Por Richard Cocks
Tradução de Tibério Cláudio de Freitas
Notas e comentários de Helkein Filosofia
O Dilema do Bonde é um possível corruptor moral que pertence a uma propaganda pró-assassinato com tendências nihilistas. Nele se imagina um cenário onde se pode, com o puxar de uma alavanca, desviar um bonde descontrolado para salvar cinco vidas. Infelizmente, tal ato incorre no assassinato de uma pessoa inocente que, de modo contrário, o bonde não a machucaria. O assassinato é definido como “matar uma pessoa inocente com a intenção de matar”; não é algo que ocorre simplesmente por conta de alguma negligência ou seja lá o que for. Primeiramente, por “inocente”, significa que a outra pessoa não está deliberadamente tentando te matar nem outro alguém. E deixar que alguém morra não configura como assassinato. Quando o cenário é descrito, talvez a maioria imagine que o moralmente correto a se fazer seja puxar a alavanca e assassinar o inocente, — que por alguma razão esquecem-se de que a proibição do assassinato é a mais básica, fundamental e importante regra moral de toda a moralidade.
O golpe de misericórdia desse convite moralmente repugnante (para que se assassine e expie) ocorre quando o cenário é refeito, de forma que, em vez de se puxar a alavanca, é necessário que o assassino empurre alguém duma ponte, prendendo o indivíduo debaixo das rodas do bonde, e assim prevenindo que as cincos pessoas morram atropeladas. Nesta situação, a maioria das pessoas declara que não irá assassinar o inocente. E então durante uma aula em que se discute os dois casos, o professor de filosofia diz para a sua turma que ambos os cenários são logicamente e moralmente idênticos. Aí os estudantes acabam por perceber que têm intuições morais exatamente opostas em relação aos dois casos, fato que os encoraja a encarar as suas próprias intuições morais com cepticismo e desconfiança, visto que claramente não são fiáveis quando se trata destes dois cenários. Não se pode confiar em intuições morais que se contradizem.[1]
Conforme escrevi algures, um outro cenário que na parte moral assemelha-se ao sobredito, seria um em que há, num lago, um maluco sobre uma jangada, e nela, ele faz cinco pessoas de reféns. Ao passares pela orla, ele berra para ti que irá matá-los, a não ser que afogues o próximo inocente que caminhar por lá. Tu segurá-lo-ás pelo pescoço, até que o seu pulmão se encha de água, e manter-te-ás assim, segurando-o enquanto ele se debate, até que morra. Apenas um imbecil moral (o nome original que se dá a psicopatas) imaginaria que assassinar aquele inocente seria o correto a se fazer.
Numa conversação recente, alguém (X) argumentou que chamar a puxada da alavanca de assassinato é uma falácia de petitio principii. Com certeza não o é. Essa puxada muito bem condiz com a definição de assassinato, id est, a morte ilícita e premeditada de outro ser humano inocente. E então o X reescreveu o assassinato, só que alegando que o assassino não pretendia matar o inocente: pretendia salvar as cinco pessoas. De alguma maneira, ele imagina que a “real” intenção do assassino é salvá-las, e, afinal de contas, está apenas puxando uma alavanca, não matando alguém [2] O fato de que puxar a alavanca resulta na morte de alguém lhe é irrelevante e tampouco tem algo que ver consigo. Ele não quer matar o inocente, quer salvar as outras cinco. Tal idéia insensata ignora que se quer salvar cinco pessoas assassinando um inocente. O X transforma a moralidade em um jogo semântico sem sentido e fala com má-fé.
Certas palavras como “prevaricação”, “dissimulação”, “equívoco” e “circunlóquio” nos vêm à mente. O X junta-se a Bill Clinton no grupelho dos que “não fazem sexo com aquela mulher”. Clinton, quando seus assessores lhe perguntaram sobre Monica Lewinsky, respondeu: “Não há nada entre nós”. Ao se explicar (por que não estava mentindo) para o grande júri, Clinton disse: “Isso depende de qual o significado da palavra ‘é’ é. Se o — se ele — se ‘é’ significa é e nunca foi, isso não é — isso é uma coisa. Se isso significa que ‘nunca houve’, o depoimento era completamente verdadeiro. … Agora, se alguém tivesse me perguntado naquele dia, ‘tens tido algum tipo de relação sexual com a Srta. Lewinsky?’, isto é, me feito uma pergunta no tempo presente, eu teria dito que não: e isso seria completamente verdade.” [3] Clinton mente por omissão. Conforme a sua pedantesca distinção de é/era, a não ser que realmente transasse com a Lewinsky enquanto lhe perguntavam sobre ela, poderia, de consciência limpa, declarar-lhes que não. Ele chegou ao ponto de dizer que sexo oral não é sexo, supostamente fazendo com que toda uma geração de americanos pensasse que fazer sexo oral não contaria como traição. Estou tentado a escrever uma lista doutras coisas que também não contariam como sexo segundo esse modo de pensar; mas assuntos do meu gosto prevalecerão. E também não é de se pensar que seja algo próprio dos filósofos brincar com joguinhos que usam de palavras advocatícias.
Agora, caro leitor, imagina que o X está atado sobre uma mesa especial (que tem uma alavanca que fá-la separar-se ao meio) bloqueando o meu acesso a uma geladeira. Caso eu trate de puxar a alavanca, a mesa mover-se-á em duas direções opostas. O X será, então, dividido ao meio conforme ela se separa; e assim torna-se possível o meu acesso ao frigorífico. Segundo o X, não sou responsável pela morte horrível do X: eu só queria algo para comer. Eu quero me alimentar, não matar. Ipso facto, eu sou inculpável. Olha, cara, só estou puxando uma alavanca. Caso o X grite, clamando pela própria vida, responder-lhe-ei que não tenho a intenção de matá-lo: só a de me alimentar. Agora, sai tu da minha frente. Semelhantemente, alguém motivado por ciúmes, que mata um pretendente rival na disputa por um amor, poderia dizer: “Eu não quero matar ninguém, só quero que a mulher seja minha. Eu só quero viver um romance de cinema, e não um drama policial (em que se persegue um assassino); pelo amor de Deus”. Um raciocínio destes é psicótico em vez de racional. Tratar alguém como um meio para um fim supostamente bom não torna as ações de uma pessoa em algo moralmente bom, mas pelo contrário.
E então o X passa a empilhar um erro moral e um erro filosófico sobre o outro. Ele concorda que a versão da alavanca é moralmente equivalente à versão do bonde em que se empurra um inocente de uma ponte, mas apenas para argumentar que isso quer dizer que deve-se fazer ambas as coisas: puxa-se a alavanca e empurra-se o inocente para parar o bonde. Ele afirma que a sensação visceral e repugnante de se empurrar alguém para parar o bonde é irracional justamente por haver emoções envolvidas. Puxar (com indiferença) a alavanca é “racional”, e, por conseguinte, é racional empurrar o inocente que impede o bonde de matar outras pessoas.
É aí precisamente que está o problema: a alavanca permite suprimir a nossa relutância moral e emocional para que possamos assassinar com indiferença, pois ela torna a execução do assassinato em algo menos “tangível”. O assassinato torna-se-nos mais abstrato; a realidade da pessoa que estamos matando é-nos menos aparente. E nós não matamos seres humanos justamente porque assemelham-se a nós: pensam e sentem como nós. Se eles fossem um robô sem sentimentos, acharíamos mais fácil matá-los, e em verdade: seria menos imoral fazê-lo. Ao assemelharmo-nos a um robô (que não pensa e nem sente), ironicamente também transformamos a nossa vítima em um robô.
Caso peças para que alguém resolva um simples problema matemático, antes de se pedir que faça uma caridade, essa pessoa acabará por doar menos. Isso ocorre pois a ativação de vias neurais interfere nas preferências e na avaliação moral de uma pessoa.[4]
“Os estudos a respeito da tomada de decisão em pacientes neurológicos que não conseguem processar informação emocional normalmente sugerem que: as pessoas fazem julgamentos não apenas avaliando as suas conseqüências e a sua probabilidade de ocorrer, mas também e principalmente nalgumas vezes, num nível emocional e visceral. As lesões do setor ventromedial (o que inclui o orbitofrontal) do córtex pré-frontal interferem no processamento normal de sinais emocionais ou “somáticos”, enquanto poupam a maioria das funções cognitivas básicas. Tais danos levam a prejuízos no processo de tomada de decisão que comprometem seriamente a qualidade das escolhas tomadas na vida cotidiana da pessoa.”[5]
Em meu artigo Monsters of Duty: Cordwainer Smith’s Attack on Kantian Morality and the Suppression of Feeling in Scanners Live in Vain – VoegelinView (donde provém a passagem sobremencionada) argumento que o conto de Cordwainer Smith é uma análise brilhante do papel que a emoção possui na tomada de decisão moral. A moralidade não pode ser derivada somente de processos racionais. No centro da moralidade está a recognição de que a vida humana é sagrada por sermos feitos à imagem de Deus[6] Sem este apelo ao valor intrínseco, que deriva duma fonte divina, não pode a moralidade funcionar. O valor extrínseco parasita o valor intrínseco. A reciprocidade, que consiste fundamentalmente numa “troca de presentes” (ex. uma pessoa ajuda uma e a outra retribui), é correta e justa. Isto é um axioma; e como todos os axiomas, pode-se perceber a sua verdade, mas não prová-la racionalmente ou de outro jeito, como ocorre com o axioma P = P. Gödel provou que mesmo a matemática não consegue estar completamente formalizada e reduzida à manipulação de símbolos — insight e intuição se fazem necessários até para isso. O hemisfério direito, então, dá o material para se analisar; e o esquerdo analisa-o. Sem a inserção de material do hemisfério direito, o esquerdo nada tem para contemplar.
A metaética é perfeitamente razoável: ela olha para os fundamentos religiosos da ética e descobre as suas implicações. E as teorias morais, por outro lado, são assuntos do hemisfério esquerdo. As teorias morais como o utilitarismo e a deontologia de Kant são tentativas de se colocar as razões morais num fundamento mais racional. Mas, no processo, geraram abominações morais e encorajaram as pessoas a se comportar pior do que fariam caso apenas seguissem as próprias intuições morais; assumindo, é claro, que elas não sejam imbecis morais. Ambas as teorias representam uma regressão ao bode expiatório pré-cristão: o utilitarismo diz que tudo aquilo que for melhor para a maioria é moralmente bom — logo ele fica ao lado da multidão versus a vítima; e o kantismo sacrifica a vítima em nome da lei moral, recusando-se até mesmo em mentir para salvar a vida de alguém — o que demonstra maior fidelidade à “racional” lei moral do que à pessoa. [7] Kant está apaixonado pelo estrelado céu sobre ele e pela lei moral dentro de si, não pela vítima inocente. Uma mera racionalidade não é racional; basta dela. A tomada de decisão moral depende do transcendente e da pessoa que pensa e sente.
Deixando o melhor para o final… Talvez me tenha ocorrido há alguns dias que seria moralmente justificável atirar em quem fizesse um movimento para puxar a alavanca. Os policiais, que têm um especial dever moral (tendo jurado cumprir a lei), seriam moralmente obrigados em atirar no suposto assassino para salvar da morte um inocente. Um civil qualquer não pode ser legalmente obrigado a prevenir crimes, mas ter-se-ia como moralmente louvável caso matasse, em defesa dos inocentes, o pretenso puxador de alavancas. Assim que fizeres um movimento para assassinar alguém, perdes o teu direito à vida caso matar-te seja necessário para te parar.
O X apresentou um cenário onde o suposto assassinato é um insano (isto é, que tem a própria agência moral prejudicada), logo argumenta que não há problema caso ele jogue um inocente nos trilhos do bonde. Poder-se-ia também imaginar que alguém foi infectado com a raiva, uma doença que afeta o cérebro da pessoa raivosa e fá-la morder outras pessoas de forma irracional e violentamente, infectando-as com uma doença que tem, efectivamente, uma taxa de letalidade de 100% — se imaginarmos que o infectado não chegasse a um hospital em tempo de receber tratamento preventivo. Nestes dois casos, o do insano e da pessoa raivosa (que também é insana), essas pessoas perderam a sua agência moral e não mais se responsabilizam moralmente pelas próprias ações. Ainda seria necessário matá-los para proteger o inocente cuja vida ameaçam. E nenhuma pessoa seria moralmente censurável por ter sido privada da própria agência moral. Infelizmente, ambos teriam de ser mortos à maneira dum cão com raiva. Eles acabaram por perder a sua humanidade na medida em que não são mais um agente moral. Merecem, pois, piedade, mas por ora são uma ameaça iminente para um inocente que deve ser protegido. Nenhuma destas considerações se estende ao puxador de alavancas que quer assassinar.
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Notas:
[1] Nesse sentido o falso dilema incluso no problema do bonde induz ao relativismo; visto que a nossa “intuição moral” falha e deixa de ser confiável, logo é possível deduzir que somos incapazes de ajuizar corretamente acerca de temas morais. [N.E.]
[2] Isso é algo como puxar o gatilho de um revólver apontado para a cabeça de uma pessoa e depois alegar que a intenção fora puxar o gatilho e não matar. [N.E.]
[3] Timothy Noah, Bill Clinton and the Meaning of “Is”, Slate, September 13, 1998. <https://slate.com/news-and-politics/1998/09/bill-clinton-and-the-meaning-of-is.html> [N.A.]
[4] Termo original que se refere à neurologia: ‘pathways’. [N.T.]
[5] Antoine Bechara, “The role of emotion in decision-making: Evidence from neurological patients with orbitofrontal damage,” Brain and Cognition 55 (2004) 30–40. [N.A.]
[6] É o sentido original de caridade, profundamente alicerçado no que realmente há de mais íntimo e específico em nós, a saber: a Imago Dei. Tal especificação foi secularizada em nome do termo altruísmo, que substitui a realidade Imago Dei pela abstração de nome “humanidade”. [N.E.]
[7] Espantalho muito famoso. De modo grosseiro, o imperativo categórico possui uma estrutura ideal semelhante àquela, por exemplo, de um mandamento do decálogo. É uma lei pura da razão, e, assim como qualquer lei pura, não se manifesta inalteradamente na realidade, algo semelhante ao caso da idéia platônica. No caso, o imperativo de não mentir vale para uma mentira genérica, pois, caso todos mentissem, o caos instalar-se-ia. Mas, por exemplo, no caso da pessoa que mente para o ladrão para que ele não saiba onde o dono guarda os seus pertences, não se trata de uma situação genérica da mesma forma que aquele que mata, em legítima defesa, um assaltante, não está cometendo um assassinato — que neste caso, por conseguinte, é uma situação genérica pertencente ao mandamento de não matar ou ao imperativo de que não se deve matar. [N.E.]
Artigo gentilmente concedido por Voegelinview.com. Original aqui.