por Paul Elmer More
Tradução, Notas e Comentários de Helkein Filosofia
Capítulo V
Mas tudo isso é o arquétipo perfeito de uma meia-verdade, como deve admitir qualquer um que esteja familiarizado com a história da religião em Alexandria; e também é amplamente correto enquanto referente ao renascimento romântico do alexandrianismo, que aos olhos de Nietzsche constitui o todo do cristianismo moderno. O fato é que ele estava realmente preocupado com certos aspectos da sociedade como existia ao seu redor, e sua hostilidade ao passado não se referia aos séculos mortos em si, mas ao que sobrou deles no presente – afinal, o que há a temer no passado, senão o que permanece no presente e não foi posto de lado? Através da doença em sua alma, Nietzsche olhou para o ocidente e viu por toda parte, ou ao menos pensou ter visto, futilidade, falta de propósito, incerteza e pessimismo acerca dos valores e da vida[1]. Um ideal, a seu ver, é abraçado apenas quando o domínio do homem sobre o mundo real e seu bem já foi enfraquecido[2]; no fim, tais ideais sobrenaturais, por não terem fundamento algum no fático, perdem seu domínio sobre a mente humana e então a humanidade, tendo sacrificado seu senso dos reais valores e afagado a causa da decadência[3], é desamparada e entristecida. A essa condição, ele chamou Niilismo. “Não se compreendeu o que, todavia, se pode agarrar com as mãos”, diz ele, – “que o pessimismo não é um problema, mas um sintoma, – que o nome [tem] de ser substituído por ‘niilismo’, – que a questão de se o não-ser é melhor do que o ser é, ela mesma, uma doença, uma derrocada, uma idiossincrasia…”[4]. E na primeira parte de Vontade de Poder, ele desdobra tal doença moderna em toda a sua hediondez. A ansiedade de nossas vidas é interpretada como uma entre tantas tentativas de escapar do abismo da falta de sentido, junto à miríade de variedades de auto estupefação[5]. Ninguém pode ler sua lista de esforços sem tremer diante dia lembrança do que a música, a literatura e pintura, já decadentes, produziram:
[As espécies de autoentorpecimento. –] No mais íntimo: não saber, para onde sair? Vazio. – Tentativa de escapar com a embriaguez. – Embriaguez como música. – Embriaguez como crueza no gozo trágico da derrocada.
– Embriaguez como entusiasmo cego por homens singulares (ou tempos) (como ódio etc.). Tentativa de trabalhar inconscientemente, como instrumento da ciência. – Abrir os olhos para os muitos pequenos gozos, por exemplo, também como conhecedor. Modéstia quanto a si mesmo. Generalizar o contentar-se consigo, torná-lo um páthos; a mística, o gozo voluptuoso do vazio eterno; a arte “por ela mesma” (“le fait”), o “puro conhecer” como narcose do nojo de si mesmo; qualquer trabalho constante, um pequeno e tolo fanatismo qualquer; a confusão de todos os meios, doença por desmedida geral (o desregramento [Ausschweifung] mata a diversão).[6]
A tentativa de manter o cristianismo em meio a uma sociedade niilista que perdeu até mesmo seus falsos ideais pode ter apenas um resultado[7]. Dado que tais ideais sobrenaturais foram erigidos pela parte mais fraca da raça humana para encobrir sua sujeição a uma minoria mais forte[8], então, quando a crença no outro mundo perecer, a única defesa que restará será a exaltação humanitária dos humildes e comuns indistintos em si mesmos como uma espécie de simulacro do cristianismo, a simpatia secular do homem pelo homem como lei política, toda a turba de esquemas socialistas que se baseiam em certa noção de fraternidade universal[9]. Tais, as proles imediatas do rousseanismo e do romantismo alemão são, como Nietzsche apontou, a verdadeira religião do mundo moderno; é contra elas e contra o passado como fonte delas que seus ditirambos são realmente direcionados. Seu protesto é contra a “compaixão com os mais baixos e sofredores como critério para a elevação da alma”[10].
O Cristianismo[11] [exclama ele] é um movimento degenerativo, consistindo em todos os tipos de elementos decadentes e excrementais… Em todos os lugares ele apela aos deserdados; consiste e funda-se em um ressentimento[12] contra tudo o que é dominante e bem-sucedido: precisa de um símbolo que represente a danação de tudo o que é dominante e bem-sucedido. Opõe-se a toda forma de movimento intelectual, a toda filosofia; assume o comando dos idiotas e amaldiçoa o intelecto. Ressentimento contra aqueles que são abençoados, eruditos, intelectualmente independentes: de todos estes suspeita-se dos elementos de sucesso e poderio[13].
Tudo isso é meramente a maneira espasmódica de Nietzsche descrever o mal-estar da época, que tem sido o tema de inumeráveis poetas do século XIX – como Matthew Arnold, para citar um exemplo, em seu sombrio diagnóstico da alma moderna.
E, até certo ponto, a causa desse niilismo, para usar o mesmo termo que Nietzsche, é a mesma para ele e para Arnold. Ambos atribuem isso à destruição de ideais definidos que governaram o mundo por tanto tempo e, em especial, ao declínio da fé religiosa. Mas aqui os dois diagnósticos diferem. Arnold buscou saúde para o estabelecimento de novos ideais e para o crescimento de uma nova fé, uma solidamente calcada no eterno, ainda que tenha falhado em sua tentativa de definir tal fé. Nietzsche, inversamente, considerava todos os ideais e fés como produtos da decadência e também como causas de uma decadência mais profunda[14]. “A objeção, a oposição caprichosa, a desconfiança jucunda, a ironia,” diz ele, “são símbolos de saúde; tudo aquilo que é incondicionado pertence aos domínios da patologia”[15]. O niilismo, como primeira consequência da perda dos ideais, pode ser um estado de hedionda anarquia, mas é também a transição necessária para a saúde. Se, em vez de relapsar na fonte idealista do mal, os olhos da humanidade forem fortalecidos para contemplar com ousadia os fatos da existência, então acontecerá o que ele chama de Transvaloração de todos os Valores, e a verdade será fundada no nu, na imperecível realidade[16]. Não existe uma calma eterna no centro deste universo em movimento; “tudo flui”; não há nada mais real que “nosso mundo de desejos e paixões”, e “não podemos alcançar ‘realidade’ mais alta ou mais profunda que a de nossos instintos — pois o pensamento não expressa mais que a relação destes instintos”[17]. Pois que seja! Quando um homem enfrenta definitivamente esta verdade com bravura e calmaria, todo sistema moral imposto à sociedade por aqueles que consideravam a vida subordinada a um ideal eterno fora do devir, contrário à corrente das paixões e desejos humanos– então, toda a lei do bem e do mal que foi desenvolvida pelos fracos para se protegerem contra aqueles que estavam preparados para viver magistralmente no devir se desintegra; aquele homem passou para Além do Bem e do Mal. A humanidade é assim libertada da lei do rebanho e os falsos valores são abolidos, mas que novos valores os substituem? A resposta a essa pergunta Nietzsche encontrou indo ao darwinismo e elevando a luta evolucionária pela existência a um novo significado; ele a chamaria, não a schopenhauriana[18] Vontade de Vida, mas a Vontade de Poder[19]. Ele expressa assim a nova teoria pela boca de Zaratustra:
Onde encontrei a vida, encontrei a vontade de potência, e até na vontade do servidor, encontrei a vontade de ser mestre.[20]
E eis o segredo que a vida me confiou: – ‘Vê – disse-me ela – eu sou aquela que deve sempre superar-se a si mesma’.
[…]
Certamente, não atingiu a verdade aquele que pôs em circulação essa fórmula: o ‘querer viver’; esse querer não existe.
Pois o que não existe não pode querer existir; e como o que existe poderia ainda querer existir?
Não há vontade senão na vida; mas essa vontade não é querer viver; na verdade ela é vontade de potência[21].
Esta é a transvaloração de todos os valores de Nietzsche, a mudança da moralidade do bem e do mal dependente das recompensas sobrenaturais para a não-moralidade puramente natural da Vontade de Poder. E como o idealismo anterior resultou na supressão da distinção entre os fracos e os fortes e, por conseguinte, na supremacia dos primeiros, o regime da Vontade de Poder deve trazer de volta à sociedade a divisão nítida entre aqueles que têm poder e aqueles que não o têm, dos verdadeiros filósofos que têm o instinto de superação e dos escravos cuja função é servir e obedecer. O filósofo, segundo a terminologia de Nietzsche, é o Super-homem, o Übermensch. Ele ultrapassou o bem e o mal, e Nietzsche frequentemente o descreve em uma linguagem que implica a mais grosseira imoralidade; mas esta é apenas uma das maneiras de um iconoclasta enfatizar o contraste entre seu homem perfeito e o antigo ideal do santo, e seria injusto interpretar essas ebulições de temperamento de forma literal. A imagem do Übermensch é, de fato, deixada na nebulosa incerteza do futuro; a única coisa certa sobre ele é sua completa imersão na natureza, e seu ofício de elevar o nível da sociedade subindo sobre os ombros daqueles que fazem o trabalho braçal do mundo[22]. Em última análise, o Übermensch é apenas uma negação da simpatia humanitária e do estado socialista de igualdade indistinta.
Capítulo VI
A concepção de Nietzsche da Vontade de Poder pode parecer ter nos trazido de volta por um longo circuito à definição de Hobbes da natureza humana como “um desejo perpétuo e inquieto de poder após poder que cessa apenas na morte”[23]; mas, na realidade, existe todo um mundo de diferença entre os dois. Nos princípios niveladores contra os quais Hobbes dirigiu sua teoria do governo, havia pouco ou nada daquela noção de simpatia que está enraizada no naturalismo de Locke e tem seu botão no romantismo alemão; tampouco existe na imagem hobbesiana do estado natural da humanidade como uma guerra de interesses próprios qualquer toque daquela exaltação mórbida do ego que se desenvolveu como um concomitante inevitável da simpatia romântica.
No coração da filosofia de Nietzsche há, de fato, um colossal autoengano[24] que não tem contraparte no hobbesianismo, e para o qual não encontraremos nenhuma chave a menos que tenhamos em mente o longo e regular crescimento das idéias de Locke até os dias atuais. Nietzsche não se via como o Übermensch realizado, mas como uma forma imperfeita do que o Übermensch deveria ser; ele pensava em sua rebelião como um exemplo da Vontade de Poder; enquanto a odiada mancha da decadência penetrava profundamente seu corpo e mente, seus anos de filosofia foram uma longa e irritante doença. Ele mesmo, com a clarividência intermitente dum cérebro mórbido, apontou para a confusão de fenômenos que levou seus seguidores a admirarem sua produtividade intelectual como prova de saúde fundamental. “A história”, diz ele, “contém o fato terrível de que os esgotados sempre foram confundidos com os mais plenos – e os mais plenos com os mais nocivos. O pobre em vida, o fraco, ainda empobrece a vida: o rico em vida, o forte, a enriquece… O primeiro é seu parasita; o segundo, seu doador de excesso… Como é possível uma confusão? … Quando o esgotado apresenta-se com os gestos da suprema atividade e energia, quando a degeneração reclama como condição um excesso da descarga espiritual ou nervosa, então ele se confunde com o afortunado… Suscita medo…”[25].
Foi por uma ilusão similar que Nietzsche considerou o autoafirmativo Übermensch como uma verdadeira reação contra o homem prevalecente e como uma cura para a doença de sua época. Que muito do protesto de Nietzsche contra os excessos do humanitarismo foi sólido e bem dirigido, estou disposto a admitir. Ele viu, como poucos outros homens de nossos dias viram, o perigo que ameaça o verdadeiro progresso em qualquer sistema de educação ou governo que faça de seu principal objetivo não o homem distinto, mas o homem medíocre. Ele viu com terrível clareza que muito de nossa mais admirada arte não é arte no sentido mais elevado da palavra, mas um apelo ao sentimentalismo mórbido. Há um aspecto humorístico em sua briga com Wagner, que no fundo foi causada pelo choque de dois egoísmos insanamente ciumentos. Não obstante, há um elemento de verdade em sua condenação da ópera de Wagner como típica de certas tendências degenerativas na sociedade moderna; e muitos devem concordar com ele em sua declaração de que Wagner “Percebeu nela um meio para excitar nervos cansados – com isso tornou a música doente”[26]. Não sem motivo, Nietzsche se declarou “a mais alta autoridade do mundo na questão da decadência”. Mas a cura que Nietzsche propôs para esses males fazia parte da doença. O Übermensch, em outras palavras, é um produto do mesmo naturalismo[27] que produziu a doença que queria neutralizar; é a última e mais violenta expressão do egoísmo, ou amor-próprio, que Hume e todos os seus seguidores equipararam à simpatia como as duas fontes da ação humana. A simpatia, como vimos, gradualmente usurpou o lugar do amor-próprio como o motivo reconhecido da virtude e a fonte da felicidade, mas aqui algo estranho é observado: onde a simpatia foi proclamada mais ruidosamente em teoria, o amor-próprio, muitas vezes, foi o mais dominante na prática. A simpatia primeiro cresceu em excesso na escola sentimentalista, e os sentimentalistas eram famosos por seu egoísmo mórbido. Pode haver alguma injustiça com Sterne na observação sarcástica de Byron de que ele preferia chorar por um burro morto a aliviar a falta de uma mãe viva, mas, de uma maneira geral, atinge exatamente o personagem do qual o autor de Sentimental Journey era um tipo. Eu encontrei outro dia por acaso uma passagem em um livro anônimo daquela época, que expressa esse contraste de teoria e prática nos termos mais claros:
Por este sistema de coisas [isto é, o sistema sentimental] é que a justiça estrita é feita para dar lugar a acessos transitórios de generosidade; e uma atitude benevolente substitui a integridade rígida. Ao coração simpático, não sendo capaz de ver miséria alguma sem uma lágrima inicial de compaixão, é permitido, pelo sufrágio geral, expiar mil ações despreocupadas, que infalivelmente trazem miséria com elas. Na vida comercial, os ricos oprimem os pobres e contribuem para hospitais; um monopolizador torna milhares e dezenas de milhares destituídos no curso do tráfego; mas alegremente solicita ou encoraja assinaturas para aliviar sua angústia.[28]
Quanto a Rousseau, o grande apóstolo da humanidade, é notório que o traço principal de sua disposição era um egoísmo que o impossibilitava de viver em paz com seus semelhantes. “Benevolência para toda a espécie”, disse Burke, tendo em mente Rousseau, “e a falta de sentimento por cada indivíduo com quem os professores entram em contato formam o caráter da nova filosofia”. Ninguém que tenha lido os anais do grupo romântico da Alemanha precisa saber como sua filosofia panteísta foi contradita pelo individualismo totalmente impraticável de suas vidas. Nem está o mesmo paradoxo ausente das teorias socialistas modernas que surgiram do romantismo; seria possível, creio eu, em muitos casos estabelecer a partir de estatísticas uma proporção direta entre a disseminação de esquemas humanitários de reforma e o aumento do crime e dos índices de suicídio.
A verdade é que essa inconsistência é inerente aos princípios mesmos do naturalismo romântico. Em um mundo feito apenas de paixões e desejos, a tentativa de entrar nas emoções pessoais dos outros causará uma intensificação de nossas próprias emoções, e o esforço para sublimar-se na humanidade será equilibrado por um desejo mórbido de absorção da humanidade em si mesmo. O severo contraste entre simpatia e egoísmo é, portanto, consequência necessária do romantismo; não é por acaso que Tolstói, com sua exaltação do rousseanismo e do pacifismo e de uma fraternidade universal, foi contemporâneo de um filósofo que fez de Napoleão seu ideal[29] e que pregou a guerra e o Além-Homem como condição de uma sociedade saudável. O próprio Nietzsche, em um de seus momentos de clareza, reconhece essa coexistência dos extremos como um sinal de decadência. O fato deles brotarem da mesma fonte é mostrado pela semelhança inesperada que frequentemente exibem sob sua oposição superficial. Talvez o livro que mais se aproxime, em seu cerne, do Zaratustra, seja o Leaves of Grass, que em sua declarada filosofia de vida pareceria estar na mais remota distância. Nietzsche denuncia todos os processos de nivelamento e proclama uma sociedade francamente baseada nas diferenças de poder; Walt Whitman, pelo contrário, nega todas as diferenças e glorifica uma igualdade absoluta: contudo, como ambos partem do puro devir do naturalismo, ambos passam por uma negação da distinção entre o bem e o mal com base nos velhos ideais, e terminam em um egoísmo que reúne aristocrata e democrata em uma estranha e relutante irmandade.
Capítulo VII
Para qualquer um que esteja preso nesta rede, a vida deve ser um fanatismo unilateral ou uma condição de vacilante inquietação. A grande tragédia da existência de Nietzsche deveu-se ao fato de que, embora percebesse o perigo em que havia caído, sua luta para escapar apenas o enredou com mais força em sua própria malha. Sua ostensiva transvaloração de todos os valores foi, na realidade, uma completa desvalorização, se é que posso cunhar a palavra, deixando-o mais profundamente imerso no niilismo que expôs como o principal mal da civilização moderna. Como Hume e os naturalistas românticos, ele se desfez da razão e da intuição como qualquer lei suprarracional além do fluxo dos desejos, paixões e impulsos. Ele olhou em seu próprio coração e, no mundo dos fenômenos, viu ali um devir incessante, sem começo, sem fim e sem significado. A única lei que ele poderia descobrir, o único descanso para sua alma, era algum retorno vagamente previsto de todas as coisas de volta ao seu estado primordial[30], para recomeçar no mesmo curso sombrio do acaso – o Eterno Retorno[31]. “Sem Dúvida”, certa vez escreveu, “existe provavelmente uma enorme curva invisível, uma órbita estelar em que nossas tão diversas trilhas e metas estejam incluídas como pequenos trajetos – elevemo-nos a esse pensamento! Mas nossa vida é muito breve e nossa vista muito fraca…”[32]. Por vezes ele descreve essa capacidade de não se desanimar em tal eterna roda do devir como o teste que distingue o Übermensch do rebanho[33]. E isso é tudo o que Nietzsche pode fornecer à humanidade com sua Vontade de Poder e Transvaloração de todos os Valores: uma vontade de superar a visão do devir sem finalidade ou propósito; a coragem de permanecer firme em um mundo decadente; a força para realizar – o absoluto nada[34]. Por vezes ele proclama seu credo com a afronta e alegria daqueles que se afundam pelo caminho e clamam desesperadamente por ajuda. Outras vezes certa pena de uma humanidade infeliz brota de seu coração, apesar de si mesmo; e mais uma vez ele admite que a última tentação do Übermensch é a simpatia por uma raça que orbita cegamente neste eterno devir – “Onde estão seus maiores perigos? – Na compaixão”[35]. Quanto a si mesmo, o que ele encontrou em sua filosofia, o que o seguiu ao final da sombria derrocada à loucura, é contado na assombrosa visão de A Sombra na última seção de Zaratustra:
Acaso tenho … um fim? Um porto para onde encaminhe a minha vela?
Um bom vento? Só o que sabe para aonde vai, sabe também qual é o seu bom vento, qual é o seu vento favorável.
Que me resta? Um coração fatigado e impertinente, uma vontade instável, asas trêmulas, uma espinha quebrada. Esse afã de correr em busca da minha pátria, sabes, Zaratustra, essa busca foi a minha obsessão: devora-me.
Onde está … a minha pátria? Eis o que pergunto, o que procuro, o que procurei e não encontrei.
Ó, eterno ‘em toda a parte!’, ó, eterno em ‘parte nenhuma’. Ó, eterno … ‘em vão!’
Assim falava a Sombra e o semblante de Zaratustra dilatava-se ao ouvi-la.
– Sim, és a minha sombra! –disse afinal, com tristeza.[36]
No fim das contas, o que nos sobra é o egoísmo romântico transmutado em horror à própria vaidade e a simpatia romântica transmutada em desespero. É o naturalismo que guerreia consigo mesmo para escapar de seu próprio fatalismo[37]. Ao ler Nietzsche, penso na antiga tragédia em que Hércules é representado contorcendo-se nos braços da camisa de Nessus[38] enquanto rasga a própria carne em vão esforço para escapar de sua rede venenosa.
***
Nota do Tradutor.
Tal artigo contempla parte do livro Nietzsche, de Paul Elmer More, do capítulo 5 até o final. O autor citou muitos trechos de Nietzsche, mas nenhum deles foi referenciado; sendo assim, procurei e referenciei os que pude encontrar em versões acessíveis para que o leitor possa conferi-los se assim desejar. Listo abaixo as edições utilizadas para referenciação atualizada e anotações.
Livros de Friedrich Nietzsche
- A Vontade de Poder. Tradução de Marcos Sinésio Pereira Fernandes e Francisco José Dias de Moraes. Rio de Janeiro. Contraponto, 2008
- Além do Bem e do Mal ou Prelúdio de uma Filosofia do Futuro. Tradução de Márcio Pugliesi. Curitiba. Hemus S.A, 2001
- Assim Falava Zaratustra: Um livro para todos e para ninguém. Tradução e notas explicativas da simbólica nietzschiana de Mário Ferreira dos Santos. Rio de Janeiro. Vozes, 2008
- A Gaia Ciência. Tradução e notas de Paulo César de Souza. São Paulo. Companhia das letras, 2001.
- Crepúsculo dos Ídolos. Tradução e notas de Paulo César de Souza. São Paulo. Companhia das letras, 2006.
- O Caso Wagner e Nietzsche Contra Wagner. Tradução e notas de Paulo César de Souza. São Paulo. Companhia das Letras, 2009.
Material Auxiliar
- Franco Volpi – O Niilismo. Tradução de Aldo Vanucci. São Paulo. Edições Loyola, 1999.
- Régis Jolivet – As Doutrinas Existencialistas: De Kierkegaard a Sartre. Tradução de António de Queirós Vasconcelos e Lencastre. Porto. Livraria Tavares Martins, 1953
- Scarlett Marton – O Eterno Retorno do mesmo, “a concepção básica de Zaratustra” in Cad. Nietzsche, Guarulhos/Porto Seguro, v.37, n.2, p. 11-46, julho/setembro, 2016
- Thomas Hobbes – Coleção Os pensadores: Leviatã. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo. Editora Nova Cultural Ltda., 1999
Acerca dos problemas interpretativos de Nietzsche em relação a Platão, recomendo ainda mais alguns livros que podem auxiliar na compreensão do tema das ideias e sua transcendência.
- Giovanni Reale – História da Filosofia Grega e Romana Vol.III: Platão. Tradução de Henrique Cláudio de Lima Vaz e Marcelo Perine. São Paulo, Edições Loyola, 1994
- Mário Ferreira dos Santos – Platão – O Um e o Múltiplo: comentário sobre o Parmênides. São Paulo. IBRASA, 2001
- Michael Erler – Platão. Tradução de Enio Paulo Giachini. São Paulo. Annablume Editora, 2013.
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Notas:
[1] “Vida” tem um sentido todo especial em Nietzsche; pode-se dizer que ela é uma manifestação específica da Vontade de Potência que se manifesta no universo inteiro – algo parecido com a Vontade de Vida de Schopenhauer. Liga-se aos valores na medida em que, para Nietzsche, a vida – e por conseguinte a vontade de potência – é critério e criadora de valores; vida é imposição, domínio, pulsão para o além, superação de si mesmo. Avaliando com algum cuidado o princípio motor a que Nietsche chama de vida, podem-se compreender os motivos que levaram tantos a avaliá-lo, com razão, como uma espécie de naturalista, pois de certa forma ele tentará arrancar esses valores da natureza humana. Para algo sobre o assunto, ver Scartlet Marton – Nietzsche, a Transvaloração dos Valores p.54. [N.T.]
[2] O ideal, no sentido do texto, se trata de arquétipos imateriais; Nietzsche, ao tratar de ideais, sempre tem em vista o valor ideal como idéia platônica – como a idéia de Justiça em si mesma. Para ele, tais idéias só se tornam palpáveis quando perderam-se de vista os valores terrenos derivados da vontade de potência. Para Nietzsche a universalidade dos valores é intrinsecamente perspectivista e, se o leitor estiver familiarizado com história antiga, luta para remontar a moralidade antiga dos heróis que podemos encontrar retratada em Homero, embora, como Maclntyre [Depois da Virtude p. 198] bem aponta, ele tenha, na verdade, apenas projetado um preconceito individualista nos antigos que tanto admirou. A mesma crítica é feita por Giovanni Reale: “Nietzsche conhecia muito bem os gregos, mas ele não pôde desfrutar de toda a sabedoria deles, porque os interpretou em função da própria teorese, invertendo, por conseguinte, a mensagem deles, que só considera válida em suas origens, mas logo comprometida, justamente a partir de Sócrates.” O Saber dos Antigos p.35-36 [N.T.]
[3]A decadência, para Nietzsche, manifesta-se como forma de desagregação. No caso, a decadência valorativa ocorre da desagregação do homem de seus valores reais para perseguir valores ideais. A decadência não gera novos valores, mas provoca a descrença nos valores ideais e planta a falsa ideia de que não há valor nenhum; essa ideia de valor algum é o niilismo. É o vácuo de sentido. [N.T.]
[4] A Vontade de Poder 38 p.43
[5] Dada a queda de todos os valores ideais como falsos, instaura-se o niilismo. Como antedito em nota, os valores ideais tomam a ideia platônica como exemplo. A queda dos valores ideais é a queda de sua origem, que Nietzsche identifica como o platonismo e suas outras formas – ele diz que o cristianismo é uma delas. A queda dos valores eternos é ilustrada pelo diagnóstico da morte de Deus; como lemos em O Niilismo, de Franco Volpi p.55: “A morte de Deus, ou seja, o fim dos valores tradicionais, torna-se o fio condutor para interpretar a história ocidental como decadência e analisar criticamente o presente.” Essa é a face antimetafísica de Nietzsche. Em verdade, a analítica do niilismo identifica sua gênese na separação entre um mundo real e um mundo ideal, e atribui-a a Platão. Mas é um erro capital, dado que Platão mesmo não finca um abismo entre “o real e o ideal” – dado que são apenas ângulos de análise de um mesmo ser [História da Filosofia Vol.1 p.131] – e expressa tal ligação através do conceito de methexys [História da Filosofia Vol.1 p.135]. No caso da ideia, ela concretiza-se no real através de sua expressão imperfeita na coisa – daí as coisas serem manifestações imperfeitas da ideia perfeita, ou até mesmo cópias. O caminho para a contemplação da ideia, em verdade, usa a imagem concretizada na coisa como “trampolim” para o que está para além dela, o que é expresso na metáfora da segunda navegação [História da Filosofia Vol.1 p.130]; feito isso, pode-se entender o mundo através da visão de “suas engrenagens”. O abismo apontado por Nietzsche não existe em Platão, mas poder ser facilmente apontado em “platônicos modernos”, que dividiram o mundo entre res cogitans e res extensa (ainda que os nomes mudem, o espírito permanece). No limite, parece que o Platão de Nietzsche, do mesmo modo que outros antigos, foram vítimas de projeção. [N.T.]
[6] A Vontade de Poder 29. P.38 [N.T.]
[7] Pode-se, então, resumir o empreendimento na seguinte nota: “Traço essencial de nossa cultura, o dualismo de mundos foi invenção do pensar metafísico e fabulação da religião cristã. Desvalorizando este mundo em nome de outro, que seria essencial, imutável e eterno, a cultura socrático-judaico-cristã é niilista desde a base. É a morte de Deus, pois, que tornará possível a Zaratustra fazer a travessia do niilismo. Se foi no mundo suprassensível que até então os valores encontraram legitimidade, trata-se agora de suprimir o solo mesmo a partir do qual eles foram colocados, para então engendrar novos valores.” Scarlett Marton – O Eterno Retorno do mesmo, “a concepção básica de Zaratustra” in Cad. Nietzsche, Guarulhos/Porto Seguro, v. 37, n. 2, p. 11-46, julho/setembro, 2016 [N.T.]
[8] Nietzsche acredita que os sistemas de valores que condenem o que ele chama de valores reais na verdade são morais do ressentimento, moral dos escravos, moral dos cordeiros, na medida em que querem suprimir a força dos fortes e submetê-los através da culpa. Por exemplo, no cap. A Moral como Antinatureza no livro Crepúsculo dos ídolos, [p.27] Nietzsche acusa o a Igreja de ser hostil à vida na medida em que procura “aniquilar as paixões e os desejos”, “combate a paixão com a extirpação em todo sentido: sua prática, sua “cura” é um castracionismo. Ela jamais pergunta: “Como espiritualizar, embelezar, divinizar um desejo?” – em todas as épocas, ao disciplinar, ela pôs a ênfase na erradicação (da sensualidade, do orgulho, da avidez de domínio, da cupidez, da ânsia de vingança). – Mas atacar as paixões pela raiz significa atacar a vida pela raiz”. Como antedito, a vida é identificada com pulsões de cunho primitivo em adição a uma boa lista de vícios e um bocado de retórica. Assim o dizemos pois há um bocado de confusões. Em primeiro lugar, a aniquilação das paixões não é uma nota cristã, mas uma nota estóica [História da Filosofia Vol.1 p.290–291]; em segundo lugar, pela “divinização do desejo” ter sido feita pela igreja pela elevação da conjunção carnal a nível de sacramento na instituição do casamento. Mas a divinização que Nietzsche tinha em mente era a divinização no sentido pagão antigo, que personificava, por exemplo, notas do amor em deuses como Eros ou Afrodite. Mas talvez a nota mais curiosa seja que ele cite o orgulho, que, se entendermos como Hybris, é um vício criticado desde a antiguidade, como podemos ver, por exemplo, no mito do Prometeu Acorrentado. Leiamos o que há em Paul Diel – O Simbolismo da Mitologia Grega p.225: “Na chama purificadora, o homem oferecerá à divindade o sacrifício das premissas dos bens materiais, expressando assim, simbolicamente, o abandono de toda exaltação em relação aos desejos ligados à terra. Mas esta promessa simbólica está longe de se realizar, e o fogo roubado, o fogo destrutivo (as paixões), prevalecerá sobre o impulso da chama purificadora. Guiados pela vaidade do intelecto revoltado, orgulhosos de sua capacidade inventiva e de suas criações engenhosas, os homens se imaginarão semelhantes aos deuses e, esquecidos do espírito, se banalizarão. Na medida em que a luz do espírito e o calor da alma se enfraquecem, nada mais subsistirá senão o impulso banal de beneficiar-se dos bens materiais. Entretanto, a atividade engenhosa do intelecto não se mostra suficientemente previdente, uma vez que não é mais guiada pelo espírito. O intelecto retrocede ante a multiplicação insensata dos desejos em direção à exaltação imaginativa e seu consequente ofuscamento afetivo.” [N.T.]
[9] Nietzsche o diz corretamente, pois as ideologias de fato operam como simulacros de religião, daí chamadas também de religiões políticas, como Eric Voegelin chega a fazer em seu livro As Religiões Políticas. A Vontade de Poder é um livro em que Nietzsche bem comenta o assunto, como lemos na p.39: “tenta-se uma espécie de libertação terrena, mas no mesmo sentido: no triunfo conclusivo de verdade, amor, justiça: o socialismo: “igualdade da pessoa”.” [N.T.]
[10] A Vontade de Poder 27. p.38 [N.T.]
[11] Eric Voegelin comenta em seu História das Idéias Políticas VII [p.327] que o “cristianismo” que Nietzsche sempre tem em mente é, em específico, o jansenismo encarnado na pessoa de Pascal. [N.T.]
[12] Podemos encontrar boas informações sobre o tema no artigo O Argumento ad hominem de Nietzsche: perspectivismo, personalidade e ressentimento revisitados de Robert C. Solomon in Bernd Magnus & Kethleen M. Higgins (Org) – Nietzsche, sobretudo a partir da p.249 [N.T.]
[13] Mais um exemplo do mecanismo anteriormente exposto: se é contra o que Nietzsche chama de valores reais advindos da vontade de poder – que se compreendida como libido dominandi é ela mesma um vício –, logo advém de uma moral de ressentimento. Tal acusação de Nietzsche é desfeita por Max Scheler em seu A Reviravolta dos Valores, onde demonstra através de vários exemplos como o cristianismo não é apenas fonte de valores positivos, mas que, além de não ter sido fundado e nem poder fundar-se sobre o ressentimento, a “vida” que Nietzsche tanto advoga revela-se de forma extrema no autossacrifício cristão: “Se são Francisco de Assis beija chagas abertas e não matava nem mesmo os percevejos que o mordiam, entregando a estes o seu corpo como uma casa hospitaleira, estas ações, vistas de fora, poderiam parecer consequências de uma perversão dos instintos, bem como do sentimento valorativo. Contudo, estas ações não o são verdadeiramente. Não é falta de nojo, ou prazer no pus, mas a superação do nojo por meio de um sentimento profundo de força e vida, que se exterioriza deste modo! Esta é uma disposição interna completamente diversa por exemplo da atitude do realismo moderno que, inspirado na arte e poesia, descobre a miséria social, a pintura das pessoas pequenas, o revolver do doente: uma manifestação nascida de ponta a ponta a partir do ressentimento. Estas pessoas viam em todo vivente um percevejo, enquanto Francisco vê mesmo no percevejo o sagrado, a “vida” [p.97-98] e ainda mostra que o procedimento nietzschiano é, em verdade, arbitrário: “No que Nietzsche enxerga de início no cristianismo apenas uma moral com ‘justificação’ religiosa, e não uma ‘religião’ em primeiro lugar, ele mede concomitantemente os valores cristãos desde o critério do máximo propiciamento da vida; sendo que este critério ele nega aos mesmos conscientemente. Assim, ele toma necessariamente a aceitação de uma camada ontológica e valorativa, que se estende para além da vida, e não é mais relativa a esta, como uma clara indicação de uma moral decadente. Este procedimento, porém, é arbitrário, bem como falso em sua fundamentação, além de ser digno de uma refutação severa. Esta refutação não pode ser aqui desenvolvida, mas é pressuposta.
O erro, a confusão de Nietzsche se manifesta ainda de outras formas. Se os conselhos e imperativos cristãos pudessem ser separados (especialmente aqueles que dizem respeito ao amor) de sua ligação para com o Reino de Deus, ou mesmo para com a esfera espiritual do ser pessoal, que no homem se entrega à manifestação (o que é diverso da ‘alma’ e da ‘natureza’) e por meio da qual ele participa primevamente deste reino, assim se alcançaria não apenas a criação de uma oposição acidental, mas também de uma oposição constitutiva em todas aquelas leis segundo as quais a vida se desenvolve e se plenifica, podendo sozinha desdobrar-se”. [p.113-114] [N.T.]
[14] Como Eric Voegelin comenta em seu História das Idéias Políticas Vol. VII, Nietzsche era profundamente imanentista [p.312 e 321] e incapaz de qualquer experiência do transcendente [p.310 e 324]. Logo, não poderia sustentar fé alguma senão em algo à mão, e foi precisamente isso o que fez com a doutrina da Vontade de Potência e sua expressão, nos aforismos, através de um simbolismo místico intramundano [p.319]. Por outro lado, como Jolivet aponta, Nietzsche não era contra a religião em si mesma, mas esperava por uma nova: “Não deveremos supor, entretanto, que a atitude de Nietzsche para com a religião é puramente negativa. Pelo contrário, Nietzsche antevê o aparecimento de uma nova religião, isto é, de uma concepção de salvação, sobre as ruínas das religiões dogmáticas, especialmente do cristianismo, relacionando-a com o tema do eterno retorno que, como se viu, é para o indivíduo, que se reconhece finito e transiente, fonte de angústia e de terror, mas também princípio de imensa exaltação, desde que sabemos, pela nossa existência presente que estamos já na eternidade. A angústia e a aflição, provocadas pela visão implacável de um destino trágico indefinidamente repetido, dão à nossa presente existência individual valor metafísico e religioso, porque nos revelam a nossa eternidade. Dionísio, do qual somos membros parcelares, cumpre por nós o seu destino eterno.” Régis Jolivet – As Doutrinas Existencialistas p.72 [N.T.]
[15] Além do Bem e do Mal 154 p.91 [N.T.]
[16] “[…] o real é constituído, antes de tudo, pelos poderes tenebrosos que se manifestam na vida biológica e nos instintos. Nisto está o fundamento (o Grund) sobre que se assenta impessoalmente a individualidade, mas que em si não é individual. O indivíduo afirma a sua individualidade, mas esta só poderá ter realidade e potência quando se encontrar mergulhada no oceano da vida orgânica e for completamente reabsorvida por ele.” Régis Jolivet – As Doutrinas Existencialistas p.69 [N.T.]
[17] Além do Bem e do Mal 36 p.52 [N.T.]
[18] Para melhor elucidação: “Por um lado, Nietzsche identifica a vida à vontade de potência. Distanciando-se do seu antigo mestre, ele recusa o “querer viver” schopenhaueriano. Ao contrário dessa ideia, a noção de vida e o conceito de vontade de potência não são princípios transcendentes; a vida não se acha fora dos fenômenos e a vontade de potência não existe para além do ser vivo. Por outro lado, Nietzsche estabelece uma estreita relação entre as noções de vida e valor e, também, entre essas noções e o conceito de vontade de potência. Ele bem mostra que é a própria vida que estabelece valores; é a vontade de potência que avalia. Mais ainda, dá a entender que já entrevê um único e mesmo procedimento no domínio sociopsicológico e no domínio biológico”. Scarlett Marton – O Eterno Retorno do mesmo, “a concepção básica de Zaratustra” in Cad. Nietzsche, Guarulhos/Porto Seguro, v.37, n.2, p. 11-46, julho/setembro, 2016 [N.T.]
[19] Como bem explica Voegelin [História das Idéias Políticas VII p.335], a Vontade de Poder, que expressa-se como refinamento da Libido Dominandi, é uma força que permeia todas as manifestações da vida humana, mas não apenas ela. Lembra a Vontade de Vida de Schopenhauer na medida em que atua como força cega de autopreservação. Aqui vemos que, embora seja caso controverso, de fato Nietzsche faz de um vício o centro da sua transvaloração dos valores, na medida em que de fato faz a inversão da tríade das libidos e as torna características positivas da natureza humana mesma. Como aponta Voegelin, [op. cit. p.337]: “Na concepção de Nietzsche, a luxúria e a crueldade dele não são a negação de uma perfeição original, mas a substância positiva que o permeia até os mais altos picos da “vontade de poder mais sutil, mais disfarçada e mais espiritualizada”. O homo natura é, no misticismo imanente de Nietzsche, o contrassímbolo do homem caído.” [N.T.]
[20] Assim Falava Zaratustra p.157 [N.T.]
[21] Assim Falava Zaratustra p.158 [N.T.]
[22] Nietzsche brinca com simbolismos para expressar seu pensamento. Ao que More chamou, para fins explicativos, de Natureza, Nietzsche chama de Terra; ela é o terreno, o concreto, o posto, o palpável, o real, em oposição ao ideal. Os valores do Übermensch, também chamado de Além-Homem, devem vir antes da Terra do que “do céu”, do “ideal”, que, simbolizando o transcendente “platônico-cristão”, em última análise refere-se também a Deus. Tais ideias podem ser bem vistas no artigo O Eterno Retorno do mesmo, “a concepção básica de Zaratustra”, onde lemos: “Se a morte de Deus torna possível a Zaratustra fazer a travessia do niilismo, ela também lhe permite encarar o projeto de transvaloração de todos os valores. Exortando seus discípulos a permanecerem fiéis à Terra, ele os incita a contribuir para tornar possível o além-do-homem: “Mortos estão todos os deuses; agora queremos que o além-do-homem viva!” – que seja esta, uma vez, no grande meio-dia, nossa última vontade” (Za/ ZA I, Da virtude que dá 3, KSA 4.102).” [N.T.]
[23] More refere-se a Leviatã I, XI, onde lemos: “Assinalo assim, em primeiro lugar, como tendência geral de todos os homens, um perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder, que cessa apenas com a morte. E a causa disto nem sempre é que se espere um prazer mais intenso do que aquele que já se alcançou, ou que cada um não possa contentar-se com um poder moderado, mas o fato de não se poder garantir o poder e os meios para viver bem que atualmente se possuem sem adquirir mais ainda. E daqui se segue que os reis, cujo poder é maior, se esforçam por garanti-lo no interior através de leis, e no exterior através de guerras.” [N.T.]
[24] Para Eric Voegelin, Nietzsche esconde o sofrimento de sua alma “por trás da máscara de Dionísio”, em uma tentativa de transformar seu sofrimento em força na medida em que afunda em imanentismo. Neste sentido, o movimento da filosofia de Nietzsche, na medida em que simula uma “periagogé reversa” [Nietzsche´s gnosis corresponds functionally to the Platonic periagoge] que vira a alma do homem do ideal para o terreno, é funcionalmente uma forma de gnosticismo. Para mais, ver Eric Voegelin – Modernity Without Restraint p.265 ss. [N.T.]
[25] A Vontade de Poder 48. p.48 [N.T.]
[26] O Caso Wagner e Nietzsche Contra Wagner p.19 [N.T.]
[27] Caso haja dúvidas acerca do naturalismo de Nietzsche, recomenda-se o livro de Scarlett Marton – Nietzsche: das Forças Cósmicas aos Valores Humanos, em especial a p.192, onde lemos: “A maneira pela qual ele aborda a questão inscreve-se numa perspectiva naturalista; considera o ato de conhecer resultante de interações de indivíduos, pertencentes a determinada espécie animal, entre si e com o meio que os cerca. Essa abordagem talvez decorra diretamente do fato de recusar toda divindade, todo poder transcendente. Ele rejeita qualquer explicação da origem e funções das aptidões humanas que não as tome, antes de mais nada, como fruto do desenvolvimento orgânico. No entanto, a posição que advoga extrapola os parâmetros do naturalismo. Se é no contexto fisiológico que reintroduz a questão do conhecimento, é também num quadro histórico que procura reinscrevê-la. “Com um tipo superior de existência”, afirma, “o conhecimento terá também novas formas que hoje ainda não são necessárias” (XII, 26 (236)). É certo que se pode 1er esse texto a partir da perspectiva naturalista: foi para atender à necessidade de sobreviver que o homem desenvolveu os “órgãos do conhecimento”; será ainda pelas mesmas razões que continuará a fazê-lo. É certo que se pode entendê-lo também de outro modo: “um tipo superior de existência” surgiria, quando os valores que norteiam a conduta humana deixassem de ser os que visam unicamente a conservação. Apostando na vida e não mais na sobrevivência, o homem ampliaria suas diferenças, pensaria de forma distinta.” [N.T.]
[28] John Buncle, Junior, Gentleman. 2 volumes. London, 1776, 1778. O herói é, supostamente, o filho de Amory’s John Buncle. [N.A.]
[29] More refere-se a Nietzsche, mas tal pecha, quiçá, poderia aplicar-se a Hegel. [N.T.]
[30] “Mais tarde, Nietzsche já vê a angústia sob outra forma. Admite-a ligada ao tema do “eterno retorno”, por meio do qual o mundo da aparência (irá) até aos limites em que se cria a si próprio, procurando refugiar-se no seio da verdadeira e única realidade. O presente fará surgir necessária mente a angústia, porque, como tal, traduz em movimen.to a negação da causa e do fim; é elemento de um círculo vertiginoso dentro do qual o homem gira eternamente em redor, sem razão nem justificação, 1tornando constantemente ao mesmo ponto e estando, por isso, condenado a só poder medir-se a si mesmo. Sente-se impelido para um adiante que é um voltar atrás, para uma liberdade que é fatalidade.” Régis Jolivet – As Doutrinas Existencialistas p.70 [N.T.]
[31] O seguinte trecho do artigo O Eterno Retorno do mesmo, “a concepção básica de Zaratustra”, é muito elucidativo: “Não hesitamos, pois, em afirmar que o pensamento nietzschiano do eterno retorno do mesmo tem caráter suprahistórico. Formulando seu “pensamento abissal”, Nietzsche desautoriza as filosofias que supõem uma teleologia objetiva governando a existência, desabona as teorias científicas que presumem um estado final para o mundo, desacredita as religiões que acenam com futuras recompensas e punições. Recusa a metafísica e o mundo suprassensível, rejeita o mecanicismo e a entropia, repele o cristianismo e a vida depois da morte. Enunciando o pensamento do eterno retorno do mesmo, insiste na necessidade de suprimir os dualismos. Essência versus aparência, imutabilidade versus transformação, eternidade versus mudança, em suma, todas as velhas dicotomias da metafísica devem cair por terra. Postulando a homogeneidade de todos os acontecimentos, recusa-se a conceder ao homem um lugar privilegiado e, pelo mesmo movimento, concebe-o como parte integrante de tudo o que ocorre.” [N.T.]
[32] A Gaia Ciência 279 p. 168 [N.T.]
[33] “Quando se vê, claramente, que ‘não se pode interpretar o caráter global da existência nem com o conceito de ‘finalidade’, nem o conceito ‘unidade’, nem o conceito ‘verdade’’, acaba-se por excluir todo princípio organizador e toda transcendência, admitindo a realidade única do mundo como eterno fluir e vir a ser.” Franco Volpi – O Niilismo p.60 [N.T.]
[34] Ou, como aponta Régis Jolivet em seu As Doutrinas Existencialistas p. 68: “Por último, devemos dizer que Nietzsche não apresentou, de fato, nenhuma moral positiva, ou antes, que as suas teses neste domínio são tão diversas como contraditórias. A única asserção, que persiste em todos estes temas em conflito e que lhes dá unidade, é a de que a verdade moral consiste em ultrapassarmo-nos constantemente a nós mesmos.”
[35] A Gaia Ciência p.165
[36] Assim Falava Zaratustra p.343-344 [N.T.]
[37] “Amor fati e vontade de potência, resignação e revolta, o seu ser é rasgão e negação da lógica. Sabe que é presa de um mundo absurdo e que não poderá encontrar a salvação senão na loucura, isto é, na crença igualmente absurda de uma idade de ouro que o há de libertar da sua miséria presente. A angústia é, portanto, a forma da sua vida e o sinal permanente de que o homem se mantém ao nível do seu destino, isto é, tendendo para além de si mesmo no sentido do impossível.” Régis Jolivet – As Doutrinas Existencialistas p.70 [N.T.]
[38] Referência à morte de Hércules após vestir uma túnica envenenada. Uma das versões da história pode ser encontrada em Ovídio, Metamorfoses IX,160:
Lançava às chamas o primeiro incenso e as primeiras palavras de prece e,
da pátera, derramava o vinho nos altares de mármore.
A matéria daquele veneno incendeia-se e, liquefeita pelas chamas,
difunde-se e espalha-se pelo corpo de Hércules.
Enquanto pôde, este conteve os gemidos com a habitual coragem.
Depois de haver sido vencida pelo mal a sua capacidade de resistência,
derruba os altares e enche com seus gritos a floresta do Eta.
Logo tenta rasgar a veste fatal. Onde é arrancada, ela arranca a pele
e, coisa triste para ser contada, ao tentar, em vão, arrancá-la,
ou ela adere a seus membros, ou deixa a descoberto
os músculos dilacerados e os gigantescos ossos.
O próprio sangue rechina como quando uma lâmina incandescente
é metida em água fria e é cozido com o veneno abrasador.
E não é tudo. Devoram-lhe as entranhas chamas vorazes.
De todo o corpo lhe escorre um suor amarelo. Calcinados, os nervos ressoam.
E de fato parece fazer sentido que More pense assim; a filosofia de Nietzsche, de fato, soa como se ele estivesse preso na túnica de Nessus segundo a descrição dada por Paulo Diel em O Simbolismo na Mitologia Grega p.203: “O mito chega a seu desfecho. Hércules enamora-se de uma outra mulher, Iole, e Dejanira envia-lhe a túnica. Logo que Hércules a veste, o veneno começa a agir: penetra em seu corpo, e sua carne queima. Ele quer arrancá-la, mas a túnica está grudada à sua pele. A carne queimada pelo veneno simboliza os desejos carnais, inflamados, convertidos em paixão (exaltação imaginativa). O sangue venenoso do Centauro, caracterizado por sua tentativa de violação, é o veneno da devassidão. A paixão “ardente” de que Hércules é vítima depois de ter vestido a túnica é, portanto, a inflamação imaginativa de sua perversão sexual, a exaltação de seu ardor por Iole. Quanto mais forte a insuficiência da união (simbolizada pela túnica guardada por Dejanira) mais destrutivo o seu efeito. Dejanira, certamente, envia-lhe a túnica como lembrança, com o objetivo de reanimar a paixão desvanecente, esperando que desperte imaginações de remorso e reconciliação; mas o símbolo da insuficiência de sua esposa não pode senão agudizar as lembranças de aversão e inflamar ainda mais a imaginação viciosa do herói.”
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