Por Guy H. Allard
Tradução de Johann Alves
Em sua forma definitiva, o cogito agostiniano aparece em resposta aos argumentos dos Acadêmicos, como um “si enim fallor, sum: se me engano, existo”.[1] Paralelamente à Cidade de Deus, Agostinho escreveu no seu tratado Sobre a Trindade que esta verdade originária é uma certeza do tipo “sei que vivo”.[2] É mediante uma ciência íntima (intima scientia) que minha alma tem o conhecimento da sua vida, ainda que ela se engane, assim como tem a certeza da felicidade mesmo se equivocada quanto ao objeto de sua beatitude. A doutrina de Agostinho sempre discorre sobre o sujeito. Deixemos as obras da maturidade e nos situemos nos diálogos filosóficos da juventude, um tratado Sobre a Beatitude ou os Solilóquios, por exemplo, estamos então na presença da mesma dialética que procura uma certeza noética no coração da intuição existencial da vida: “Sabes, Navígio, que vive? Sabes, portanto, que tens vida, visto que ninguém pode viver sem vida”.[3] Aqui, uma vez mais, se nos impõe ao espírito uma tripla garantia: eu vivo (esse), eu sei que vivo (nosse et cogitare) e eu quero viver (velle).[4] É preciso, de fato, viver para compreender, tal como é preciso viver para amar.
Pretendo explicitar este vivere contido no âmago da reflexão agostiniana. Não procurarei elucidar a espinhosa questão das relações históricas entre o cogito cartesiano e o cogito agostiniano,[5] menos ainda tratar do vasto problema da epistemologia de Agostinho,[6] nem analisar a estrutura temporal do cogito.[7] Minha intenção aqui é antes desarticular a experiência da vida e mostrar, ao mesmo tempo, como a antiga questão (notavelmente a do Hortênsio de Cícero), encaminha o pensamento de Agostinho numa direção oposta à de Descartes. O contexto eudaimônico, com efeito, tomado emprestado das filosofias “positivistas” dos pensadores romanos, integrado à metafísica da vida dos neoplatônicos,[8] deu à reflexão de Agostinho uma concretude que revela uma preocupação com o vivido e com o existencial, sem em nada sacrificar, portanto, o pensamento e o conhecimento. Conhecimento que não se desdobra sobre o vazio, uma vez que é pensamento do vivido, reflexão sobre a vida. Sob este aspecto, o projeto fundamental da filosofia agostiniana não é tão estranha às maiores preocupações da corrente moderna da filosofia dita “reflexiva”.[9]
Encontra-se então, no fundo do cogito, um viver. A afirmação do Eu não resulta, como em Descartes, numa idéia vazia ou abstrata, mas numa consciência originária da vida. O homem é um ser vivente que existe, que sabe que vive e que quer viver. E nesta evidência trinitária circula uma mesma vida (una vita) indivisível (inseparabilis).[10] O “eu existo” agostiniano é um esse beatus, um desejo de ser, um esforço para existir (volo esse).[11] Esta é a certeza primitiva, afirma Agostinho, que o acadêmico Cícero jamais duvidou: “é certo que os homens querem ser felizes”.[12] Eles podem entender distintamente essa felicidade, mas sua vida mesma é polarizada pela conquista da beatitude. Mas não se correria o perigo de ser ilusório este desejo inato pela felicidade se ele não se fundamentasse imediatamente sobre a necessidade da vida imortal?[13] Como almejar a felicidade total ou imperecível se não há mais vida? É necessário pensar que a certeza da felicidade recobre em si uma outra, implícita nela: a certeza da vida. Não é por acaso que Agostinho aborda o problema da certeza (que é de ordem gnosiológica) pelo viés do desejo de viver e do amor à felicidade; não há nada de fortuito em introduzir, por meio de uma longa análise das estruturas do amor, as investigações do cogito.[14] Para ele, a filosofia é uma sabedoria (no sentido platônico do termo), cuja preocupação central se reduz ao problema do destino humano; o que significa que o stimulus da investigação da Verdade é o agapè (transposição cristã do eros).
Em consequência, a conquista do Bem não é estranha à Verdade; antes, ela a implica como condição essencial. Agostinho afirmará freqüentemente que o erro ou o engano nos torna infelizes.[15] É evocar, em outros termos, que a Verdade é coextensiva à felicidade e que a investigação da Verdade só tem sentido em função da busca do Bem. É porque eu vivo e desejo ser feliz — vivere bene beateque — que a verdade deve me ser acessível. Pois se ninguém pode alcançar a certeza da verdade, é inútil esperar a felicidade; o desejo se tornaria sem objeto. No entanto, sucede que esta evidência da verdade haure da própria vida da alma que é de fato vivente, que se conhece como tal e que ambiciona sê-lo sempre. É suficiente relermos as primeiras páginas das Confissões para compreendermos como se impõe, para o autor, a evidência da vida: “A única lembrança que tenho de minha infância é que eu vivia e que demonstrava aos outros a presença da minha vida por meio de signos”.[16] Um pouco mais longe, continua: “Eis que minha infância é morta e eu vivo agora.”[17] O percurso das Confissões revela que, tão logo a consciência pode penetrar no seu passado, descobre dentro de si a evidência da sua própria vida. A certeza originária esconde-se, portanto, no seio da vida que existe, que é consciência de si e desejo de imortalidade.
Esta evidência triádica, por assim dizer, não é aquela do ato do pensamento puro — res cogitans — pelo qual a alma apreenderia a si mesma como existente, esvaziada de tudo e abstratamente idealizada. Esta evidência em Agostinho é, ao contrário, um sentimento íntimo e profundo da vida como fundamento e como revelação do meu ser, do meu pensamento e da minha vontade. É assim que o pensamento “certifica-se” aos seus próprios olhos, apoiando-se na vida, embora esta última a ultrapasse. Pode-se afirmar, portanto, que há mais de uma ideia clara e distinta no cogito. Pois, se a evidência vem da vida, ela é, antes de tudo, um reconhecimento da vida interior da alma pela qual ela tem a intuição (nosse) de participar da Vida do Absoluto, mas ela ainda é inseparável da evidência da vida da alma segundo as ressonâncias biológicas que esta implica.[18] A vida da alma humana não é aquela dum “intelecto separado”, mas sim uma vida repleta de sensibilidade. Consequentemente, a Verdade e sua certeza, ainda que não habitem no sensível, permanecem envoltas “na ganga carnal”[19] e na carne do visível. “Que não se diga”, escreve Agostinho, “que colocamos em dúvida a verdade das coisas que conhecemos através dos sentidos corporais: é por eles que chegamos a conhecer o céu, a terra e todos os seres que eles contêm (…) Que não se pense que nós nos recusamos a dizer que sabemos coisas aprendidas através do testemunho dos outros! De outra forma, nós jamais saberíamos que há um oceano; que há terras e cidades que se tornaram célebres pelo seu renome; que houve homens cujas obras a literatura nos fez saber(…) enfim, não saberíamos nem sequer onde nascemos, pois sobre todas essas coisas, nós confiamos no testemunho dos outros. Se é absurdo dizer uma coisa tal, é porque devemos muitos dos nossos conhecimentos não apenas aos nossos sentidos, mas aos sentidos dos outros.”[20] A certeza da vida surge, então, em nós através da fé perceptiva — ex., o testemunho dos sentidos e dos outros —, visto que a vida da alma é preenchida de todo sensível espiritualizado nela por meio da memória.
Que é então esta vida que agita a memória? Nestes vastos palácios da memória, neste abismo interior (abyssus), movimentam-se e agitam-se nossas lembranças, nossas sensações (cores, sons, odores, tatos); lá também estão sujeitos ao trabalho do pensamento as imagens e todos os signos que revelam nossas paixões, nossos desejos e nossos atos; lá, por fim, estão presentes as leis da dialética e os nomes como “beatitude”. Em resumo, esta memória cheia de vida, tão variada, desvela-se aos olhos de Agostinho como imaginação epifânica[21] que tem a missão de evocar (visio scientiae) o condensado da minha própria vida, através do qual a minha reflexão (cogitare, visio cogitationis) se realiza.
É hora de relembrarmos que a consciência de si em Agostinho é ao mesmo tempo um nosse e um cogitare,[22] uma intuição de si (nosse) e uma consciência reflexiva de si (cogitare). O nosse é, com efeito, uma apreensão da vida imediata e invencível, uma espécie de conhecimento inconsciente que é muito mais um sentimento instintivo da vida da alma do que um fato objetivo e verificável ou uma conclusão decorrente de premissas. Aqui, o agostiniano Malebranche, fiel à interpretação do mestre sobre este ponto, viu corretamente, em oposição a Descartes, que essa apreensão imediata da alma é um sentimento, não uma ideia, uma certeza que corre o risco de ser privada de verdade se a alma não recuperar (reperiebamus)[23] a certeza da sua vida no reflexo dos seus objetos, das suas experiências e dos seus atos, confiados à memória sensível e intelectual. Como a certeza e a Verdade são, para Agostinho, luz e visão, então a alma deve iluminar-se na ação epifânica da memoria sui. Agostinho previu claramente a opacidade, e em última análise a ilusão, de um conhecimento de si imediato que não pode dar origem à certeza da vida se não for transmitido pelo cogitare.[24] O cogitare é o ato reflexivo por excelência, através do qual se coloca a certeza da minha própria vida. O cogito age no horizonte da memória, e se ela nos falta, não poderíamos pensar em nada, nem mesmo ter certeza da nossa própria vida. “Quem me dirá”, exclama Agostinho, “o que era eu antes de aparecer nesta vida mortal (vitam mortalem)? Eu estava em algum lugar? Eu era alguém? Quem poderia dizer? Ninguém, nem mesmo o meu pai, nem mesmo a minha mãe, nem sequer a experiência doutrem, nem minha própria memória”.[25] Sem a memória, não há pensamento e não há captação da sua vida; com ela, o pensamento encontra seu apoio.[26]
Neste sentido, o cogitare é um desvio, uma mediação, uma ação de recuperação daquilo que minha vida fez passar na minha memória.[27] É por isso que a cogitação agostiniana é um colligere (coletar),[28] ou seja, uma síntese reiteradamente arranjada e reordenada (contexo) sob o olhar de uma alma, o que implica, por conseguinte, numa interpretação em seu próprio princípio. Daí, a alma alcança a certeza original da sua vida através da mediação das suas próprias representações (intelectuais ou sensíveis), dos seus atos e das suas lembranças, cujo efeito é revelá-la o sentido e a densidade da sua vida pré-reflexiva. Acrescentemos que esta recuperação de Eu através da reflexão não é uma autoafirmação do Eu realizada de uma vez por todas, pois o fluxo da temporalidade na consciência impõe incessantemente à alma a tarefa de reapreender o seu vivere.[29] Deste ponto de vista, ser-me-ia permitido interpretar o fim do livro X do Sobre a Trindade como uma confissão de que a afirmação do Eu é essencialmente um ato de consciência reflexiva, ou seja, um cogitare sobre o fundamento de um nosse.[30] Ainda que a intuição da vida da alma seja possível através da participação que ela goza na Vida Absoluta, para Agostinho, a consciência de si permanece sobretudo como uma memoria sui.
Temos dito até aqui que a afirmação originária do Eu é trinitária: a alma vive, sabe que vive e quer viver. De uma maneira mais geral, a vida no homem se conhece e se deseja, pois meu pensamento descobre nos antros da memória o desejo pela felicidade e, correlativamente, minha vontade deseja lançar luz sobre a verdade desta Beatitude. Mas a lembrança da felicidade não é para Agostinho uma reminiscência platônica, ela se tornou um desejo, uma tendência (in-tentio), um apetite. Para além dos meus desejos e das minhas paixões, a vida sempre aspira existir em mim;[31] ela forma o projeto da imortalidade adquirida de uma vez por todas.[32] A vida no homem tem consciência de que ela é sujeita às delícias e aos tremores que lhe impõe o corpo, ela entende que é condicionada por flutuações sensíveis. Tanto é assim que uma exigência de conhecimento leva o homem a querer ser uma “alma” e a crer que, concentrando-se em si mesmo em direção ao Outro, alcança um estado livre da degeneração que afeta todo o mundo material. A vida aspira então ao eterno, ao imutável e à beatitude absoluta (bene beateque vivere).
No entanto, a reflexão obriga-me a confessar que sou um ser-para-morte.[33] A morte de um amigo, um outro ele-mesmo,[34] relembra Agostinho desta severa verdade, tal como a longa história das gerações humanas que nascem, crescem e desaparecem.[35] Além disso, a incapacidade de se fazer o bem que se deseja e a atração para fazer o mal que se repugna sugerem que há, nas profundezas do ser, um fracasso e uma tensão; a presença de dois amores que construíram duas cidades simboliza muito bem a situação tensional no homem (controversia).[36] Esta vivência dramática da existência repercute no plano do pensamento da minha vida; de fato, a vida escapa à minha reflexão sobre ela, permanece algo de inapreensível que eu não posso nem reter, nem reencontrar integralmente.[37] Agostinho sempre acreditou que o conhecimento não é o todo da vida, mas uma etapa, ou melhor, uma forma superior de vida. No entanto, a qualquer nível que eu olhe à minha vida, há sempre um pano-de-fundo de mistério, um fundo irrefletido que priva o espírito da possibilidade de a abarcar e de a igualar a si mesmo: “quem alcançará as minhas profundezas? Pois eu sou incapaz de conhecer tudo o que sou.”[38] Somos estranhos a nós mesmos, continua Agostinho, porque nós nos tornamos um segredo para nós mesmos.[39] Em última análise, no final de uma exploração arqueológica do meu próprio Eu, descubro que não possuo a vida que é minha, e o indício dessa verificação é que eu não me igualo a mim mesmo.[40] Esta “estranheza” da vida humana leva Agostinho a descobrir, no âmago da memoria sui, uma transcendência, ou seja, uma memoria Dei. Como muito bem sublinhou M. Gilson: “Em Agostinho, a última palavra do conhecimento de si é a primeira do conhecimento de Deus”.[41]
Tal análise da vida humana, que poderia ter conduzido ao absurdo ou ao desespero, fortalece a alma no seu impulso em direção a uma felicidade para sempre indestrutível e no seu desejo de uma concórdia final e de uma unidade finalmente redescoberta.[42] A vida no homem manifesta “uma nostalgia da Eternidade”,[43] como diz Fichte, perante o espetáculo de dispersão (distentus) no seio da multiplicidade e do vaguear na diáspora da temporalidade.[44] A vida só pode ter sentido se o homem aspirar a transcender a morte e, ao fazê-lo, realizar seu desejo instintivo de imortalidade.[45] Para Agostinho, a Vida, o Amor, a Beatitude, não podem ter significado verdadeiro para a consciência humana se a vida não for recortada sobre um horizonte de absoluto.[46] De fato, o que é uma vida que morre? Um desejo sem objeto? E um amor comprometido a exaurir? Diante destas aporias, a consciência agostiniana responde que devemos esperar com uma grande esperança que Alguém venha a nos reintegrar no Uno, ou seja, ao centro do nosso ser e à fonte da nossa vida.[47] De fato, o Verbo, — o Logos — que é Filho de Deus, veio e nos chamou (revocatio), indicando-nos o caminho de volta para a Beatitude (via salutis). É precisamente isto que Agostinho deseja fazer-nos entender quando diz “a perfeição nesta vida não é outra coisa senão esquecer aquilo que passou e avançar (extendi), por meio da intenção (intentionem), para aquilo que nos espera”,[48] até que nos juntemos imutavelmente com o Absoluto, o lugar do nosso repouso.[49] Retornar a Deus é reencontrar a fonte da nossa vida, a Vida por excelência.[50]
*
* *
Concluamos sucintamente. A afirmação do Eu para Agostinho não é uma verdade vazia e abstrata, mas um ato reflexivo que realiza a recordação e a reapreensão da nossa vontade de existir. Esta apreensão imediata do ego é primeiro o sentimento de um vivere; depois, após a reflexão, ela se preenche de uma memória (memoria sui et Dei) e de uma esperança (donec resquiescat in Te).
Caso o leitor tenha aprendido algo com nossos textos, favor considerar uma doação, via PIX [real] ou entrar em nosso canal no Telegram, no código QR correspondente. Sua contribuição nos motiva a continuar fornecendo filosofia de forma simples, mas não simplificada.
Notas:
[1] Cidade de Deus, XI, 26. Para nossas referências aos textos de Agostinho, utilizamos a edição da Bibliothèque Augustinienne.
[2] A Trindade, XV, 12.
[3] Sobre a Felicidade, II, 7. Textos paralelos: Solilóquios, II, I.; Sobre o Livre Arbítrio, II, 7.
[4]Confissões, XIII, II. “Vellem ut haec tria cogitarent homines in seipsis… dico autem haec tria: esse, nosse, velle. Sum enim et scio et volo; sum sciens et volens et scio esse me et velle volo esse et scire.”
[5] Sobre este tema, cf. E. GILSON, Études sur le Rôle de la Pensie médiévale dans la Formation du Système Cartésien, Paris, 1951, e também o seu Discours de la Methode, Paris, 1925. No mesmo sentido, ver G. RODIS-LEWIS, Le Problème de L’Inconscient et le Cartésianisme, Paris, 1950, e seu artigo sobre o Augustinisme et Cartésianisme em Augustinus Magister, II, Paris, 1954.
[6]Cf. em E. GILSON, Introduction d I’Étude de saint Augustin, Paris, 1949 ; C. BOYER, L’Idée de Vérité dans la philosophie de saint Augustin, Paris, 1920 ; R. JOLIVET, Dieu soleil des esprits, la doctrine augustinienne de L’illumination, Paris, 1934; F. CAYRE, Dieu présent dans la vie de L’esprit, Paris, 1951.
[7] Cf. R. BERLINGER, Le temps et l’homme chez saint Augustin, dans Année Theol. Aug., 14 (1953) 260-279. Seria interessante aproximar esses estudos sobre as estruturas temporais do cogito agostiniano da interpretação que Merleau-Ponty faz dele em sua Phenomenologie de La Perception, Paris, 1945, p. 471, e Lavelle, em Le Moi et Son Destin, Paris, pp. 222-230.
[8] B. GROETHUYSEN, Anthropologie philosophique, Paris, 1952, mostrou os antecedentes da filosofia de Agostinho, traçando os componentes essenciais da filosofia de vida dos pensadores romanos e neoplatônicos (cf. pp. 63-100). Se, por um lado, o autor consegue mostrar-nos como Agostinho herdou esta filosofia (cf. pp. 103-127), por outro, inflecte demasiado o pensamento de Agostinho na direção de uma filosofia “voluntarista”.
[9] Este artigo segue uma abordagem diferente da de Roger Chabal, que, ao comparar a filosofia de Brunschvicg com a de Blondel sobre a relação entre a vida e a consciência, adota a solução agostiniana em detrimento de Malebranche e Pascal. Cf. R. CHABAL, Vers une anthropologie philosophique, Paris, 1964, pp. 3-13. Ver também J. NABERT, Eléments pour une Éthique, Paris, 1962 ; J. PALIARD, La Pensée et la vie, Paris, 1950.
[10] Confissões, XIII, II. « In his igitur tribus (esse, nosse, velle) quam sit inseparabilis vita et una vita et una mens et una essentia, quam denique inseparabilis distinctio et tamen distinctio, videat qui potest ». cf. Sobre a Trindade, X, II.
[11] Na perspectiva de uma filosofia que se define como uma ética, a idéia de Bem é privilegiada em relação à de Ser, de modo que volo esse se refere ao desejo de felicidade e imortalidade manifesto pelo instinto de autoconservação e pelo esforço de existir. Cf. Cidade de Deus, XI, 27: “refugiat natura non esse“; Sobre a Trindade, X, 10; XIII, 8; Confissões, XIII, 11. Compare-se com o “conatus” de Spinoza, Ética, Parte III, proposições VI, VII, com a diferença, porém, de que “Santo Agostinho insiste também na presença, nas profundezas do cogito, de um esforço – cogo – e de uma escolha – eligo – que testemunha uma tensão da alma simultaneamente virada para cima e para baixo. Evita, assim, uma armadilha: a de separar a inteligência da volição, de fazer do cogito um ato reflexivo, despersonalizando-o, sem enraizamento profundo nas funções e estruturas que o preparam: o que corre o perigo de nos levar a afirmação de que o que pensa em mim, não sou eu, mas um Espírito que realiza por mim operações de que eu seria incapaz, um Espírito impessoal sem qualquer adesão ao meu ser efêmero”, J. CHAIX-RUY, Temps et Histoire chez saint Augustin, Paris, 1956, pp. 25-26.
[12] Sobre a Trindade; XIII, 4.
[13] Sobre a Trindade; XIII, 8.
[14] Este é o Livro IX do Sobre a Trindade, que introduz as reflexões do Livro X sobre o conhecimento.
[15] Confissões, X, 23.
[16] Confissões, I, 6.
[17] Ibidem.
[18] Sobre a Trindade, X, 7: “sibi bene conscia est principatus sui quo corpus regit”. A alma agostiniana é sempre entendida como “regente” do corpo; daí o erro daqueles que a consideram corpórea. Agostinho, segundo penso, sempre evitou duas armadilhas: 1) ele rejeita a percepção materialista da alma – ao contrário dos maniqueus e dos filósofos antigos que identificavam a alma com um corpo sutil, ou com um dos quatro elementos da matéria; 2) por outro lado, ele rejeita o angelismo e mantém a unidade indestrutível do par corpo-alma (cf. o estudo de E. FORTIN, Christianisme et culture philosophique au Ve siécle, Paris, 1959, pp. 111 -161). Assim, a evidência da vida d’alma não seria mutilada de sua referência ao corpo; evidência confusa, sem dúvida, quanto ao modo de animar o corpo (cf. De L’Origine de L’Ame, IV, 5), mas ainda assim segura da presença da alma em todo o campo sensível (cf. J. ROHMER, L’Intentionalité des Sensations chez saint Augustin, in Aug. Mag, Paris, 1954, I, pp. 491-498 ; J. CHAIX-RUY, Temps et Histoire chez saint Augustin, Paris, 1956, pp. 19-35.
[19] O “glutino amoris”, como é chamado em Sobre a Trindade, X, 8.
[20] Sobre a Trindade, XV, 12.
[21] Conferir as belas páginas sobre a memória em Confissões X, 8-20. Sobre a memória como “imaginação epifânica”, posso interpretar o texto das Confissões, X, 8: “Et eadem copia etiam similitudines rerum vel expertarum vel ex eis, quas expertus sum, creditarum alias atque alias et ipse contexo praeteritis atque ex his etiam futuras actiones et eventa et spes, et haec omnia rursus quasi praesentia meditor”. Cf. Sobre a Trindade, XV, 12, § 22: “haec igitur omnia et quae per se ipsum et quae per sensus sui corporis et quae testimoniis aliorum percepta scit animus humanus thesauro memoriae condita tenet, ex quibus gignitur verbum verum (…) quoniam de visione scientiae visio cogitationis exoritur”.
[22] Sobre a Trindade, X, 5: “cum ergo aliud sit non se nosse, aliud non se cogitare”.
[23] Sobre a Trindade, X, 12: “mentem quippe ipsam in memoria et intelligentia et voluntate suimetipsius talem reperiebamus”.
[24] É por isso que ele admite ser impossível à alma livrar-se de toda a carnalidade que entrou nela através das percepções sensíveis. Tanto assim que se torna difícil distinguir nela a memória de si e o conhecimento de si; cf. Sobre a Trindade, X, 2: “ac per hoc difficile in ea dignoscitur memoria sui et intelligentia sui. Quasi enim non sint haec duo, sed unum duobus vocabulis appelletur… » Leia-se também X, 8: “Hinc ei (ame) oboritur erroris dedecus dum rerum sensarum imagines secernere a se non potest ut se solam videat… dum se solam nititur cogitare, hoc se putat esse sine quo se non potest cogitare”. Idealmente, é claro, a alma deveria trabalhar à maneira plotiniana, purificando-se desta “ganga” do sensível para chegar a uma intuição pura de si mesma. A vantagem de um tal projeto é que impede a alma de cometer todo o tipo de erros sobre a sua natureza (como identificar-se com objetos corpóreos ou com as imagens que contém dentro de si). É para preservar a grandeza e a dignidade espiritual da alma que Agostinho fala de purificação (cf. Sobre a Trindade, X, 5-7). Por outro lado, Agostinho reconhece que, para verificar a certeza intuitiva da vida, a alma tem de passar pelo desvio da reflexão (cogitare), ela própria mediada pela concretude (concrevit) do sensível. Se o Homem vive uma vida superior à do animal, ou do cadáver ou da planta, não deixa de ser verdade que lhe é impossível (non potest) pensar-se a si próprio sem referência ao mundo do imaginário. Quando pensa no espiritual, em Deus por exemplo, a alma agostiniana pensa num “quandam lucem et quandam vocem et quandam odorem et quandam cibum et quandam amplexum…”. (Confissões, X, 6). Esta “ocultação” da alma pelas suas imagens e signos implica a necessidade de ela simbolizar a sua vida íntima para verificá-la. É por isso que a imaginação epifânica, que é a memória, e o cogito que dela emerge, são indispensáveis para a evidência da sua vida. Noutras palavras, podemos dizer que a autoconsciência reflexiva anexa a si mesma todo o imaginário (contido na memória) para recuperar a intimidade do Eu. A este respeito, Agostinho parece-me estar próximo de Maine de Biran e da sua teoria dos signos, cf. Memoire sur la Decomposition de la Pensée, éd. P. U. F., Paris. P. U. F., Paris, 1952.
[25] Confissões, I, 6.
[26] CHAIX-RUY, op. cit. p. 19 ; J. GUITTON, Le Temps et L’Éternité, Paris, 1955, pp. 199-217.
[27] Sobre a Trindade, XIV, 6; X, 4.
[28] Confissões, X, II: “cogitando quasi colligere… id est velut ex quadam dispersione colligenda, unde dictum est cogitare”. Esta síntese de tudo o que está em gestação (gestat) na memória não visa exclusivamente o conhecimento puramente intelectual mencionado no capítulo 11, mas também tudo o que aprendemos através dos sentidos. Ver cap. 8 acima.
[29] Sobre a Trindade, X, 12: “dum ea tractantur quae ad animum tempore accedunt et quae illi temporaliter accidunt, cum meminit quod antea non meminerat, et cum videt quod antea non videbat, et cum amat quod antea non amabat”. É assim que podemos explicar as muitas tentativas de “confessar-se” na obra de Agostinho. Muito antes da já clássica obra de 397, Agostinho dá-nos as suas primeiras confissões por volta dos anos 386-387: uma nos Solilóquios (I, 9-13), a outra no seu tratado Sobre a Beatitude (IV-VI). E se aceitarmos a teoria de J. O’Meara (em Charter of Christendom, The Significance of the City of God, Nova Iorque, 1961), a Cidade de Deus seria, transposta para a dimensão do Eu coletivo, uma outra consciência construída sobre a tela das Confissões. Por que Agostinho gostava de falar tanto de si mesmo? Terá sido por orgulho? Não parece. Não seria porque, a cada etapa importante da sua vida (quer como pessoa, quer como pastor), ele sentia a necessidade de se “reapropriar” da sua existência, do seu Eu? Isto é, reorganizar o seu vivere. Para ele, como na vida pitagórica, esses exercícios de memória eram sem dúvida úteis para o conhecimento de si e para a purificação da alma (cf. J-P. VERNANT, Mythe et Pensée chez les Grecs, Paris, 1965, pp. 60-73); mas tinham também por objetivo organizar periodicamente a experiência temporal da sua vida. A memória agostiniana permite construir uma história pessoal na qual se atesta a unidade do Eu, uma vez que ela liga os nossos Eus sucessivos e dá às nossas sensações a profundidade e densidade necessárias. Através dela, o Eu se coloca em oposição a Ti, num ato de humildade e adoração. É com este espírito que Agostinho conta a sua história diante de Deus!
[30] Sobre a Trindade, X, 4.
[31] Sobre a Trindade, XIII, 8; X, 10.
[32] A Cidade de Deus, XII, 14. Agostinho rejeita a beatitude cíclica a que conduz a teoria da metensomatose. A felicidade não pode ser verdadeira se não for eterna e definitiva, sem possibilidade de retorno.
[33] A Cidade de Deus, XIII, 10.
[34] Confissões, IV, 6.
[35] Ibid., IV, 10.
[36] A Cidade de Deus, XIII, 13.
[37] Confissões, IV, 7.
[38] Confissões, IV, 4; X, 8.
[39] Sobre a Alma, IV, 7, 8; Sobre a Trindade, V, I.
[40] Sobre a Alma, IV, 6; Da Ordem, I, 2; Confissões, I, 2; X, 24. É também desta maneira que Blonde chega a colocar a presença, no seio mesmo do seu Eu, do Ser, ou seja, Deus. Veja L’Action, Paris, 1893, p. 347.
[41] E. GILSON, L’Esprit de la philosophie Médiévale, Paris, 1948, p. 226.
[42] A Cidade de Deus, XII, 22.
[43] FICHTE, Initiation d la Vie Bienheureuse, trad., Aubier, Paris, 1944, p. 105.
[44] Confissões, XI, 29.
[45] A Cidade de Deus, XIV, 25.
[46] Idéias retomadas por Fichte, op. cit. p. 106 e seguintes.
[47] Confissões, XI, 29.
[48] Sobre a Trindade, IX, I.
[49]Confissões, I, I.
[50] Ibid., IV, 12; XII, 10.
Posts Relacionados
-
Guia de Estudo básico para Filosofia Antiga
É unicamente o que procuram aqueles a que chamam filósofos, e a palavra filosofia não…
-
Convite à Filosofia, de Enrico Berti
Por Helkein Filosofia Dois filósofos, talvez os dois maiores filósofos que já teve a…
-
Compilado de Coleções de Filosofia
O estudante de filosofia ama coleções; mas enquanto alguns amam pela estética, e é natural…