Por Edward Feser
Tradução, notas e comentários de Helkein Filosofia
Continuando nossa leitura do Três Reformadores: Lutero, Descartes, Rousseau, de Jacques Maritain, vejamos algumas passagens interessantes sobre a idéia de natureza humana que o mundo moderno herdou de Descartes no capítulo “A encarnação do anjo”, que tem, como esperado, algo que ver com o dualismo cartesiano, perspectiva em que a mente é uma res cogitans (substância pensante) cuja natureza incorpórea é apenas contingentemente ligada ao corpo. Entretanto, o autor está mais interessado nas implicações da doutrina cartesiana das idéias inatas.
Para um escolástico de cepa aristotélica, feito Sto. Tomás de Aquino, o intelecto, enquanto imaterial, não opera até que a experiência sensível lhe ponha em contato com a realidade independente da mente.[1] Mesmo quando elevado aos cumes da metafísica para conhecer algo da Causa Primeira, o faz mediante inferências cuja origem é o que sabe da matéria.[2] O intelecto angélico, por outro lado, é totalmente separado da matéria e pretere órgãos sensoriais; seu conhecimento é infuso desde sua criação e, visto que foi concedido por Deus, não há hipótese de erro quando o anjo se atém ao que sabe.[3]
A concepção cartesiana do conhecimento humano assimila-o, essencialmente, ao modelo do conhecimento angélico: o conhecimento da estrutura fundamental da realidade – incluindo aquele referente à natureza das coisas imateriais – é inato e não deriva da experiência sensível. Tudo o que precisamos fazer é limitar nossos juízos e aceitar proposições e inferências que nos pareçam “clara e distintamente” verdadeiras e válidas, pois Deus não permitiria que nos enganássemos nisto. O erro ocorre apenas quando a vontade ultrapassa tal limite e aceita alguma afirmação obscura e indistinta. A concepção puramente matemática da matéria é uma consequência advinda desta perspectiva epistemológica, uma vez que apenas tal disciplina cumpre os requisitos cartesianos de clareza e distinção.
O problema é, claro, que não somos anjos e nem possuímos uma faculdade ajuizante infalível; não podemos “ler” a natureza das coisas extra mentis a partir de seu conceito. Por isto que uma epistemologia à luz do modelo cartesiano está fadada ao erro. Ela pode, por um lado, nos levar a um dogmatismo que toma tal ou qual forma bem-sucedida – mas, ainda assim, limitada – de conhecer o mundo como se fosse exaustiva; e, por outro, nos levar a um subjetivismo cético onde não podemos ir além de nossos conceitos e tocar a realidade objetiva. Ambas as tendências advém da idéia de tomarmos nossas representações como se fossem tudo o que podemos acessar “diretamente”.[4] A primeira tendência, que considera as representações feito os anjos tratam a realidade, produz um otimismo descabido; a segunda, que pretere o “angelismo das representações”, recai no pessimismo.
Kant não transcendeu tais erros; na verdade, os combinou. Por um lado, toma uma descrição moderna, pós-cartesiana, da natureza da cognição e a dogmatiza, limitando nosso conhecimento do mundo àquilo que a ciência pós-newtoniana pode nos fornecer, excluindo, completamente, qualquer informação que transcenda o imanente (feito a existência de Deus e a imortalidade da alma). Por outro, considera que mesmo o conhecimento do mundo natural refere-se apenas à forma como nos aparece e não como é em si mesmo.
O resultado, constata Maritain, é que:
Com essa apresentação das imagens-ideias, as pretensões da razão cartesiana à independência das coisas chegam ao fim e o pensamento rompe com o ser, formando um mundo destituído de contato com algo que não ele mesmo […] e suas idéias se tornam efígies ocas e interpostas entre o pensamento e as coisas – que ainda são, para Descartes, réplicas das [coisas] verdadeiras. Mas a cópia, nos termos de Hamelin, comerá o original. Aqui, novamente, Kant completa Descarte: se a inteligência, ao operar, alcança apenas o pensamento sob forma de representação, a coisa oculta por trás das representações permanece, eternamente, incognoscível. (p.70)[5]
A consequência é, ironicamente, não uma maior humildade, mas a soberba auto-deificação. Na impossibilidade de conferir sentido a uma realidade extra mentis, o homem moderno decide, por vezes, fazer-se medida do real:
Nascida da uma usurpação dos privilégios angélicos, tirada dos limites de sua espécie, a concupiscência de pura espiritualidade deve inevitavelmente perseguir o infinito, nos levando, para além do mundo dos espíritos criados, a reivindicar para nosso intelecto a perfeita autonomia e a perfeita imanência, a independência absoluta na aseidade da inteligência incriada. Apesar de todas as negações e todas as misérias de uma experiência suficientemente humilhante, essa reivindicação, cujo formulador escolástico foi Kant, continua sendo o princípio secreto da dissolução de nossa cultura e do mal que aflige o Ocidente apóstata.
[…]
Por não querer compreender sua própria vida como um espírito criado e por reivindicar para si uma liberdade absoluta e indeterminada, é natural que o pensamento humano, a partir de Descartes, se recuse a regular-se pelo objeto e a submeter-se às necessidades inteligíveis. A liberdade do objeto é a mãe e a enfermeira de todas as liberdades modernas, é a mais bela conquista do progresso; uma vez que nada nos regula, estamos igualmente sujeitos a qualquer coisa. Chesterton comparou a liberdade intelectual à do nabo, o que é uma calúnia até mesmo para o nabo, pois essa liberdade é, a rigor, apenas a da matéria-prima. (pp. 70-71)
Daí as variantes de relativismo (perspectivismo, historicismo, construtivismo, pós-moderno, etc.) e idealismo que atormentam o pensamento e a cultura ocidental desde Kant. Eis, claramente, uma história mais antiga e complicada do que as observações de Maritain sugerem; mas não é disto que quero tratar aqui: desejo examinar o que o filósofo quer dizer com a comparação entre a forma mentis moderna e a matéria prima.
A matéria prima, no pensamento aristotélico-tomista, é a pura potencialidade de assunção da forma;[6] ela, por si mesma, não é uma coisa determinada, mas pode tornar-se uma – água, ouro, chumbo, estrela, árvore, cachorro, homem ou o que for – quando unida à forma. Sendo potência pura em relação à forma, uma vez que não está determinada a ser uma entidade física específica, pode se tornar qualquer coisa (feito a materia secunda, aquela que já contém uma forma; para isto, veja a defesa da noção de materia prima em meu Metafísica Escolástica p.171-5 e A Vingança de Aristóteles p.310-24).
A analogia de Maritain é, portanto, clara: tal como a matéria prima pode ser transformada em qualquer coisa (de ordem física), também as teorias construtivistas e relativistas tratam a natureza humana como maleável. Isto pode, num primeiro momento, soar estranho para um filósofo tomista feito Maritain, uma vez que Aristóteles defende que o intelecto assume a forma da coisa conhecida – não havendo, em princípio, limite para a assunção das formas. Aristóteles observa, de fato, no De anima, acerca desta capacidade do intelecto, que “a alma é, de certo modo, todas as coisas” (Livro III, cap.8). Ora, se os aristotélicos assumem que o intelecto possa, neste sentido, transformar-se em qualquer coisa, qual o problema de Maritain com opiniões semelhantes? Por que comparar a concepção de natureza humana admitida no relativismo e no construtivismo com a idéia de matéria prima em vez do intelecto aristotélico?
A resposta pode ser encontrada na reflexão sobre outra questão: qual a diferença entre a maneira como a matéria prima assume a forma e como o intelecto a percebe? A distinção é a seguinte: quando a matéria prima assume a forma de um cão, o resultado é um cão; por outro lado, quando o intelecto percebe a forma de um cão, o resultado não é um cão em si, mas sim o conhecimento da essência de um cachorro. Quando Aristóteles menciona que a alma, ou mais precisamente, uma faculdade chamada intelecto, é todas as coisas, ele está empregando uma figura de linguagem. O intelecto não se transforma em um cachorro ao compreender sua forma; o sentido metafórico de assumir a forma do cão é entender a sua natureza, a “caninidade”. A apreensão intelectual envolve a capacidade de entender sem se tornar o objeto em si; ao contrário, o processo de “tornar-se” é uma característica da matéria que, ao adquirir a forma, se transforma no cachorro.
Fica, portanto, claro o motivo da analogia maritaniana; perspectivas que considerem a realidade relativa à percepção, linguagem, convenção, etc., consideram o ser humano como matéria prima enquanto o vêem (o homem mesmo e não apenas o que ele sabe) como maleável, passível de mudança mediante alteração perceptiva, linguística ou convencional. Eis algo claramente falso. Somos, entre outras coisas, animais naturalmente racionais, e nenhuma alteração em nossas faculdades ou similares pode mudar isso. O máximo que pode ocorrer é uma cegueira em relação à realidade, a qual, por si só, permanece inalterada.
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Bibliografia recomendada:
- Jean-michel-alfred Vacant – Compêndio da Alma
- José Angel Lombo & Francesco Russo – Antropologia Filosófica: Uma introdução
- Sto. Tomás de Aquino – Comentário ao Sobre a Alma de Aristóteles
- Sto. Tomás de Aquino – Questões Disputadas Sobre as Criaturas Espirituais
- Sto. Tomás de Aquino – Questões Disputadas Sobre a Alma
- Sto. Tomás de Aquino – O Ente e a Essência
- Sto. Tomás de Aquino – Suma Teológica Vol.II
Notas:
[1] O intelecto, faculdade dos primeiros princípios pertencente à alma, não opera “por si”, como uma “razão pura” que se desdobra avaliando princípios inatos – noção, a saber, ausente no escopo da filosofia tomista. Assim, o intelecto opera apenas mediante “contato” com o ser nas coisas. [N.T.]
[2] Itinerário encontrado, por exemplo, no raciocínio das cinco vias para a existência de Deus, de onde Sto. Tomás parte de um “dado concreto”, feito o movimento, e dali ascende mediante raciocínios até suas causas últimas, culminando em Deus. [N.T.]
[3] “As espécies pelas quais os anjos conhecem não são recebidas das coisas, mas lhe são conaturais […] A potência intelectiva, porém, nas naturezas espirituais superiores, a saber, nos anjos, está naturalmente completa pelas espécies inteligíveis, na medida em que têm as espécies conaturais a todo inteligível que possam naturalmente conhecer […] recebem sua perfeição inteligível de um influxo inteligível pelo qual recebem de Deus as espécies das coisas cognoscíveis, justamente com a natureza intelectual.” S. Th. I q.55 a.2. Resp. [N.T.]
[4] Coisa é a entidade em si mesma; representação é a “imagem” correspondente à entidade enquanto subsistente em nossa memória. A nota fundamental do realismo é que “acessamos” as coisas; o idealismo, por outro lado, prega que temos acesso apenas a representações. [N.T.]
[5] As traduções de Maritain foram feitas conforme a edição espanhola. [N.T.]
[6] “Mas é preciso considerar que a forma reduz a matéria a determinada espécie, do mesmo modo que a substância específica é reduzida pelo acidente que se lhe junta a determinado modo de ser. Por exemplo, o homem é reduzido pelo branco. Tanto os primeiros filósofos como os seguintes consideraram o ente sob um ângulo particular, seja enquanto é este ente, seja enquanto é tal ente. Dessa forma atribuíram às coisas causas eficientes particulares. Outros foram mais longe e se elevaram até a consideração do ente enquanto ente e consideraram a causa das coisas não somente enquanto são este ente ou tal ente, mas enquanto são entes. Portanto, pelo fato de que são a causa das coisas enquanto são entes, é preciso que sejam causa das coisas, não somente enquanto tais pelas for mas acidentais, nem enquanto são estes entes pelas formas substanciais, mas enquanto tudo aquilo que pertence de algum modo ao ser deles. Dessa maneira é preciso afirmar que mesmo a matéria primeira é criada pela causa universal dos entes.” S. Th. I q.44 a.2. Resp. [N.T.]
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