1. Introdução
Outra parte caiu entre os espinhos; e cresceram os espinhos, e a sufocaram. Outra parte, enfim, caiu em boa terra, e frutificou; uns grãos deram cem por um, outros sessenta, outros trinta. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça.
O presente ensaio destina-se a complementar Conselhos ao Estudante de Filosofia. Em nosso escrito anterior abordamos algumas das principais dúvidas referentes ao estudo da filosofia: do que trata a matéria, da relação entre a filosofia e sua história, as várias ambiguidades e falsidades atribuídas ao seu conteúdo, formas de iniciar os estudos de modo seguro e até como roteirizá-lo de forma simples. Entretanto, o que foi dito jaz aquém da suficiência e não poderíamos esperar algo diverso tendo em vista que um ensaio não pode pretender o peso de um livro e, sendo um pouco mais realista, é duvidoso que seja possível que apenas um livro abarque tal multiplicidade temática. Por outro lado, da mesma forma que a filosofia jamais esgotará sequer a essência de uma mosca, podemos ilustrar nossas intenções através de um tratamento que inclua novos ângulos. Num primeiro momento refletiremos acerca do critério de seleção do que escolher como material para nossos estudos e, num segundo, avaliaremos um dos maiores inimigos do leigo: a ansiedade.
2. O Joio e o Trigo
Tendo crescido a erva e dado fruto, apareceu então a cizânia
Há muito se discute sobre qual seria a melhor forma de introduzir o leigo à filosofia e, por conseguinte, que materiais facilitariam seu ingresso. Dentre as várias opiniões que circulam entre a elasticidade e a rigidez, i.e., aquela que proclama que qualquer coisa serve e sua contraparte que advoga certa seleta, corremos o risco de nos rendermos ao politeísmo opinativo e deixar a questão de lado.[1] Mas seria este o melhor caminho? Claro que, num arroubo wittgensteiniano, poderíamos responder que “a solução do problema […] nota-se no esvanecimento do problema”;[2] mas fingir a inexistência da questão não nos exime de suas consequências e, sendo assim, a título de complemento dos resultados de nosso ensaio pregresso, refletiremos uma vez mais acerca do melhor modo de introduzirmo-nos à filosofia.
A questão, num primeiro momento, pode apresentar tons de resolução antecipada; tomando como mote o velho ditado de que a primeira impressão é aquela que fica. Na iminência de uma visita, desejamos que a pessoa encontre nossa casa posta em seu melhor estado e, aplicando o provérbio ao nosso assunto, caso um amigo se interesse pelas letras, basta que encontremos o que houver de melhor em nossas bibliotecas para que a recomendação cative o espírito do curioso – sendo que normalmente o que há de melhor são aqueles livros que, testados pelo tempo e pela crítica, sobreviveram para receber o nome de clássicos.[3] Por outro lado, a cruel realidade nos impede de levar a regra a cabo: como introduzir à filosofia – utilizando, por exemplo, Platão – pessoas cuja atenção comumente mal suporta vídeos de quinze segundos?[4] Sendo assim, a questão se torna mais restrita e somos forçados a procurar pelo melhor material que houver na medida em que exponha, sob expressão acessível, o assunto o máximo de fidelidade que puder. Vejamos como isso pode acontecer.
3. Critérios de Avaliação
– Aqui ninguém sabe ler.
Pronunciou essas palavras sem o menor tom de desculpa ou constrangimento: disse-as agressivamente, como uma espécie de feroz orgulho, como se não saber ler fosse uma virtude.[5]
Reflitamos acerca do critério clássico (sic) que reza “o que importa é que está lendo ou ouvindo” e o chamemos de critério de tolerância exagerada: normalmente dizemos “o que importa” na intenção de apontar aquilo que é essencial em algo e, portanto, prioritário em relação a seus aspectos acessórios; por outro lado, o mero essencial tende a contrastar com o suficiente.[6]
Tomemos algumas situações como exemplo: quando um carro está caindo aos pedaços dizemos que “o que importa é que está pago/que está andando”; quando as roupas já não diferem de trapos é dito que “pelo menos vestem”.[7] O critério parece impor-se, no limite, quando o que está à mão jaz abaixo do padrão aceitável, talvez como paliativo emocional que, seja num epicurismo disforme ou num estoicismo duvidoso, tenta fazer com que as pequenas coisas soem prazerosas; mas o dado é que nesse caso a boca diz algo que decerto não reflete o que há no coração.
Isso fica evidente, pois, assim que os tempos de vacas magras cessam, tanto o carro quanto a roupa são descartados. Transpondo o critério para leituras, caso tentemos utilizá-lo de forma irrestrita, concluiremos que qualquer uma será lícita enquanto tal; mas o dado é que, levando em conta seu aspecto meramente material, muito dificilmente alguém pensará assim. Ilustremos nosso pensamento tomando como exemplo a aplicação de faixas etárias em filmes: ainda que em nosso país seja comum que pais permitam que seus filhos assistam a produções contendo cenas que fariam o Marquês de Sade corar, é desconfortável pensar que um amigo ou conhecido assistiu algo como A Centopéia Humana e gostou.
Spoilers do enredo do filme.
Poderíamos ainda olhar o abismo um pouco mais de perto e imaginar um sujeito que não apenas sente prazer em tais filmes duvidosos como os recomenda para seus filhos pequenos; entretanto, para que evitemos a sindérese, digo, o hábito natural que distingue entre o certo e o errado do leitor exploda, é melhor que encerremos a confecção de exemplos.[8] O que devemos reter da discussão é o seguinte: livros não são meros livros e filmes não são meros filmes: eles possuem um conteúdo que não pode ser ignorado e, de fato, não os ignoramos, tendo em vista que o mesmo hábito de pudor que busquei pôr a lume pressiona nossos freios quando pensamos, por exemplo, em clássicos da literatura nacional de forma e conteúdo duvidoso[9]. Não ignoramos que tais livros sejam recomendados até em escolas, mas não podemos internalizar a mediocridade em nossos corações apenas por ela ter sido institucionalizada.
Por outro lado, muitos esbravejam ao tomar nota das nuances postas a lume; por quê? Foi sugerido que o critério de tolerância exagerada seja não mais do que uma expressão emocional, uma abstração utilizada como paliativo para que não vejamos não só que não o praticamos como também que é usado para nublar a percepção não apenas de que o essencial não é suficiente como há uma absorção da particularidade das situações na generalidade das teses. Então, em defesa do conteúdo duvidoso, em primeiro lugar, se diz que “pelo menos está lendo” e em segundo que “livro é livro” como se não houvesse diferença alguma entre eles. Nos é permitido ainda pensar na possibilidade de ligação sentimental entre o que recomenda e o recomendado, o que faz com que a pessoa nivele coisas não niveláveis e assim ocorre, por exemplo, quando um sujeito, por nostalgia, recomenda um filme que lhe pareceu muito bom quando visto na infância, mas, ao reassistí-lo, percebe que nunca mais repetirá o feito. Dito de outro modo, existe por tendermos a recomendar aquilo que foi parte de nossa vida, sendo nossa versão do jargão “no meu tempo era melhor” – mas sabemos que o material não passaria pelo crivo caso fosse avaliado sem o peso da nostalgia.
Entretanto, ainda que soe estranho aos mais sentimentais, livros, filmes, músicas e afins não são pessoas, como explicado por Schopenhauer:
É sempre um erro querer transferir para a literatura a tolerância que, na sociedade, é preciso ter com as pessoas estúpidas e descerebradas que se encontram por todo lado. Pois, na literatura, eles não passam de invasores desavergonhados, e desmerecer o que é ruim constitui uma obrigação em face do que é bom. Se nada parece ruim a alguém, também nada lhe parece bom. Em geral, a cordialidade proveniente da sociedade é um elemento estranho na literatura, com freqüência um elemento danoso, porque exige que se chame o ruim de bom, contrariando diretamente tanto os objetivos da ciência quanto os da arte.
Arthur Schopenhauer – A Arte de Escrever p.35
4. Respeito à inteligência do leigo.
Munidos da saudável noção de que qualquer coisa não serve, agora nos é permitido tratar com mais leveza acerca de materiais introdutórios. Tomamos nota, através de exemplos, de que percebemos naturalmente que alguns materiais são adequados e outros não; por outro lado, como selecionar o material adequado para nossos estudos, a saber, os filosóficos? Já temos em mãos a fórmula de que o melhor material que houver será aquele que expuser acessivelmente o assunto mantendo o máximo de fidelidade; por conseguinte, é preciso clarificar o que queremos dizer com fidelidade e acessibilidade.
Por acessibilidade [exposição formal] queremos expressar a melhor exposição possível do que a filosofia é e como ela funciona levando em conta que a pessoa que procura um livro introdutório nada sabe do assunto; portanto, atentamos à inteligibilidade expositiva da matéria. Um livro que simplifique o tema em demasia será simplório e um que complique demais será ininteligível e exigirá outro de antemão, o que não é desejável. Por conseguinte, deficiências neste critério impactam diretamente no conteúdo.
Nesse sentido, devemos ter em mente o público ao qual os livros de filosofia são dirigidos; tendo em vista que filósofo algum ensinou crianças, devemos excluir exposições infantis sob o risco de desrespeitar a inteligência do leitor: o leigo não é e não deve ser tratado como se fosse retardado. Não recomendamos audições de cantigas infantis àquele interessado em música e nem brincamos de “olha o aviãozinho” ao apresentarmos alguém à gastronomia. Da mesma forma, assuntos de adulto devem ser tratados como tais. Sendo assim, o livro mais acessível será aquele que expuser o que a filosofia é e faz de forma inteligível e que não exija do leigo muito mais do que um bom dicionário e algum esforço cognitivo. Caso o critério de acessibilidade falhe, manifestar-se-ão os vícios correspondentes à falta e ao excesso: no primeiro, há a diluição do conteúdo; no segundo, sua encriptação.
Por fidelidade [exposição material] queremos expressar a melhor exposição possível do que a filosofia é e de como funciona em referência à sua realidade; sendo assim, referimo-nos ao conteúdo real exposto fielmente, como se dá, sem rodeios. Um livro que não exponha, de fato, o que a filosofia é e faz segundo o exemplo do que os filósofos foram e fizeram, de nada serve por mais bem escrito que seja. Esse erro pode bifurcar-se em dois aspectos: no primeiro não se explica o que a filosofia é e, assim, temos uma deficiência de definição, circunscrição e escopo; no segundo não se explica o que a filosofia faz, e assim temos uma deficiência quanto à operação. Ambos os erros comumente nascem da incapacidade do autor de apontar o referente real da filosofia, a saber, a atividade dos filósofos.[10]
Nesse sentido, a fidelidade e a acessibilidade comportam-se como forma e conteúdo ou, num exemplo mais concreto, como a retórica comporta-se em relação a um tema qualquer enquanto objeto de exposição. Uma retórica ruim confunde o público; por outro lado, nem o mais apto dos retores pode salvar, senão perante os olhos do simplório, um conteúdo pífio.
Quando precisamos aprender um tema, por exemplo, química, procuramos um livro que nos explique o que a disciplina é e o que ela faz; por conseguinte, é necessário que o material em mãos explique da melhor forma possível antes o que a química é e como funciona para que tomemos nota, assim, de sua forma [sua definição mais ou menos sintética, objeto formal motivo e formal terminativo] e seu conteúdo [seus componentes e funcionamento, objeto material]; nesse sentido, de nada adianta termos em mãos um livro especializado sem que saibamos sequer ler a estrutura de uma molécula. O mesmo valerá para a filosofia; caso tenhamos em mãos um material que não explique direito o que a filosofia é, teremos um vício formal: confundiremos qualquer outra coisa com filosofia, pois não teremos em mãos nem sua razão de existência, seu “porquê” [objeto formal motivo] e nem sua finalidade [objeto formal terminativo]; caso tenhamos em mãos um material que não explique direito o que a filosofia faz, quem foram os filósofos e como trabalharam, teremos um vício material: confundiremos a atividade filosófica com qualquer outra [deficiência refere ao objeto material].
Livros que definam a filosofia, por exemplo, como mera busca da verdade, como ato de pensar bem ou qualquer coisa assim não possuem serventia alguma, pois as definições pecam por generalidade indevida; a rigor, qualquer outra disciplina busca alguma verdade e, do mesmo modo, qualquer outra exige um raciocínio correto.
Sendo assim, a fidelidade e a acessibilidade funcionam em conjunto para que se compreenda corretamente as notas essenciais do que a é filosofia, de como ela opera da forma mais inteligível possível sem que ocorra uma perda cognitiva. Muito curiosamente, como comentado por Voegelin, comumente livros que incluam investigações filosóficas em seu escopo precisam antes empreender um processo de clarificação do tema, através de uma miríade de exemplos e notas essenciais, para apenas em seu término poderem oferecer uma definição e, nesse sentido a explicação a antecede.[11] Isso ocorre porque definições postas de pronto tendem a ser conceitos esvaziados de seu conteúdo, e de nada adianta fornecer uma definição sintética de algo sem que saibamos a que ela se refere. Sendo assim, é prudente que a definição de filosofia seja construída no decorrer da obra para que, no término do percurso, o leigo tenha em mãos o conteúdo [matéria] do conceito [forma] proposto. Esta é, de certa forma, o procedimento socrático/platônico utilizado para a investigação filosófica, seguido também por Enrico Berti em seu Convite à Filosofia.
Comentemos um pouco a proposta através de alguns exemplos. Quanto à fidelidade do conteúdo, há a tendência de acreditar que qualquer coisa serve como introdução e que o importante é ter alguma experiência com a matéria, mas deve-se atentar que o contato com conteúdo vicioso é irrecomendável: uma mãe procura dar leite saudável a seu recém-nascido e não qualquer leite só por ser leite. Nesse sentido, o critério de irrestrição é uma abstração indevida: ele achata num nivelamento impossível coisas que sabemos que não podem ser niveladas. Na vida real e em condições normais não fazemos omelete com ovos podres do mesmo modo que não montamos computadores com processadores queimados. Atentemos que a coisa concreta nunca é considerada enquanto tal, mas sempre acompanhada de uma qualidade. Quanto ao conteúdo classificado como vicioso ou abaixo da média, devemos nos lembrar de que ele pode distorcer a experiência do leigo da mesma forma que, por exemplo, uma pessoa que come uma panqueca ruim pode adquirir nojo de panquecas em geral.
Quanto à acessibilidade do conteúdo pode-se aduzir que seja melhor “pegar leve” perante a introdução de um assunto complicado; mas tal facilitamento não raro é um eufemismo para desrespeito à inteligência. Diz-se que uma meia verdade é pior do que uma mentira, pois oculta o verdadeiro em prol de um ídolo, provérbio plenamente aplicável, por exemplo, ao fato de que um livro ou uma música ruim podem deformar a visão do leigo sobre o que é, de fato, a grande arte, mas que também ocorre quando nos referimos a livros de não-ficção por inserirem vícios de pensamento dos quais a pessoa pode nunca mais se livrar. Como exemplo exagerado, imaginemos o sujeito que, interessado em física, receba um livro que diga que a terra é plana – com direito a todos os (sic) cálculos possíveis e o experimento da régua no horizonte. Eis algo semelhante ao que ocorre com a filosofia, história ou qualquer outro assunto através de um livro de baixa qualidade, como podemos verificar na miríade de leigos incapazes de raciocinar senão através de ismos e achando muito estranho quando alguém não faz o mesmo.
Ao sermos assolados pela fome, procuramos comer algo sabendo que não nos fará mal; em condições normais, preferimos frutas frescas e pedaços de carne livres de vermes. Inversamente, quando se trata de filosofia, o critério de qualidade é substituído duplamente pelo critério da porta de entrada e o critério do leite de pedra, correspondentes ao vício formal da simplificação deformante e ao vício material da inadequação do conteúdo. O primeiro diz que qualquer coisa serve de iniciação desde que seja acessível e o segundo que em todo autor deve haver algo de bom que valha a pena. O critério gastronômico que vale para a saúde do corpo é ignorado quando referente à saúde da alma; caso observemos alguém comendo um danone que cheira mal, nos preocupamos com o dano à saúde da pessoa e não pensaremos em “pelo menos está comendo” ou “deve haver algo que valha a pena” no danone estragado. Novamente nos deparamos, quiçá, com razões emocionais: a pessoa pode não querer largar o autor ou por gostar muito dele, ou por não aceitar as consequências advindas de sua rejeição – e, assim, o único jeito de “salvá-lo” é “escavando-o” em busca de algo que, de tão único, reluza e apague as trevas que corrompem. Ambos os critérios soam como uma defesa da lâmpada incandescente em detrimento das LED pela primeira ser vintage. Novamente podemos pensar em parábolas; é sabido que quando o bolor toma conta do pão não é seguro que o retiremos para comer o resto; é saudável que reflitamos se o mesmo serve, analogamente, para livros.
5. Sentando na janelinha
Não existe, de fato, precocidade em filosofia, como existe em poesia, em música, em física, em religião. Todo suposto jovem gênio filosófico acaba por desmentir suas idéias de juventude…
Olavo de Carvalho – Dialética Simbólica p.12
Não é estranho que o estudante de filosofia comumente esteja aflito para praticar sua disciplina favorita e, ignorando pressa típica daqueles que iniciam um estudo, talvez tal ânsia advenha de certa inconsciente analogia matemática, nos tornamos capacitados a calcular logo após entendermos os rudimentos das operações; assim, por exemplo, a criança que aprende que ao juntar um dedo com o outro obtém a representação do número 2, passa a repetir o processo até que se canse de contar. Por outro lado, é possível deter-se um pouco mais e apontar que o entendimento precede a prática; antes que os dedos representassem alguma coisa foi feito um nexo entre a representação física, um conceito rudimentar de número enquanto certa unidade e por conseguinte a operação que faz com que um e outro resultem em mais algum. Assim compreendemos que a prática segue o entendimento, mas devemos reter que eles não se separam e, a rigor, não existem sem mescla de um no outro.
Aprender coisas, na prática, como tende a ser com artes marciais, requer que a prática informe a teoria; o instrutor ajusta a posição do aluno, demonstra como fazer o movimento e ajuda a entender como a arte funciona, e todos os que já passaram por tal experiência sabem que a prática real exige um bom período de aperfeiçoamento da técnica. Com música não é diferente e não é difícil encontrar pessoas que, não sabendo tocar violão ou cantar, tentaram e passaram vergonha. O exemplo musical tende a ser bem preciso por ser possível aprender a tocar violão em pouco tempo, ao menos rudimentarmente, mas músico algum o será sem ter passado um longo tempo estudando teoria[12] – afinal, como poderiam criar música sem conhecer suas regras? É possível aduzir exemplos ad nauseam, como o lapso teórico que pode causar lesões irreversíveis no praticante de musculação, mas o que nos compete é entender que aquele que aprender algo deve entender as regras antes de arriscar alguma coisa. Não é diferente com a filosofia.
Há um vício muito difundido que reza que a prática filosófica exige um pensamento crítico; portanto, o leigo deve adquiri-lo de pronto e sua forma de aquisição é a crítica; logo, começa-se praticando, ergo, criticando. Eis, grosso modo, a forma como emporcalhou-se o estudo da filosofia. Entretanto, cumpre notar que criticar é antes levar a cabo uma depuração do que um processo destrutivo: aquele que critica deve conhecer o objeto examinado e possuir o equipamento necessário para levar o exame ao seu termo. Assim ocorre, por exemplo, com o mecânico que abre o capô do carro ou técnico que opera diversos testes para que saiba o que há de errado com certa peça. Essa habilidade de depuração, verdadeiro pensamento crítico, possui duas facetas: o entendimento do objeto e a perícia na resolução do problema, ambos aspectos que exigem estudo e experiência, teoria e prática, e que atingem sua eficácia após tempo o suficiente para que o sujeito deixe de ser leigo. O chamado pensamento crítico, nesse sentido, é antes um hábito do que um método; trata-se de uma atividade teórico-prática segundo cânones e não de um processo de questionamento incessante, pois de nada serve um questionador que não faz as perguntas certas – que, por sua vez, exigem as notas citadas. Como comentado pro C.S. Lewis, aquele que não conhece um sistema moral de dentro está inapto a depurá-lo.[13]
Em A Filosofia e seu Inverso, Olavo de Carvalho nos fornece algumas distinções úteis. A primeira que nos interessa aqui contém dois itens: o ensino da filosofia enquanto técnica e a cultura filosófica. A segunda contém sete itens que seriam, na visão do autor, a coletânea de passos seguidos por todos os filósofos ao longo do tempo. Quanto à primeira distinção, temos o ensino da filosofia enquanto técnica que é passada pelo filósofo a seus discípulos, como o foi, por exemplo, de Sócrates para Platão e deste para Aristóteles. Portanto, temos uma relação semelhante à encontrada em guildas medievais em que os ofícios eram aprendidos com outros profissionais [espécie de “estágio”] ou como num dojo em que o aluno aprende com seu mestre. Por outro lado, a cultura filosófica refere-se ao recolhimento do resultado da produção filosófica contido, principalmente, em textos. A menos que o sujeito tenha o dom da filosofia e possa reproduzir a técnica por si mesmo, um erudito em filosofia muito raramente se tornará um filósofo, mesmo que encontre um mestre. O erudito, nesse caso, pode ser comparado ao sommellier de vinhos: ele sabe apreciá-los e conhece muito bem sua história, mas é incapaz produzi-los – e, caso tente, teremos algo como um suco de uva de propriedades peculiares.[14]
Referente à segunda distinção, temos sete passos que seriam a coletânea do que fizeram os filósofos ao longo do tempo[15] e dividem-se em anamnese, meditação, exame dialético, pesquisa histórico-filológica, hermenêutica, exame de consciência e técnica expressiva. Comentemos rapidamente a que cada um deles se refere.
1) Anamnese: processo pelo qual a pessoa rastreia a origem de suas crenças. Caso creia que o mundo é ilusório, deve procurar pela origem de seu credo. Da percepção de uma ilusão de ótica? De um filme duvidoso? De um livro lido e há muito esquecido? Keynes dizia que muitos de nós somos fantoches de economistas mortos na medida em que reproduzimos suas idéias sem saber; aqui o passo consiste em não ser um fantoche de filósofos mortos. 2) Meditação: após o recolhimento da origem de nossas crenças, devemos operar certo processo de depuração que nos leve a manter ou execrar algumas delas. O processo meditativo consiste em deixar os conceitos de lado e voltar nosso olhar à realidade que nos cerca. Talvez questões como “mas não seria a realidade ilusória?” ou “o que é realidade?” poderiam ser postas, mas no momento isso não é mais do que espúrio: se o sujeito vê um ovo, sendo ilusório ou não, o dado é que servirá para fazer uma omelete – e isso não é realidade o suficiente? Não é possível fazer uma crítica da realidade sem deixar que ela nos toque. 3) Exame dialético: integração dos resultados da meditação na tradição filosófica e vice-versa. Trata-se de um comparativo entre o que foi conhecido por si e o que foi aprendido dos grandes filósofos de todos os tempos para que se “complete” o que se conhece com as observações de outros ao mesmo tempo em que se examina em que contexto o próprio pensamento se encaixa. 4) Pesquisa histórico-filológica: o processo pelo qual o sujeito conhece as teses dos grandes filósofos; junção entre fontes primárias e comentários diversos, tal qual histórias da filosofia e artigos especializados. 5) Hermenêutica: processo de depuração das teses dos filósofos para posterior exame dialético. 6) Exame de consciência: processo pelo qual se integra, em si, os resultados da investigação. 7) Técnica expressiva: forma pela qual são expressos os resultados obtidos: ensaios, artigos, aforismos, etc.
Urge que atentemos a dois pontos:
- a) A série de passos parece correta, ainda que carente de um exame exaustivo de seus componentes; algumas sugestões de questionamento consistem em apontar que os filósofos realmente precisam, por exemplo, dos passos 3,4,5 e 6, como o bem exemplifica Aristóteles, que sempre os executa no início de seus livros ao recolher e examinar as teses de seus antecessores. Os passos 1 e 2 são fundamentais para que o filósofo não seja mero repetidor sem contato algum com a realidade que o circunda e sem o 7 não teríamos sequer filosofia transmitida. Por outro lado, os passos
- b) parecem estar fora de ordem uma vez que, por exemplo, o passo 3 exige a completude do 4 e do 5. Não é possível operar o exame dialético das teses sem que as conheçamos através da pesquisa e de sua depuração através da hermenêutica. Portanto, a título de sugestão, é possível propor um rearranjo. Em primeiro lugar, uma anamnese que leve em conta a pesquisa (1+4) para que se obtenha material para o processo meditativo (2), tornando possível que se execute o “rastreamento” das crenças que o Olavo tanto recomendou. Assim, tornamos mais confortável a execução da hermenêutica (5) do material posto, uma vez que as teses serão novamente meditadas em confronto com a realidade, o que é, de certa forma, o exame dialético (3) que resultará em algo a ser integrado em si (6) e depois expresso, como consta no último dos passos, o da técnica expressiva (7).
Pensando por outros ângulos, parece que os passos se repetem etapa a etapa e, nesse caso, seriam antes camadas superpostas do que uma série ordenada. Por exemplo, o passo dois parece onipresente, pois cada nova aquisição exige a retomada do processo meditativo; mas não seria a anamnese mesma uma de suas formas? Todavia, deixemos o exame dos itens a outro que assim o queira; afinal, o melhor modo e honrar um filósofo é discutir suas teses.
O ponto que desejamos evidenciar consiste em que a pesquisa histórico-filológica e a hermenêutica, passos apontados como “os pilares de uma sólida cultura filosófica”,[16] consomem muito tempo e dedicação. A cultura filosófica divide-se entre a leitura das fontes primárias [dada a dependência que a filosofia possui em relação a elas] e de fontes secundárias [comentários diversos, como antedito]; pode parecer impressionante, mas a verdade é que esse processo é, em poucas palavras [e ainda que não exija que se aprenda com a mesma profundidade todos os seus componentes], o conhecimento acumulado durante dois milênios de filosofia.[17] Fazendo uso de uma feliz analogia encontrada em A Filosofia e seu Inverso, antes de se tocar a própria música é necessário tocar as dos outros, ainda que a título de treinamento.[18]
6. O artesanato e a linha de montagem
A leitura desordenada entorpece o espírito, não o alimenta; torna-o pouco a pouco incapaz de reflexão e de concentração, e por conseguinte de produção; exterioriza-o por dentro, se posso exprimir-me assim e torna-os escravo de suas imagens mentais…
Antonin Sertillanges – A Vida Intelectual p.132
Do mesmo modo que a música, a filosofia não opera por puros cálculos. Não podemos simplesmente codificar um programa de filosofia e instalá-lo num computador esperando que ele resolva todos os nossos problemas; novamente, num arroubo wittgensteiniano, se todos os problemas da ciência fossem resolvidos, os da filosofia permaneceriam intocados.[19] Claro que há certa estrutura matemática subjacente às relações sonoras, como sabido desde que Pitágoras resolveu tocar uma cordinha presa num pedaço de madeira, mas o que seria mais bárbaro do que reduzir o todo [a música] a um de seus componentes? Não é um barbarismo equivalente à redução do homem a um amontoado de células que, enquanto erro reverso, considera apenas matéria e não a forma?
O essencial não se identifica com o suficiente e causas parciais não são causas totais; nosso grande vício se chama pars pro toto, algo que talvez derive de certo imediatismo que nos consome após acostumarmo-nos a produtos advindos de linhas de montagem, de prateleiras eivadas de produtos feitos segundo uma fórmula pronta, algo análogo a copos com figurinhas de heróis ou livros de historinhas de C.E.O. Neste afã, alguns passaram a crer que a filosofia seja mero produto confeccionado segundo um código, o que nos leva a perceber o quão estranha é a expressão “produção de filosofia”: teríamos descoberto o segredo para construir uma fábrica de Platões?
E talvez tenha sido isso que se tenha feito surgir a idéia de forçar acadêmicos a escreverem artigos, numa curiosa submissão da qualidade à quantidade e na esperança de que, num fiat, através acumulação de complexidade e à imagem das teorias que rogam que a consciência surge da organização da matéria, surgisse alguma filosofia. Espera-se, assim, pelo surgimento do filósofo da mesma forma que se espera pelo surgimento da singularidade. Atentemos ainda que nossa linha de montagem talvez tenha resultado no produto reverso e, visando o philo-sophos produzimos o philo-doxos ou philo-graphos. O vestido da sabedoria foi tomado por outra, e talvez ela queira sua veste de volta, ainda que precise do chicote retomá-la. Felizmente, os produtos artesanais continuam utilizando o material tradicional, mas quem os diferenciará? Talvez nem haja interessados na essência, visto que, na prática, nada muda. De longe, o simulado e o simulacro equivalem e há até aquele que não aceitará verdade alguma que não seja útil ou prática. Nosso vício em pars pro toto talvez se traduza em vício em prática transmutado em práxis viciosa.
Após esta breve reflexão, é possível vislumbrar, em alguma medida, o cerne da pressa do leigo em começar a filosofar: é a pressa daquele que se acostumou a ganhar um kit de lego com manual de instruções, daquele que acostumou-se a baixar jogos de celular com tutoriais facilitados; é ainda a [pressa] daquele que, querendo tocar uma música, aprendeu apenas três acordes para impressionar o parceiro e também do jovem que, tendo acabado de conhecer uma banda, compra uma camisa com seu logo e, assim, se sente “parte do clube.” Entretanto, Sócrates comentava que deveríamos nos esforçar antes para sermos antes de parecermos. Infelizmente, tudo em nosso tempo nos leva ao contrário e, nesse sentido, para que a filosofia seja cultivada, devemos inverter o raciocínio: é preciso passar daquele que come no fast food para aquele que aprende a plantar e cultivar a horta até o momento certo. Platão, um dos maiores filósofos de todos os tempo, demorou [sem garantia alguma de resultado certeiro] dezoito anos para “fazer” um Aristóteles. Por que acreditaríamos que nós, que mal encontramos filósofos disponíveis, poderíamos fazer tudo sozinhos e em menos tempo? De nada adianta informação em massa; já sabemos que, infelizmente, o QI de nossa geração está indo ladeira abaixo.[20] Não há motivos parar crer que somos mais inteligentes que os antigos. Sendo assim, urge que o interessado na verdadeira filosofia substitua a ansiedade de começar logo pela humildade de começar corretamente ou, como reza o ditado popular: a pressa é inimiga da perfeição.
7. Epílogo
Só beber nas fontes. Freqüentar somente a elite dos pensadores. O que nem sempre é possível em matéria de relações pessoais é fácil em matéria de leituras…
Antonin Sertillanges – A Vida Intelectual p.134
O leitor costumaz perceberá que, diversamente da unidade antevista em Conselhos, O Grão de Mostarda é consideravelmente fragmentado. Antevi e aceitei que algo assim aconteceria ao tomar nota de que os problemas abordados em meu primeiro ensaio fatalmente diversificar-se-iam numa série de aspectos derivados de uma raiz comum. Enquanto o primeiro centrou-se, grosso modo, no significado de filosofia em seu modo de estudo, o segundo precisou focar principalmente nos critérios para uma boa seleção de fontes e no apaziguamento da ansiedade do estudante que, querendo fazer muito, termina por não fazer coisa alguma após encerrar-se numa trama de erros. Os conselhos propostos não se afastaram muito daqueles do Pe. Sertillanges, digo, de centrar-se apenas no que há de melhor e, caso seja permitido um complemento, não aceitar migalha alguma, pois aquele que preenche o estômago com miudezas fica impossibilitado de comer o prato principal.
Tentamos expor o mito do pensamento crítico enquanto método proposto para leigos e também desmontar a caricatura do prodígio filosófico, dois ídolos que muito afagam o ego daquele que, sentindo-se especial, crê que reinventará a roda quando, na verdade, não comete mais do que um pecado antigo. O primeiro erro propõe a ilusão da crítica acrítica, digo, do fornecimento de uma chave mestra que possibilite a deglutição de quaisquer teses num exame minucioso, quando na realidade o que ocorre é uma forma do bom e velho ignoratio elenchi. O segundo erro não difere do primeiro na medida em que “empodera” o estudante, mas difere capitalmente pela ilusão do prodígio comumente surgir acompanhada de outra muito comum, a de que aquele que nasceu depois é necessariamente mais inteligente por possuir mais acesso à informação, o que, obviamente, não apenas falso como pode ser facilmente desmentido. É importante retermos que tais mitos afagadores de ego podem servir de cerca cuja chave da porteira jaz disponível ao primeiro que souber conduzir o gado.
Por fim, buscou-se, de forma um pouco mais ágil, mostrar como a ansiedade do estudante tende a advir de um modo de vida que o adestra numa pressa artificiosa que pode facilmente frustrá-lo quanto se der conta de que, nas coisas que realmente importam, o imediatismo de nada vale e, em verdade, é característica determinante de dois tipos de sujeito: a criança pequena e aquele que sofreu algum dano severo no córtex pré-frontal, ao melhor estilo Phineas Gage.[21] A semente da filosofia demora para germinar e originar uma árvore que possa servir para que nos aninhemos em seus ramos. Entretanto, caso seja posta em local adverso, será devorada, germinará pouco e tornar-se-á inócua ou, enfim, sufocada; tudo isso é efeito de burlar o caminho seguro. Meu trabalho tem sido prevenir que essas coisas aconteçam e, assim, espero que este ensaio ajude o leitor a encontrar o seu.
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Bibliografia
- Antonin Sertillanges – A Vida Intelectual
- Antônio R. Damásio – O Erro de Descartes
- Arthur Schopenhauer – A Arte de Escrever
- C.S. Lewis – A Abolição do Homem
- Érico Veríssimo – O Tempo e o Vento [parte1] O Continente Vol.1
- Eric Voegelin – A Natureza do Direito e outros Textos Jurídicos
- Ludwig Wittgenstein – Tractatus Logico-Philosophicus
- Michael Desmurget – A Fábrica de Cretinos Digitais
- Olavo de Carvalho – A Filosofia e seu Inverso
- Olavo de Carvalho – Dialética Simbólica
- Olavo de Carvalho – Edmund Husserl: Contra o Psicologismo
- Ronald Robson – Conhecimento por Presença
- Sto. Tomás de Aquino – A Sindérese e a Consciência
Notas:
[1] Ver Conselhos ao Estudante de Filosofia.
[2] Tractatus 6.521
[3] Ainda que por vezes a mediocridade perpasse o tempo, como ocorreu endemicamente com a filosofia, onde filodoxos permaneceram – como o esterco que seca – por tempo suficiente para que fossem confundidos com sua contraparte.
[4] O drama da filosofia é compartilhado pela literatura. É impossível colocar uma Ilíada nas mãos de qualquer pessoa por motivos diversos que podem amalgamar-se num principal: os clássicos podem ser difíceis de ler para quem não está habituado e as coisas pioram muito em um país com 38 milhões de analfabetos funcionais.
[5] Érico Veríssimo – O Tempo e o Vento [parte1] O Continente Vol.1 p.113
[6] Ilustremos a diferença entre essencialidade e suficiência: para que escrevamos num caderno, precisamos de, obviamente, um caderno e algo com o que possamos escrever nele: uma caneta, um lápis, um pedaço de carvão ou seja lá o que houver à mão. É essencial que haja um caderno: mas ele não é suficiente para que escrevamos nele e, da mesma forma, a caneta é essencial, mas também não é suficiente caso falte o caderno. Sendo assim temos dois componentes essenciais mas que não podem resumir o ato para si mesmos, digo, não são redutíveis um ao outro. Em metafísica podemos ter muitas causas concorrendo para um mesmo efeito sem que nenhuma delas seja causa suficiente para que cause sozinha, dependendo, por conseguinte, da causação de outras.
[7] Não que em certos casos o essencial identifique-se com o suficiente por falta de escolhas; mas o dado é que o assunto do ensaio não é esse.
[8] A existência, ao menos de jure, de classificações indicativas roga percebamos que a tolerância exagerada não é saudável. Nosso pudor natural nos impele a atentar que nos sentimos desconfortáveis frente a cenas pudentas em filmes, em especial quando, por exemplo, um familiar entra no quarto bem no momento propício; é vergonhoso ver casais que parecem querer engolir um ao outro em locais públicos. A abstração, no sentido de ignorarmos tais realidades em prol de um princípio duvidoso, ao menos em neurotípicos, não possui mais peso do que a realidade.
[9] Um exemplo corriqueiro é a cena de abuso em Capitães da Areia, descrição digna de um filme pornográfico de gosto duvidoso.
[10] Como visto por Olavo de Carvalho em Edmundo Husserl: Contra o Psicologismo [p.61]: A filosofia não está no livro. Uma obra literária está materialmente na obra, mas a filosofia está no filósofo, no conhecimento que ele tem, e naqueles aos quais ele transmite.
[11]“[…] as definições surgem no fim de uma análise, e não no seu princípio.” A Natureza do Direito e outros Textos Jurídicos p.51
[12] Mesmo casos de ouvido absoluto são absolutamente inúteis caso o detentor não saiba o que fazer com seu dom.
[13] “É por isso que Aristóteles afirmava que só aqueles que tivessem recebido boa criação poderiam obter algum êxito no estudo da ética: para o homem corrompido, o homem de fora do Tao, o próprio ponto de partida dessa ciência é invisível. Um homem assim pode até ser hostil, porém jamais crítico: ele não sabe o que está sendo discutido.” A Abolição do Homem p.46
[14] Outro exemplo semelhante é o do crítico de arte especializado em Michelangelo que jaz ciente de que jamais poderia confeccionar um Davi.
[15] Localizam-se em A Filosofia e seu Inverso p.133. Comentários extras podem ser encontrados em Conhecimento por Presença p.258 em diante.
[16] A Filosofia e seu Inverso p.133
[17] Nas palavras do Olavo: “A cultura filosófica compõe-se de três coisas: (a) conhecer a bibliografia filosófica e lê-la na máxima extensão possível; (b) dominar a técnica da análise de textos, para ter a certeza de que se compreende o que se lê; (c) conhecer a história da filosofia, as escolas filosóficas na sua cronologia e nas relações que têm umas com as outras.” A Filosofia e seu Inverso p.132
[18] “O único aprendizado possível da filosofia é ler as exposições dos filósofos reconstruindo imaginativamente a atividade interior que as gerou. Isso é como ler uma partitura e aos poucos aprender a executá-la com todas as nuances e ênfases emocionais subentendidas, que a partitura insinua mas não mostra. Antes de se tornar um compositor, você tem de aprender a fazer isso com muitas músicas de outros compositores. Antes de analisar o seu primeiro problema filosófico, você vai ter de tocar muitas músicas compostas pelos filósofos de antigamente.” A Filosofia e seu Inverso p.163
[19] Tractatus 6.52
[20] É a tese do A Fábrica de Cretinos Digitais, de Michael Desmurget. Eis um trecho [p.24]: A impostura se revela ainda mais sórdida porque a ligação entre os desempenhos cognitivos e a espessura do cérebro está longe de ser unívoca. De fato, quando se aborda o funcionamento cerebral, “maior” não quer dizer necessariamente “mais eficaz”. Em muitos casos, um córtex mais fino se mostra funcionalmente mais eficiente, o estreitamento observado traduzindo a existência de um processo de poda das conexões superficiais ou inúteis entre os neurônios. O quociente de inteligência (QI) do adolescente e do jovem adulto é desenvolvido em associação a um estreitamento progressivo do córtex em inúmeras zonas, especialmente as pré- frontais, que os estudos relativos à influência dos videogames descreveram como sendo mais espessas. Trabalhos específicos chegam mesmo a associar diretamente, para essas zonas pré-frontais, a forte espessura cortical observada nos gamers a uma diminuição do QI. Esta relação negativa foi igualmente descrita para os amantes de televisão e os usuários patológicos de Internet. Assim sendo, é hora de se render à evidência: “um cérebro maior” não constitui um indicador confiável de inteligência. Em diversos casos, um córtex localmente fofo demais assinala não uma genial otimização funcional, mas um triste defeito de maturação.
[21] Como podemos conferir em O Erro de Descartes p.28-9: “Mostrava-se caprichoso, irreverente, usando por vezes a mais obscena das linguagens, o que não era anteriormente seu costume, manifestando pouca deferência para com os colegas, impaciente relativamente a restrições ou conselhos quando eles entravam em conflito com seus desejos […] sendo uma criança nas suas manifestações e capacidades intelectuais…”.