Por Edward Feser
Tradução, notas e comentários de Helkein Filosofia
Mais de uma vez nos foi ensinado, seja através das Escrituras ou da Tradição, que o sofrimento é o destino não apenas da humanidade em geral mas, em especial, do cristão, aquele que tem como modelo a Cristo, o “homem de dores, experimentado nos sofrimentos” (Is. 53:3). Quando Jesus advertiu que era necessário que sofresse e morresse, “tomando-o Pedro aparte, começou a increpá-lo, dizendo: ‘Deus tal não permita. Senhor; não te sucederá isto,’” o que O impeliu à famosa repreensão:
“Ele, voltando-se para Pedro, disse-lhe: ‘Retira-te de mim. Satanás! Tu serves-me de escândalo, porque não tens a sabedoria das coisas de Deus, mas dos homens.’ Então Jesus disse aos seus discípulos: ‘Se alguém quer vir após de mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Porque o que quiser salvar a sua vida perdê-la-á; e o que perder a sua vida por amor de mim, achá-la-á.’” Mt. 16: 22-25
São Paulo nos conta que implorou constantemente para que Deus o aliviasse de certa fonte de persistente tormento.
“[…] mas disse-me: ‘Basta-te a minha graça, porque é na fraqueza que o (meu) poder se manifesta por completo.’ […] Por isso, sinto complacência nas minhas, enfermidades, nas afrontas, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias por amor de Cristo, porque, quando estou fraco (quanto às forças da natureza), então sou forte (na graça).” II Cor. 12: 9-10
As vidas dos santos em geral, não apenas as dos mártires, desde os tempos da Igreja primitiva até os nossos, testemunham que o sofrimento é a norma da vida cristã; O Papa São João Paulo II chegou ao ponto de mencionar um “Evangelho do sofrimento” (expressão também utilizada por Kierkegaard) cuja mensagem consiste em dizer que o sofrimento nos redime e possibilita uma união particularmente íntima com Cristo.
Toma tua cruz.
Segundo a compreensão cristã o sofrimento é, para que tomemos de empréstimo o linguajar de um programador de software, uma característica e não um bug; não se trata de um fato inexplicável acerca da condição humana e nem uma vergonha para a teologia cristão, algo que Tradição precise escamotear. Inversamente, a Tradição põe a realidade do sofrimento em lugar de destaque, afirmando que ela consiste n´uma consequência inevitável do pecado original e atual. Desenvolvi o mesmo tema num post anterior em que argumentei que o desconcerto moderno em relação ao sofrimento existente no mundo é antes uma consequência de sua apostasia do cristianismo do que algo causado por ele – e que é um artefato em grande escala do depauperamento e da afluente decadência do ocidente moderno.
Que os cristãos contemporâneos tenham sido corrompidos por uma tibieza decadente evidencia-se pela forma como resistem aos “rígidos” ensinamentos da Igreja, em especial em matéria sexual, visto que estão interessados antes em assegurar à nossa sociedade depravada que os pecados sexuais não são os piores que se pode cometer, algo como tranquilizar Bernie Madoff de que a fraude não é tão grave assim ou aos conspiradores de Watergate que o perjúrio não é a maior das faltas – o que é verdade, mas a ênfase está claramente deslocada. Ainda que não sejam os mais graves, os pecados sexuais são sérios e destrutivos o suficiente para corromper a ordem social. São muito fáceis de se cair e muito difíceis de se livrar, o que resulta em sua extrema disseminação – muito maior do que, por exemplo, o perjúrio. Sua prevalência, intratabilidade, irracionalidade e a ordem social generalizada da qual são sequela estão plenamente vivas em nosso redor. Entretanto, mesmo a maioria dos teólogos e religiosos conservadores preferem falar de qualquer outra coisa, menos isso. Por quê?
É natural que a covardia seja um fator, mas não se trata apenas de uma questão de prevaricação nesta ou naquela ocasião em especial; consiste, a meu ver, numa indisposição geral em enfrentar a inevitabilidade do sofrimento – ou para exigir que outros o façam. A ladainha de reclamações acerca da moralidade sexual cristã é bem conhecido: ‘mas é um hábito que não posso largar; mas eu não posso deixar de sentir atração; mas eu nasci assim; mas estou frustrado e não consigo encontrar alguém para me casar; mas sinto-me como se estivesse no corpo errado; mas não consigo lidar com um bebê nesse momento; mas… você quer dizer que eu não posso satisfazer meus desejos? Que eu preciso sofrer com estes desejos talvez pelo resto de minha vida?”
A resposta tradicional dos cristãos seria a seguinte: “sim, exatamente. Toma tua cruz”. Mas o cristão moderno treme na base, muda de assunto e talvez se sinta culpado por ter tocado no assunto. Note que não afirmo que “toma tua cruz” seja tudo o que precisa ser dito; de forma alguma deve ser esta a última palavra – mas decerto deve ser a primeira. O cristão moderno supõe o contrário por confundir pena com misericórdia. Elas diferem e, atentando à precisão, embora a misericórdia normalmente envolva a pena, nem toda pena equivale à misericórdia.
A qualidade da misericórdia
A misericórdia, como ensinado por Sto. Tomás de Aquino em Suma Teológica II-II q.30 a.3, é uma virtude;[1] uma virtude consiste numa mediania entre os extremos que, por conseguinte, correspondem a vícios – seja por excesso ou deficiência. No caso da virtude da misericórdia, sua deficiência seja a impiedade. Mas qual seria seu excesso? Sto. Tomás aponta que a “A misericórdia implica dor pela miséria alheia. Esta dor pode ser, de um modo, um movimento do apetite sensitivo. Nesse sentido, a misericórdia não é uma virtude, mas uma paixão”.[2] O que ele consiste em que por vezes o que temos em mente quando falamos de “misericórdia” pode ser uma espécie de paixão, um sentimento, i.e., tristeza pela angústia sentida por outrem. Esse sentimento não é, em si mesmo, a virtude da misericórdia, ainda que seja tipicamente associado a ela (muitos sentimentos são assim; por exemplo, o amor é comumente associado a sentimentos ainda que não seja, em si mesmo, um sentimento: por outro lado, é a vontade do que é bom para o outro. Isso pode existir ainda que na ausência de sentimentos, e estes podem também existir na ausência do amor. Existe, de fato, uma correlação aproximada entre as virtudes e certos sentimentos, mas eles não devem ser confundidos).
Quando os sentimentos jazem sob jugo da razão, então há a autêntica misericórdia; mas Sto. Tomás a distingue da “misericórdia considerada como uma paixão não regulada pela razão; assim, ela impede a deliberação da razão, fazendo-a apartar-se da justiça”[3] (ênfase minha”). Um bom exemplo seria o de um advogado sentisse pena de Bernie Madoff a ponto de libertá-lo mesmo que ele não estivesse arrependido.
Eis o que poderíamos chamar de vício do sentimentalismo, algo que envolve conceder aos sentimentos a liderança própria da razão. Decerto, por sermos antes animais racionais do que intelectos angelicais, precisamos dos sentimentos para que tenhamos uma orientação bruta no dia-a-dia; quando tudo está correto mas a razão jaz enfraquecida por não haver tempo para raciocinar sobre um problema, eles nos impelem a fazer o bem. Mas ainda assim são meros e altamente falíveis assistentes da razão e, assim como todas os temas humanos, podem distorcer-se, e é precisamente isso o que acontece quando associam-se à misericórdia por um pecado com tal força que nos leva a ignorar o fato de que o mísero é de fato um pecador. Com certeza a verdadeira misericórdia faz mais do que meramente rogar pelo arrependimento e pela penitência, mas também não faz menos do que isso. Ela ajuda o pecador, da forma mais gentil possível, a aceitar a inevitabilidade do sofrimento resultante do pecado – em vez de iludi-lo fingindo que trata-se de algo contingente ou simplesmente mudando de assunto.
Do Cristo ao anticristo e então voltando
A aceitação do sofrimento como algo necessário ao nosso aperfeiçoamento é algo básico da sabedoria moral cristã, mas também é possível dizer que faça parte, em certa medida, da lei natural, como fica claro no exemplo daquele que em outros aspectos não poderia estar mais distante da cosmovisão cristã, a saber, Friedrich Nietzsche. Assim como Sto. Tomás, Nietzsche distingue entre dois tipos de piedade, sendo que favorece um e rejeita outro; no caso, vê no homem um tipo que enobrecê-lo, mas há ainda outro que o diminui, um que nasce da simpatia com os “viciados e vencidos”, e com os elementos “resmungadores” e “sediciosos” da sociedade em geral (Beyond Good and Evil 225, tradução de Kaufmann).[4] Sob a influência desta falsa piedade, diz Nietzsche:
A decisão de estar só parece perigosa e tudo que separa o indivíduo do rebanho. Tudo aquilo que assusta ao próximo, será designado como o mal. Por outro lado, o espírito tolerante, humilde, submisso, respeitoso com a igualdade, com a mediocridade dos desejos colhe epítetos e honras morais. (201)
O resultado inevitável, argumenta Nietzsche, é o colapso na licenciosidade:
Na história da sociedade há um ponto de delinquência e de debilidade enfermiça, em que a própria sociedade toma partido de que a prejudica. Castigar lhe parece, em certa medida, injusto ou pela obrigação de castigar a faz sofrer. Colocar assim a solução é como impedir ao criminoso que continue produzindo danos, sem necessidade de castigá-lo; é assim como a moral gregária, a moral do medo tira suas últimas conseqüências. (201)
A dura verdade, comenta Nietzsche, é que para que se alcance o verdadeiramente bom para os indivíduos e para a sociedade é necessária a disciplina do sofrimento – e aqueles que fecharam os olhos a isso não são os amigos do homem, mas seus inimigos:
Momentos em que contemplamos com angústia indescritível a vossa compaixão e evitamos uma tal compaixão, momentos em que achamos mais perigosa a vossa seriedade que qualquer outra leviandade, olhais, possivelmente — e não há “possivelmente” mais estulto que esse — o momento de suprimir o sofrimento e nós? Parece até que se deseja reduzir as coisas a um grau mais agudo e a pior partido do que o foram até agora.
O bem-estar, como o entendeis, não representa um fim, mas, pelo menos para nós, o fim! Significa um estado que acaba por tornar o homem ridículo e desprezível — que faz com que deseje a perdição. A escola da dor, da grande dor — não sabeis que esta escola permitiu ao homem atingir certas atitudes? (225)
E o diz, semelhantemente, em A Vontade de Poder:
A semelhantes homens, que me interessam, desejo sofrimento, abandono, doença, maus-tratos, degradação, – desejo que não lhes permaneça desconhecido o profundo autodesprezo, o martírio da desconfiança contra si, a miséria do vencido: não tenho nenhuma compaixão deles, pois lhes desejo aquela única coisa que demonstra hoje se alguém possui ou não possui valor, – que se mantenha firme…
É irônico que o homem que caracterizou a si mesmo como “anticristo” deva ecoar o chamado de Cristo para que assumamos nossa cruz; mas não surpreende tanto assim quando percebemos que os inimigos da fé a imitam em alguns aspectos mesmo quando a rejeitam. O abraçar do sofrimento nietzschiano decerto não identifica-se com o cristão: Nietzsche foi um elitista que não conclama todos os homens à excelência e nem pensou que todos fossem capazes; já Cristo ensina que todos fomos feitos à imagem de Deus e clama todos ao arrependimento e à santidade enquanto sacrifica a visa por eles (mesmo que nem todos aceitem seu sacrifício). Em busca da força necessário ao suporte do sofrimento, Nietzsche olharia para dentro; já o cristão sabe que isso só é possível através da graça. O Übermensch glorifica a si mesmo; o cristão glorifica a Deus.
Mas se os cristãos podem amar seus inimigos, decerto também podem aprender com eles. É um sinal de desordem diabólica que em nossos tempos precisem que um de seus maiores inimigos forneça um lembrete acerca da diferença entre a verdadeira e falsa misericórdia – e do sofrimento implícito na primeira.
Nota do Tradutor:
Todos os trechos bíblicos foram retirados da edição do Pe. Matos Soares de 1956. Os trechos de Além do Bem e do Mal foram retirados da tradução de Márcio Pugliesi e de A Vontade de Poder da tradução de Marcos Sinésio Pereira Fernandes e Francisco José Dias de Moraes. Trechos de Sto. Tomás retirados de Suma Teológica Vol. V na versão da Edições Loyola.
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Bibliografia Recomendada:
- Alasdair MacIntyre – Depois da Virtude: um Estudo Sobre Teoria Moral
- Bernardo Veiga – A Ética das Virtudes segundo Tomás de Aquino
- Fabrice Hadjadj – A Fé dos Demônios
- Michael E. Jones – Libido Dominandi: Libertação Sexual e Controle Político
- Scarlett Marton – Nietzsche: Das Forças Cósmicas aos Valores Humanos
- Sto. Tomás de Aquino – Suma Teológica Vol. V
- Theodore Dalrymple – Podres de Mimados: As consequências do sentimentalismo tóxico
Notas:
[1] “E porque a virtude humana consiste num movimento do espírito regulado pela razão, como já foi demonstrado, consequentemente a misericórdia é uma virtude.” S. Th. II-II q.30 a.3 Resp. [N.T.]
[2] S. Th. II-II q.30 a.3 Resp. [N.T.]
[3] S. Th. II-II q.30 a.3 ad.1. [N.T.]
[4] “Hedonismo, pessimismo, utilitarismo ou eudemonismo: todos esses modos de pensar, que têm por medida o prazer e o sofrimento, isto é, certos estados acessórios são modos de pensar primitivos e ingênuos, que cada um que se sinta de posse de forças criadoras e de uma consciência artística olhará com ar de desprezo, não falto de compaixão. Compaixão de vós, sim! Mas não a compaixão tal qual a entendeis, não se trata da compaixão pela miséria social, pela sociedade, pelos seus doentes e suas vítimas, pelos seus viciados e vencidos desde a origem que jazem espedaçados a nosso redor e menos ainda compaixão por catervas de escravos resmungadores, opressos e sediciosos, que aspiram ao domínio que chamam “liberdade”. A nossa compaixão é bem mais elevada vemos que o homem se empequenece, que vos o diminuis! Momentos em que contemplamos com angústia indescritível a vossa compaixão e evitamos uma tal compaixão, momentos em que achamos mais perigosa a vossa seriedade que qualquer outra leviandade, olhais, possivelmente — e não há “possivelmente” mais estulto que esse — o momento de suprimir o sofrimento e nós? Parece até que se deseja reduzir as coisas a um grau mais agudo e a pior partido do que o foram até agora.” [N.T.]
Do mesmo autor:
O Pecado do Juízo Precipitado Segundo Sto. Tomás de Aquino
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