meramente venial caso a pessoa duvide precipitadamente da bondade de outra; entretanto, quando “tem por certa a malícia de outrem, fundando-se em leves indícios […] a matéria é grave, há pecado mortal, pois tal suspeita não vai sem o desprezo do próximo”[3] e, ainda que não expresso, o ajuizamento permanece pecaminoso “pelo fato mesmo de alguém ter má opinião de outrem sem causa suficiente”, comenta Sto. Tomás, “já o despreza indevidamente, e portanto o injuria.”[4] Por outro lado, A exposição pública [do pecado] é sempre mais grave, uma vez que “deve-se dizer que a justiça e a injustiça visam os atos exteriores, já foi explicado. O julgamento, fundado na suspeita implica diretamente injustiça, quando passa a um ato exterior. É então pecado mortal, já foi dito.”[5]
Em segundo lugar, Sto. Tomás ensina que um estado de espírito moralmente saudável requer que se conceda ao próximo, por assim dizer, uma presunção de inocência:
Como se acaba de ver, quem tem uma má opinião do próximo, sem motivo suficiente, o injuria e despreza. Ora ninguém deve desprezar a outrem ou lhe causar dano, sem motivo que o obrigue. Por isso, enquanto os indícios de perversidade de alguém não são evidentes, devemos tê-lo como bom e interpretar no melhor sentido o que nele é duvidoso. S. Th. II-II q.60 a.4 Resp.
Sendo assim, “havemos, portanto, de nos esforçar por pronunciar sobre outrem um juízo favorável, a menos que haja uma razão evidente no sentido contrário.”[6] Sto. Tomás argumenta que com certeza podemos nos enganar caso assim procedamos, mas ainda assim é preferível ao que se segue caso não concedamos ao outro certa presunção de inocência:
[…] portanto, deve-se dizer que pode acontecer que se engane com mais freqüência quem interpreta sempre no bom sentido o que é duvidoso Mas, é melhor enganar-se mais freqüentemente, formando uma boa opinião de um homem mau do que enganar-se raras vezes, tendo má opinião de um homem bom. Nesse último caso, se comete injustiça contra o próximo, não porém no primeiro. S. Th. II-II q.60 a.4 ad.1
Urge que se diga que a presunção de inocência não é apenas boa moral e boa legislação mas, antes de tudo, boa lógica. Assim como aprende o estudante que visa o senso crítico, ao examinarmos um argumento adversário, devemos interpretá-lo de acordo com o “princípio de caridade”, digo, caso o argumento possua uma interpretação mais e outra menos razoável, é necessário que presumamos que a pretendida pelo orador foi a primeira – a menos que tenhamos razões sólidas para crer que foi a segunda. Trata-se de não apenas um princípio básico acerca da imparcialidade para com outra pessoa mas de boa metodologia, dado que o objetivo da lógica não é vencer debates mas descobrir o que é verdadeiro. Caso rejeitemos precipitadamente uma discussão, talvez percamos alguma verdade importante que poderia ter sido apreendida se tivéssemos considerado o tema com mais cuidado.
Podemos avançar um pouco mais. A virtude consiste numa mediania entre os extremos, e assim como é possível ser rápido em ajuizar e atribuir o mal aos outros, também pode-se ser demasiado lento. Sto. Tomás não afirma que jamais devamos julgar outrem por ter maus motivos; ele afirma que não o devemos, por exemplos, caso não possuamos provas o suficiente para prosseguir corretamente ou estejamos com nosso juízo nublado por certa antipatia pela pessoa e assim por diante. Entretanto, em relação à algumas pessoas, é possível ajuizar objetivamente, a partir de seus padrões comportamentais ao longo do tempo, que agem por maus motivos sem que haja pecado algum [em ajuizar] sob tais circunstâncias, dado que a constante recusa em procedê-lo pode ser um vício.[7] Como comentei em outro lugar,[8] Sto. Tomás argumenta que, assim como é possível pecar por estar excessivamente zangado ou insuficientemente [afável ou] amigável, é possível pecar por estar insuficientemente indignado ou excessivamente afável diante de um mal grave.[9] O dogma do “não-jugueis”, nesse caso, seria uma falha moral de tom semelhante – e assim, por conseguinte, não o ensinamento de Cristo, mas sua distorção.
Seguindo pelo mesmo caminho, no contexto da mídia [de massa] contemporânea, o pecado mais comum é, de longe, o do julgamento precipitado. De fato, o intercurso entre as mídias sociais e os discurso político parece consistir em um pouco mais do que o ajuizamento precipitado nos moldes do Aquinate – digo, no ajuizar sobre a “intenção interna ou outras coisas incertas” acerca de outra pessoa, algo que “procede não da benevolência mas da amargura do coração” –, dado que os opositores são constantemente demonizados, condenados antes como perversos do que como errados e tendo seus argumentos e reivindicações aprioristicamente descartados como provenientes de segundas intenções sem que haja qualquer consideração fria ou escrutínio regrado pela força das evidências e da lógica. A própria noção de que haja um bem comum que transcenda as discordâncias partidárias, certos padrões de racionalidade compartilhados sobre os quais as discordâncias possam ser discutidas de boa-fé, parece ser posta sob suspeita como implicando um vender-se ao inimigo, visto que as diferenças políticas são atribuídas antes a cálculos sórdidos do que a opiniões equivocadas, embora sinceras, sobre o que é melhor para o país.
Isto, como é de se esperar, não nega que algumas pessoas sejam realmente perversas; a questão consiste em que o partidarismo se tornou tão rancoroso, a mídia eletrônica tão central para as interações sociais e para a política moderna, que muitas pessoas se tornaram incapazes de ver e julgar umas às outras enquanto indivíduos concretos. Elas formaram uma concepção geral caricaturada das crenças e motivações daqueles com quem discordam, projetando-a sobre as pessoas reais com as interagem – e como não lidam com seus opositores de forma real mas apenas via representações eletrônicas (televisão, Twitter, comentários em blogs e similares), a caricatura se torna de difícil remoção. Não importa o que a outra pessoa diga, presume-se que o que ela “realmente” pensa consista naquela caricatura que representa o modo de pensar de pessoas como ela, e dado que a pessoa possivelmente reagirá com raiva à seu sinistro, tal comportamento será tomado como uma espécie de confirmação.
O problema descrito jaz tanto no intelecto quanto na vontade. Habita no intelecto na medida em que tal forma de lidar com os outros comumente envolve o cometimento de uma série de falácia lógicas, por exemplo, o ad hominem circunstancial, que consiste em fingir refutar o argumento através da alegação de identificado algum motivo suspeito no outro; há a falácia do poço envenenado, que consiste em lançar dúvidas acerca do caráter alheio em vez de atentar a seus argumentos; há a culpa por associação, que consiste em atribuir visão X a uma pessoa que crê em Y apenas por outras pessoas que crêem em Y estarem associadas a X; há o ad hominem abusivo, que consiste em atirar um rótulo pejorativo (“racista”, “fascista”, “comunista” etc.) a outrem como se fosse o suficiente para refutar seus argumentos; e há o grande competidor do ad hominem pelo posto de falácia mais popular das mídias sociais: o tu quoque, que consiste em acusar o outro de hipocrisia, supondo que com isso tenha impugnado seus argumentos e reivindicações.
O problema habitará na vontade na medida em que ela não for direcionada ao bem de outrem. Mesmo que a outra pessoa esteja errada, a caridade exige que consideremos a possibilidade de que ela esteja agindo de boa fé e que nos esforcemos para interagir com ela de forma que possamos leva-la a reconsiderar suas concepções em vez de enrijecê-las, dado que pode haver alguma verdade no dito pelo outro e é injusto que rejeitemos essa possiblidade, que jaz para além de nosso controle, devido à mera hostilidade. Os seres humanos, enquanto animais racionais, naturalmente crêem ser injusto que o que consideram (com ou sem razão) como argumentos racionais a favor de algo são prontamente descartados, e pecamos contra a caridade quando ignoramos o que outra pessoa diz ao preferimos, em vez disso, imputar-lhe motivos pérfidos ou opiniões que podem não endossar.
Novamente a questão não consiste em negar que as pessoas por vezes tenham opiniões errôneas ou motivos pérfidos, e nem em negar que em alguns casos seja justificável certa rispidez quando [suas opiniões são] perigosas e apresentadas de forma desagradável e irracional. A questão consiste em afirmar que a rispidez deve ser um último recurso, não o primeiro, e que as pessoas tendem a ser muito “rápidas no gatilho” quando se trata dos meios de comunicação de massa. Como dito por Sto. Tomás, “quando um homem despreza ou detesta um outro, contra ele se irrita ou então o inveja, os mais leves indícios bastarão para o julgar culpado. Pois, cada um crê facilmente o que deseja.”[10] Gostamos de crer que a razão de não gostarmos de alguém seja por ela ter segundas intenções ou pontos de vista irracionais, mas por vezes lhe atribuímos tais características por não gostarmos dela. Se não gostássemos tanto de imputar nossa opiniões sobre as pessoas poderíamos descobrir que elas não são, de fato, tão ruins quanto supúnhamos.
Uma boa prática consiste no seguinte: quando alguém cujas opiniões contrárias às suas tentar se envolver contigo de maneira civilizada e razoável – ou, caso não o faça, pelo menos que seja assim após vossa tentativa de “baixar a temperatura” para que as ocorram civilizadamente –, considere contrário à razão e à caridade não lhe conceder o benefício da dúvida. Há, definitivamente, muitas pessoas pela rede que definitivamente não são assim – e que permanecem tóxicas e irracionais não importa o quão paciente e civilizado seja possível ser com elas –, mas também há aquelas que se comportariam de forma mais razoável apenas se fôssemos um pouco mais razoáveis com elas.
Outra boa prática consiste em que consideremos, antes de publicar quaisquer comentários em redes sociais ou qualquer lugar que seja, como será no dia do juízo final, quando, adverte Cristo, “digo-vos que de qualquer palavra ociosa que tiverem proferido os homens, darão conta dela no dia do juízo. Porque pelas tuas palavras será justificado ou condenado” (Mt.12:36-37).
Nota do Tradutor:
Todos os trechos bíblicos foram retirados da edição do Pe. Matos Soares de 1956. Trechos de Sto. Tomás retirados de Suma Teológica Vol. VI na versão da Edições Loyola. Original disponível aqui
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Bibliografia Recomendada:
- Alasdair MacIntyre – Depois da Virtude: um Estudo Sobre Teoria Moral
- Aristóteles – Ética a Nicômaco
- Bernardo Veiga – A Ética das Virtudes segundo Tomás de Aquino
- Douglas N. Walton – Lógica Informal
- São Josemaria Escrivá – Caminho, Sulco e Forja
- Sto. Tomás de Aquino – Suma Teológica Vol. VI
- Theodore Dalrymple – A Vida na Sarjeta: O Círculo Vicioso da Miséria Moral
- Theodore Dalrymple – Nossa Cultura…Ou o que Restou Dela
Notas:
[1] S. Th. II-II q.60 a.2 Resp. [N.T.]
[2] S. Th. II-II q.60 a.3 Resp. [N.T.]
[3] S. Th. II-II q.60 a.3 Resp. [N.T.]
[4] S. Th. II-II q.60 a.3 ad.2 [N.T.]
[5] S. Th. II-II q.60 a.3 ad.3 [N.T.]
[6] S. Th. II-II q.60 a.4 ad.2 [N.T.]
[7] Feser aplica princípios aristotélicos. Lemos na Ética a Nicômaco que virtudes e vícios são hábitos diferenciados por ser direcionamento: quanto um aponta para o bem, outro para o mal. Não temos motivos sólidos para ler que um vicioso costumaz agirá de forma diversa o que normalmente tem feito. Não proceder assim, esperando ingenuamente que as coisas mudem num passo de mágica, pode ser um indício de covardia. [N.T.]
[8] Edward Feser – Against Candy-Ass Christians [N.T.]
[9] Estado vicioso chamado de tibieza. É possível multiplicar os exemplos ao infinito, mas creio que seja benéfico que aduzamos alguns: não indignar-se ao ver a própria mãe apanhar, ao ter os símbolos de sua própria religião profanados em festas populares ou manifestações “à favor da liberdade de expressão”, ao ver criminosos notórios sendo ovacionados, enfim, ao presenciar injustiças graves. [N.T.]
[10] S. Th. II-II q.60 a.3 Resp. [N.T.]
Do mesmo autor:
Nietzsche, Cristo e o Sofrimento
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