Reflexão sobre temas extraídos ou implicados em Jumyou wo Kaitotte Moratta como leitura filosofável.
- O fio sagrado de ouro e a Damnatio Memoriae
Após o fracasso da tentativa de encontrar a carta de Himeno, Kusunoki e Miyagi precisam, devido ao horário, passar a noite em uma estação de trem. E novamente, num lapso de confusão e desespero, passa a vê-la como o item que pode apaziguar sua ansiedade; afinal, o que há a se perder quando se vendeu a própria vida? Entretanto, enquanto os desejos inferiores tentam guiá-lo, os neurônios superiores são fortes o suficiente para que perceba o caminho tortuoso de sua cogitação; o pecado é filho do consentimento.[1] Consideremos por um instante o que ocorreu e vejamos o que podemos coletar para nossa reflexão. Kusunoki, embora mental e espiritualmente desorientado, nunca perdeu de fato a consciência de suas ações; o que ocorre é que ele é persuadido por seus vícios a seguir a má inclinação. Consideremos, com Platão,[2] que nossa consciência seja como que atraída por uma série de fios que procuram tracioná-la em várias direções, e entre eles há aqueles que vão em direções obscuras enquanto apenas um leva à clareza. Embora a força dos fios inferiores seja maior devido à superioridade numérica, o fio da clareza está sempre presente: chamemos os primeiros de fios de ferro e o segundo de fio sagrado de ouro. Os primeiros são como nossas inclinações e vícios enquanto o segundo é aquele que representa nossa conformidade com o bem enquanto manifesto em forma moral; por mais que os vícios nos constranjam, o fio dourado nunca estoura e se faz presente para que, ainda que não o sigamos, sua presença seja sentida. Os fios de ferro são rígidos e nos escravizam; o fio de ouro é maleável e só pode ser seguido caso o escolhamos e nos submetamos a ele; “porque o meu jugo é suave, e o meu peso leve”.[3]
Kant parece ter identificado o fio de ouro como a lei constituinte da razão prática[4] que atua sobre nós como uma restrição aos puxões dos fios de ferro; a ação contrária ao fio sagrado é sabida ser contrária a ele, e Kusunoki sabia o que estava fazendo, pois no último instante teve forças para se apegar ao fio correto; “o homem que compreendeu a verdade desse logos compreenderá o jogo de autogoverno e autoderrota, e viverá em obediência ao puxão da corda de ouro…”[5]. Em sua Crítica da Razão Prática, ao tratar do respeito, Kant menciona uma situação onde, ao percebermos a integridade do caráter de alguém, nosso espírito lhe presta reverência ainda que não queiramos ou demonstremos.[6] As regras morais[7] nos constrangem cada vez mais na medida em que nos aproximamos e percebemos certa perfeição reconhecida como tal; o ver a idéia do bem com os olhos do espírito e rejeitá-la enquanto gritamos non serviam é um agir de forma diabólica.[8] É assim que percebemos nossa liberdade e nosso arbítrio perante nossas escolhas, ainda que, numa situação extrema como a de Kusunoki, haja a opção de Giges, que, possuindo o anel que lhe livrava da visão dos deuses – e na ilusão de nada ter a perder – escolheu a submissão ao emaranhado ferrenho.[9]
Caso optemos por interpretar assim, então pode-se ver a escolha de Kusunoki pelo empuxo do fio de ouro como um passo a mais para longe do abismo; por vezes o melhor modo de evitar a queda é dar um passo para trás, e isso lhe fez um pouco mais humano na mesma medida em que fez com que reconhecesse a humanidade da pessoa à sua frente – não temos ainda a almejada anamnese, mas o impulso até ela foi dado. Entretanto, da mesma forma que o consentimento é pai do pecado, a culpa é a mãe do arrependimento. Kusunoki se sente culpado, mas não o suficiente para um pedido de desculpas explícito, e então prefere conversar como forma de expressar seus sentimentos, ainda que veladamente; resmunga sobre a dificuldade de lidar com tipos como ele, e de fato é complicado, impressionando Miyagi que, num alívio surpreso perante a atitude de seu observado, agradece que este finalmente tenha compreendido. Mas não é surpresa que, para além da morte, situações extremas em geral possam levar uns a procurar a reparação de seus erros enquanto leva outros a pensar que nada mais há a se perder e descontar sua frustração em quem estiver à mão. Vigiar aqueles que se encontram em situações assim não foi a ocupação dos sonhos de Miyagi, ela a cumpre por necessidade, dado que precisou vender seu tempo com apenas dez anos de idade para pagar as dívidas herdadas de sua falecida mãe, e assim se tornou presa a um contrato de trinta anos que só lhe devolverá a liberdade quando vier a termo, caso sobreviva à solidão de ser invisível a todos, exceto a seus monitorados. Kusunoki questiona se em tal situação não teria sido melhor vender o tempo de vida [invés de apenas o tempo], dado que após a obtenção da liberdade a melhor parte de sua vida já estaria perdida; mas ainda que o argumento soe persuasivo, não é tão simples: contrariamente à de seu monitorado [que nunca deixa de esperar por um milagre], suas forças lhe advém de uma esperança explícita que, ainda que fraca, lhe mantém seguindo em frente – algo que falta a seu observado que, vendo sua antes sisuda monitora como um observador ácido, agora a têm um pouco melhor em conta. E então ele se pergunta se ela se lembrará dele ao menos como um observado fácil de lidar.
Pode-se dizer que a manifestação visível da eternidade ocorre no tempo; não raro encontramos suas alusões na literatura, como na Ilíada, onde surge seja sob a forma da vida dos Deuses ou na fama para além da morte dos heróis mortos em batalha,[10] outro modo de dizer que nos eternizamos na medida em que nossos feitos permanecem vivos na memória de outrem, uma forma de eternizar-se propriamente humana, eternidade mnemônica, visto que os deuses possuem a eternidade sob forma de imortalidade; o perdurar no tempo reflete-se na ausência da morte na medida em que nos alheia ao tempo. Mas não seria a eternidade mnemônica uma tentativa humana de alheiamento da morte? Tomando lugar na memória de outrem mantemos uma forma de presença enquanto forma de perdurar no tempo. Nessa forma de imortalidade imanente em que perduramos em outro, mimese da imortalidade transcendente daquele que perdura por si, que almejamos conseguir permanecendo ao menos na memória e nossos entes queridos, é algo que se faz presente tanto nas pessoas que nos pedem que não as esqueçamos quanto nos grandes nomes que buscaram eternizar-se em feitos notáveis; perdurar em outro é perdurar em sua memória. Mas ela ainda é uma eternidade autêntica; não é um instante perpétuo e imóvel,[11] mas uma esperança de duração que ocorre no tempo e se estende para além da duração de nossa própria vida, recebendo sua alcunha mediante referência ao autenticamente eterno. Caso extrapolássemos a memória de um feito imaginando sua permanência na memória coletiva até o fim dos tempos, teríamos uma eviternidade, uma eternidade com início. Os romanos chamavam de damnatio memoriae o ato de apagar todos os registros que pudessem provar que alguém viveu, na esperança de que, pela extinção dos signos, sua existência na memória fosse anulada através de sua supressão na história. Por vezes chegamos a acreditar que aquilo que não foi registrado não existiu, e em verdade desacreditamos da existência até daqueles que deixaram algum registro – vide a constante dúbia sobre a existência de personalidades como Homero, Shakespeare ou Sócrates –, e de fato é complicado aferir a existência de algo sem que haja algum sinal de sua presença na mesma medida em que somos forçados a admitir que houve existência para além do testificado, pois é essa existência irregistrada que sempre houve antes que pudéssemos tomar notas. Temos consciência que o homem só aprendeu a registrar algo após várias gerações, então há um imenso buraco de irregistro que não pôde ser eviternizado na memória escrita na mesma medida em que há outros que não podem ser relembrados pois, ou não podemos lê-los – vide Linear A – ou não podemos ligar o signo ao significado. Esse leve desejo de ser lembrado permeia nossa vida e não é estranho que Kusunoki, que antes desejava ser famoso e viver na memória de muitos, agora passa a questionar se poderá viver na memória de alguém.
- Himeno I
“Amor é o ato que transforma a seu objeto de coisa em pessoa.”
Nicolás Gómez Dávila
Quando tinham apenas dez anos de idade, Kusunoki e Himeno discutiam como seria o futuro e esperavam que algo bom ocorreria no verão de dez anos após – onde finalmente poderiam saber como era bom estar vivo. Mas para que isso se tornasse realidade, ambos ambicionavam a riqueza e a fama. Entretanto, caso o fracasso batesse à porta e ambos acabassem sozinhos e em empregos que desprezassem, deveriam se casar.
Ciente de que sua situação atual configura precisamente o fundo do poço uma vez previsto, Kusunoki resolve perguntar a Miyagi sobre seu [hipotético] futuro que fora abandonado no momento da transação de sua vida; o que houve com Himeno? Ela hesita, mas revela que a antiga colega de seu monitorado abandonou os estudos aos 17 anos por conta de uma gravidez, casou-se aos 18 e divorciou-se aos 20, mudando-se por fim para a cada dos pais; caso tudo ocorra como previsto, ela tirará a própria vida num prazo de dois anos. Não é difícil ver em Himeno a imagem de uma realidade bem presente para nós: gravidez na adolescência, divórcio, evasão escolar e desesperança.
Já em casa, Kusunoki ocupa seu [pouco] tempo dobrando origamis em forma de tsuru cujo número multiplica-se misteriosamente durante seu sono, surgindo com dobraduras que dele decerto não seria capaz de fazer. Ao checar suas calças antes de colocá-las para lavar, ele encontra em um dos bolsos sua carta que fora retirada da cápsula enterrada no jardim da escola:
Para eu mesmo daqui a dez anos.
Para eu daqui a dez anos, tem algo que só posso pedir a você caso dez anos depois eu ainda esteja encalhado, gostaria que você fosse se encontrar com a Himeno. Parece que ela não fica bem se eu não estiver por perto e eu também não fico bem sem ter ela por perto.
E então decide honrar seu pedido passado e procurar por Himeno, não importando o quão doloroso possa ser. Aqui Kusunoki tem uma atitude muito diferente da que teve ao desejar o encontro com a garota da biblioteca ou com seu amigo de infância: antes dirigia-se a eles como itens, mas agora tudo o que deseja é ver uma pessoa que lhe foi muito especial, agradecê-la pelos bons momentos e deixar-lhe o dinheiro que não espera viver o suficiente para usar. Por não poder se afastar de Miyagi por mais de cem metros, Kusunoki precisa levá-la consigo para a faculdade, onde espera conseguir um mapa que o leve à residência de Himeno. Nesse ínterim ele se recorda de que recebeu apenas uma carta de sua colega, onde se liam alguns lamentos e comentários triviais, despojados de seus trejeitos, o que faz parecer ter sido escrita por outra pessoa; a comunicação cessou após uma carta contendo respostas igualmente banais. Enquanto passam o tempo na biblioteca da faculdade de Kusunoki, Miyagi repara que ele conversa com ela sem que se importe com sua invisibilidade; já não se preocupa mais em parecer maluco àqueles que os rodeiam. Nesse meio tempo, pergunta a ela o que ela faria na situação dele; seus desejos são apenas três:
- Ir a um lago que considera especial.
- Construir o próprio túmulo.
- Encontrar uma pessoa especial.
O primeiro desejo assemelha-se ao de Kusunoki na medida em que ambos desejam contemplar algo belo; o segundo diz explicitamente que deveria ser feito de forma a “continuar ali por pelo menos algumas dezenas de anos”, o que nos leva de volta ao eterno simbolizado por nossas obras e feitos – que esperamos que sejam bons; quanto ao terceiro, que ela prefere guardar o significado para si, podemos pensar que se trata da lembrança de um sentimento verdadeiro, algo que para muitos se tornou objeto de sonho, desejo de algo tido como irreal na medida em que o real já parece distante demais para que acreditemos nele mesmo quando plenamente manifestado. E como poderia ser diferente num tempo em que nos debatemos entre o relativismo e a denúncia de falsa consciência? Enquanto o segundo diz que o nos parece verdadeiro apenas serve a interesses escusos o primeiro diz que nada há de verdadeiro para além do opinado. É ainda possível que tudo reduzam a elementos químicos e, no fim das contas, tudo o que resta é o niilismo, seja na forma passiva daquele que definha no desespero seja na forma ativa daquele que crê com todas as forças que extinguirá o buraco de sua alma caso cave cada vez mais fundo; não seria o valor da terra senão uma coletânea de vermes? E o verme nunca morre.
Por Himeno não estar em casa, Kusunoki e Miyagi procuram passar o tempo em uma biblioteca próxima onde ele, ao escolher um livro, se pergunta quais seriam úteis até o momento da morte; entre os escolhidos está O Presente dos Magos de O. Henry. E quantos livros seriam realmente importantes até o fim? Livros ruins sempre estarão entre nós, mas é questionável até que ponto estamos dispostos a despender nosso tempo num desperdício de celulose; é sabido, obviamente, que pensar que só importam as coisas importantes é sintoma de barbárie,[12] digo, é inumano o mero “essencial”, mas o dado é que há uma hierarquia de valores. Muitos grandes homens adquiriram sua estatura através dos ensinamentos dos filósofos que olharam para o céu, mas é questionável se algo ocorreria com aqueles que insistem em nossa nulificação; talvez aqui tenhamos um bom critério, a saber, procurar entender se o pensador procura o que está para além da morte ou se ele está fascinado por ela.
E enquanto ele lê, Miyagi se aproxima para acompanhá-lo: é uma experiência inédita e prontamente percebida. Para além de pensar apenas no que lê, seu pensamento voa e passa a imaginar ainda o que ela sente enquanto faz a mesma coisa e atenta aos mesmos trechos. A leitura lhe parece mais íntima nesse sentido e, embora refira-se nominalmente ao ato de ler, ele se sente mais próximo dela. É um momento simples, mas sua noção de intimidade é correta; não podemos saber o que os outros pensam senão supondo o que nos aparentam por suas expressões – que podem ser falsas –, mas nossa precisão aumenta muito quando, em momentos específicos e espontâneos, o sujeito é revelado através de seu rosto.[13] Kusunoki não sabe exatamente como reagir à situação, mas sente prazer em vivê-la.
O tempo passa e Himeno não voltou para casa; então Kusunoki, no caminho de volta para casa, resolve passar em um festival local para saciar a curiosidade de Miyagi, que nunca havia visto um. Há dez anos ele não frequenta eventos assim, e então lembranças infantis retornam e ligam-se às imagens vistas, funcionalmente as mesmas do passado onde Himeno havia previsto que, no presente em que a memória se desvela, “ocorreria algo muito bom” e ambos pensariam “que é muito bom estar vivo”. A promessa ainda o atormenta na mesma medida em que seu fracasso; mas o incômodo mais forte é não saber onde ela está.
Já tratamos anteriormente da condição de objeto à qual Kusunoki submeteu-se devido à venda de sua vida; mas agora ele se reconhece nesta condição na medida em que vê a si e a Himeno como itens usados, objetos que, na incapacidade de satisfazerem a seus clientes e abandonados em suas prateleiras, preparam-se para apoiar a miséria um do outro – ou ao menos é isso que foi planejado de antemão. E pouco após Kusunoki terminar de revirar suas memórias e se preparar para ir embora do festival, Himeno aparece. Ambos se surpreendem com o encontro, mas apenas um dos lados soa entusiasmado; um encontro é marcado para dali a dois dias.
O período como hitoribocchi[14] cobra seu preço, e Kusunoki não sabe como se portar em um encontro; então ele pede a sua observadora que saia com ele como forma de acostumá-lo a eventos assim. O estranho pedido é aceito ainda que não sem alguma hesitação, devido ao fato de Miyagi ser invisível – mas esse percalço deixou de ser um problema desde os eventos da biblioteca. Kusunoki aproveita para comprar algumas roupas novas e cortar seus longos e descuidados cabelos, recebendo elogios velados no processo. Ambos conversam como se Miyagi fosse Himeno, embora por vezes Kusunoki ignore isso e dirija-se diretamente à sua observadora. É possível perceber que pela primeira vez que ambos sorriem naturalmente, um comportamento muito diferente da aura melancólica e opaca que emanavam no início e que, embora tenha se ausentado na aparência, ainda se faz presente na essência. Após Miyagi comentar que não esperava que Kusunoki pudesse ser brincalhão, ele responde que também não entende direito sua instabilidade. Ele comenta que não crê veementemente em conceitos “personalidade, caráter, temperamento e tal”; entretanto, atenta à instabilidade das coisas que estão em constante mudança conforme a situação. O que ele crê é que a diferença entre as pessoas consiste em ações determinadas por situações singulares e que os conceitos de coerência e integridade lhe soam superestimados e até superficiais.
Podemos refletir um pouco sobre esse pensamento e até encontrar algumas pessoas próximas que talvez o sigam. Ele normalmente nasce na consciência de pessoas que ou viram outras agirem de forma diversa do que pregam (hipocrisia), ou de forma explicitamente relativística – e é comum que entendamos o agir geral segundo o que presenciamos muitas vezes; conviver apenas com relativistas pode moldar nossa visão mais ou menos segundo esta clave. É deste modo que uma criança aprende mais ou menos como agir segundo a observação de seus entes próximos[15], e Kusunoki não aparenta ter tido muitos exemplos de moralidade forte, ainda que tenha demonstrado possuir alguma. Mas para entender melhor é preciso que decomponhamos o escopo geral do pensamento proposto, que relaciona caráter, personalidade e temperamento[16].
Caráter e personalidade podem ser – talvez popularmente – sinônimos, ainda que possamos distinguir do seguinte modo: o primeiro pode referir-se a certa fixidez de princípios ou uma vontade fixada a certos princípios, enquanto a segunda refere-se ao conjunto do caráter e dos chamados temperamentos, por sua vez tomados como certa base fisiológica das disposições dos “humores” da pessoa – o que pode ser entendido como traços que subjazem a personalidade, mas não necessariamente a determinam, algo que aniquilaria a vontade. O caráter é chamado por Jolivet de certa vontade firme e constante; nesse sentido seria tarefa da moral lapidar o caráter na medida que o direciona aos bons princípios, moldando aquele hábito natural voltado ao bem que Sto. Tomás chamou de sinderesis.[17] Mas se a moral adequa o caráter a princípios na medida em que fixa a vontade neles para que aja corretamente segundo as circunstâncias, a vontade faz uma arbitragem entre o comportamento virtuoso e o vicioso que, por sua vez, caracteriza a personalidade virtuosa ou viciosa. O homem de caráter, nesse sentido, é aquele que, entre várias disposições, escolhe a mais correta segundo princípios e age virtuosamente por vontade própria e consciente.[18] Esse proceder é, grosso modo, o procedimento da moral de Aristóteles. O agir virtuoso ou vicioso – que é habitual, visto a virtude e o vício serem hábitos – não elimina o peso das circunstâncias. Do mesmo modo que um conceito universal o é por não designar particulares, mas predicar-se deles, princípios morais não deduzirão a infinidade de suas aplicações, que por conseguinte devem ser ponderadas singularmente. A virtude da deliberação dos princípios e sua aplicação prática nas diversas situações é o que Sto. Tomás de Aquino chamou de prudência:
A prudência é uma virtude guia das virtudes morais, e por isso é chamada de mãe das virtudes (genitrix virtutum), como principal entre as outras. Ela reside na razão prática, consiste na reta razão de agir e se desenvolve na experiência. Refere-se às coisas particulares enquanto certa aplicação conveniente de princípios universais da razão sobre elas. Ela se refere ao bem não apenas formalmente, intelectualmente, mas também materialmente, próprio do apetite, enquanto visa a reta razão do agir particular. Ela é uma virtude especial pela sua dualidade; por ser propriamente intelectual, mas voltada para o agir. A prudência não determina os fins para a ação, mas os meios mais convenientes para o agir virtuoso, como e por quais caminhos o homem deve realizar uma ação para atingir o meio-termo moral.[19]
Nesse sentido não há contradição entre a integridade do caráter que age segundo princípios e a deliberação segundo as circunstâncias, pois a virtude consiste, aqui, precisamente na aplicação do princípio à situação. A eternidade e a universalidade dos princípios não tolhem sua aplicação à circunstância particular, e pode-se ver aqui um análogo entre o ser e o devir na medida em que o eterno não contradiz o contingente; ambos não são mais do que aspectos do ser mesmo. O que nos compete é não isolar ou reduzir um ao outro.
Kusunoki expõe sua concepção como descrição existencial de uma alma cansada. Embora seu pensar soe como se o caráter fosse produto de certo determinismo social, ele age de modo diverso do que professa; ninguém é verdadeiramente relativista na medida que nosso agir sempre procura pela estabilidade segundo a razão do bem[20]. Embora seu caráter, decerto, esteja distorcido e dilacerado pelos fios de ferro, o fio de ouro não se perdeu e seu puxão suave ainda se faz presente. Seu desejo de doar o dinheiro restante para a amiga que lhe concedeu tão preciosas memórias certamente não veio das meras circunstâncias, mas também de sua vontade de cuidar de quem ama, ainda que não esteja mais ali para agir pessoalmente. Sua personalidade mudou visivelmente desde o encontro como Miyagi, passando de certo proto-niilismo desesperado e hedonista para certa resignação que anseia por alguma virtude; mas essa mudança, embora tenha uma parcela de sua composição advinda das circunstâncias, ocorreu também por conta de sua vontade. Ambos passam por lugares que trazem recordações a Kusunoki, que por sua vez passa o dia contando o que ocorreu em cada uma delas. Miyagi escuta pacientemente e nada diz, embora aparente ter o que dizer.
Fim da Segunda parte
Observação: O presente ensaio diferencia-se de seu antecessor por não ter sido comentado em lives em momento algum, em parte por conta de seus temas polêmicos e facilmente distorcíveis, como tende a ocorrer com qualquer texto que procure avaliar com alguma atenção situações morais. De qualquer forma, apenas a oportunidade de comentar o mito dos títeres platônico em conjunto com aspectos da razão prática conferidos nos escritos de Kant para avaliar situações ocorridas num mangá confere àquele que vos escreve sensações singulares. De qualquer forma, convido o leitor a refletir sobre o que se passa pela cabeça daqueles que, não tendo uma lei moral nem dentro e nem fora de si, já nada mais têm a crer ou a perder – pois eis aí o nosso tempo.
Bibliografia:
Bernardo Veiga – A Ética das Virtudes Segundo Tomás de Aquino
Eric Voegelin – Ordem e História Vol. II: O Mundo da Pólis
Immanuel Kant – Crítica da Razão Prática
Nicolás Gómez Dávila – Escólios a um Texto Implícito
Peter L. Berger & Thomas Luckmann – Modernidade, Pluralismo e Crise de Sentido
Régis Jolivet – Curso de Filosofia
Reginald Garrigou-Lagrange – O Homem e a Eternidade
Roger Scruton – O Rosto de Deus
Sto. Afonso de Ligório – Tratado da Castidade
Sto. Tomás de Aquino – A Sindérese e a Consciência
Notas:
[1] Ou, em termos teológicos, como dito por Sto. Afonso de Ligório em seu Tratado da Castidade [p.12]: “Toda a malícia do mau pensamento está, porém, no consentimento. Havendo pleno consentimento, perde-se a graça de Deus e chama-se sobre si a condenação eterna, quer se tenha o desejo de cometer um pecado determinado, quer se pense ou reflita com prazer no pecado como se o estivesse cometendo. Esta última espécie de pecado chama-se uma deleitação deliberada ou morosa, e deve-se distinguir bem da primeira, isto é, do pecado de desejo.”
[2] A reflexão que farei aqui segue o raciocínio de As Leis 644d em diante.
[3] Mt. 11:30
[4] “Porque esta lei é uma lei constituinte da razão prática, essa vontade — diferentemente da nossa — seria perfeitamente racional. Nós, seres finitos, não temos o que Kant chama de “vontade santa”, uma vontade tão inteiramente determinada pela sua constituição interna afeita à lei que age espontaneamente e sem esforço. Nossos desejos clamam por satisfação, sejam racionais ou não. Por conseguinte, para nós, a operação da lei na nossa vontade racional não é automática. Sentimos o seu operar dentro de nós como uma restrição, porque ela deve agir contra a atração do desejo. Em seres finitos, diz Kant, a lei moral, em vez de agir necessariamente, é “obrigante” (Fundamentação 4: 413-414/ 81). A terminologia aqui não ajuda, mas o pensamento de Kant é bem familiar. Se você fosse perfeitamente razoável, você iria ao dentista para ele dar uma olhada naquela dor de dente; e se você não vai porque tem medo de dentista, você vai achar-se pensando que na verdade deveria ir. Esse é um exemplo sensato de algo que acontece também no reino puramente moral. Quando vemos uma razão que nos compele a fazer um ato que relutamos fazer, podemos não fazê-lo; mas admitimos que deveríamos tê-lo feito” J.B. Schneedwind – Autonomia, obrigação e virtude: uma visão geral da filosofia moral de Kant in Paul Guyer – Kant p.38
[5] O Mundo da Pólis p.289
[6] Crítica da Razão Prática A.136
[7] Não diferencio Ética e Moral no presente momento.
[8] Podemos entender essa ação diabólica como um extremo do egoísmo. Ou, em outros termos, como o diz Garrigou-Lagrange: “O amor desregrado de si mesmo, quando se torna dominador, coloca raízes cada vez mais profundas em certas almas que trilham o caminho da perdição. Suas vozes se tornam frequentemente amargas e penetrantes; fecham voluntariamente os olhos à luz divina, a única que poderia iluminá-los e libertá-los. Algumas vezes, combatem a verdade ainda que ela seja evidente; é uma das formas de pecado contra o Espírito Santo, impugnatio veritatis agnitae.” O Homem e a Eternidade p.36
[9] Ver Platão – A República 360a-b
[10] Introdução à Ilíada por Peter Jones na tradução da Ilíada por Frederico Lourenço p.13
[11] Utilizo aqui, sobretudo, a meditação sobre o tempo, a eviternidade e a eternidade levada a cabo por Garrigou-Lagrange em O Homem e a Eternidade p.107
[12] Nicolás Gómez Dávila – Escólios a um Texto Implícito. Disponível aqui.
[13] Para uma fenomenologia do rosto humano, ver Roger Scruton, O Rosto de Deus p.108 e seguintes.
[14] Um termo para “isolado”.
[15] “A identidade pessoal da criança se forma ao perceber o reflexo de seu comportamento na ação das pessoas que lhe estão mais próximas. Por isso uma certa coerência no agir dessas pessoas é o pressuposto mais importante para o desenvolvimento de certa forma imperturbável da pessoa. Não se verificando pressuposto, aumenta a possibilidade de surgirem crises subjetivas de sentido.” Peter L. Berger & Thomas Luckmann – Modernidade, Pluralismo e Crise de Sentido p.79
[16] Usei sobretudo as explicações de Régis Jolivet em Curso de Filosofia p.223
[17] “Ora, o ato deste hábito natural, que é denominado sindérese, é protestar contra o mal e inclinar para o bem. Portanto, este ato é naturalmente possível para o homem.” A Sindérese e a Consciência p.38
[18] “Como dar caráter? – Dissemos que o que faz o homem de caráter é a aliança de convicções fortes e vontade firme. Logo, preparar-nos-emos para tornar-nos “um caráter” adquirindo bons princípios de ação e uma vontade enérgica. Mas, neste caso, formar um caráter não constituirá, propriamente, uma tarefa especial: é o próprio conjunto da educação, formação intelectual e formação moral, que deverá contribuir para isto, e esta não estará verdadeiramente terminada senão quando se estiver bem armado de princípios sólidos e de energia lúcida para afrontar corajosamente as lutas da vida.” Régis Jolivet – Curso de Filosofia p.225
[19] Bernardo Veiga – A Ética das Virtudes Segundo Tomás de Aquino p.108-109
[20] Ver Franco Trabattoni – Platão p.88