Por Kimberly Hurd Hale
Tradução e notas de Gabriel Marvin
Comentários de Helkein Filosofia
Males da Modernidade: O Cientificismo e a Deformação da Ordem Política, de David N. Whitney, consiste num exame criterioso e oportuno sobre as origens do cientificismo e de seu impacto na ciência e na política contemporânea. Whitney traça as origens do cientificismo até à época da ascensão da ciência moderna, no início do Iluminismo – e devemos nos atentar que, ainda que a ciência e o cientificismo não sejam equivalentes, são facilmente confundidos pela multidão desinformada e pouco instruída. O livro guia o leitor através das várias fases do desenvolvimento e da promulgação do cientificismo, partindo de Francis Bacon (1561-1626) e encerrando, no presente, com um apelo por uma ciência política reformada e que restabeleça a contemplação e a investigação filosófica ao seu devido lugar. Embora discorde fortemente da caracterização de Whitney sobre o pensamento baconiano, trata-se de um desacordo agradável na medida em que se trata dum interlocutor devidamente fundamentado e bem articulado. Todas as questões postas pelo livros são corretas e, ainda que o leitor possa discordar das respostas de Whitney, a discussão resultante é essencial para a preservação do bem humano.
O livro se inicia com a tão necessária distinção entre ciência e cientificismo. Na sociedade moderna, a ciência e a política estão necessariamente interligadas, de tal maneira que a última, para que seja eficaz, deverá prestar contas acerca de como as pessoas vivem numa sociedade científica, considerando a relação entre ciência e tecnologia pelo seu impacto em todos os aspectos das nossas vidas. O autor observa que algumas das questões mais importantes da vida política contemporânea são: “Deveriam os governos controlar as agendas de investigação científica? Será que devem determinar quais as invenções autorizadas? E, em caso afirmativo, como se podem fazer tais determinações? Quem acaba por decidir se um avanço científico é bom ou mau para a sociedade?”.[1] Essas questões são especialmente urgentes no século XXI. Os cidadãos já não necessitam preocuparem-se simplesmente com a ameaça existencial da guerra nuclear; agora, também temos de aceitar que as tecnologias onipresentes e qüotidianas eficazmente erradicaram a divisão público/privada sobre a qual a sociedade liberal foi fundada, tendo-se de constantemente enfrentar a possibilidade iminente da engenharia genética e da clonagem humana radicalmente redefinirem o que significa ser humano. Tais ameaças são, claro, contrabalançadas por avanços outrora inimagináveis em termos de conforto, duração e segurança na moderna vida humana. Por mais que receie os efeitos/consequências da clonagem humana, eu estaria relutante (se não mesmo indisposto) em regressar a uma sociedade onde não exista a medicina moderna ou a eletricidade.
A relação entre ciência e política complica-se ainda mais, conforme argumenta Whitney, pelo lugar de honra que a idéia de ciência ocupa na mente do público.[2] Os cidadãos não querem apenas que a política governe a ciência, eles querem que a própria política seja científica, a ciência é considerada mais confiável, e mais objetiva, do que a base tradicional da política: debate fundamentado, ou noesis. Uma vez que os seres humanos operam no domínio da opinião, o processo de determinar qual a opinião divergente é mais sábia do que a outra constitui um processo confuso e difícil, com resultados por vezes desastrosos. Na era moderna, os estudantes e praticantes de política, ansiosos por evitar as armadilhas da falibilidade humana, tentaram elaborar uma ciência da política, ou ciência política. Segundo Whitney, “qualquer alegação pode ser exponencialmente promovida caso possa rotular-se de “científica”.
Em contrapartida, qualquer alegação que seja vista como “não científica” pode ser prontamente rejeitada”.[3] Essa elevação do rótulo científico não seria necessariamente problemática se a ciência fosse adequadamente compreendida por aqueles que a veneram, contudo, não é esse o estado atual da nossa sociedade. Os praticantes de ciência política frequentemente não interrogam os seus próprios pressupostos, tornando as suas descobertas “científicas”, na melhor das hipóteses, em ilusórias. Ao mesmo tempo, o público, ansioso por soluções científicas para os problemas políticos, frequentemente têm pouca compreensão coletiva da metodologia utilizada pelos estudos que citam, acompanhado de nenhuma capacidade para julgar se o estudo foi ou não executado de acordo com rigorosos princípios científicos.[4] O fato de a pessoa média depender de tecnologias que não compreende é problemático; é profundamente perigoso que a pessoa média esteja disposta a organizar a nossa sociedade política com base em estudos “científicos” que não compreende. Essa propensão para aceitar e elevar qualquer descoberta que se associe ao termo “ciência” é a base do cientificismo.[5]
A única área de discordância séria que tenho com este livro é o alinhamento de Whitney com a opinião de que Francis Bacon é o criador do cientificismo. A minha análise da filosofia política baconiana está amplamente documentada noutros locais.[6] Basta apontar minha profunda oposição à alegação do autor, na qual Bacon “não presta contas da política”[7] na sua visão da modernidade. O cerne do nosso desacordo é a questão de saber se Bacon é, como Whitney argumenta, perigosamente utópico no seu pensamento, ou se ele está, como eu defendo, tão ciente dos perigos do seu projeto quanto dos potenciais benefícios. O autor argumenta que a Nova Atlântida baconiana é um suposto retrato utópico da ciência em ação; contrariamente, defendo a Nova Atlântida como exposição exata de como e porque a ciência, quando não temperada pela filosofia política, conduz à tirania. Afinal, Bacon adverte claramente no Novum Organum do perigo inerente à sua filosofia, devido à “pressa prematura e precipitada” da humanidade em tentar usar os frutos da experiência indutiva para alcançar princípios gerais. Além disso, Whitney vê a rejeição incondicional de Bacon aos acadêmicos, que transformaram o estudo da filosofia antiga e medieval numa experiência de clausura entediante e diminuta, como uma rejeição dos próprios pensadores antigos e medievais. Os leitores cuidadosos devem, contudo, esforçar-se por separar o pensador dos seus intérpretes, uma vez que Bacon considera o pensamento antigo e medieval inadequado para o seu projeto, mas não o considera irrelevante.
Para além do seu tratamento de Francis Bacon, o argumento de Whitney é convincente e bem fundamentado. O resto do livro é dedicado ao aparecimento e à rápida corrupção da ciência política moderna. Um tratamento rápido do legado de Bacon na Era Newtoniana prepara o palco para o cerne do argumento de Whitney, traçando a ascensão do cientificismo no pensamento de Auguste Comte e dos Enciclopedistas franceses, tais como Saint-Simon, D’Alembert, Diderot, e Turgot, que procuraram apressar a vinda duma sociedade cientificamente governada, através da aplicação dos princípios da ciência natural à ciência política e social. Comte, contudo, levou esta ambição ainda mais longe, desenvolvendo aquilo a que ele chamou a Religião da Humanidade. Conforme Whitney alega, “tal como a nova ciência tinha substituído a velha através da verificação empírica, também a religião ‘demonstrável’ […] suplantaria a religião ‘revelada’ do cristianismo”.[8] A análise do autor sobre Comte é atenciosa, detalhada, e excelente em provocar as implicações tardias das suas idéias. Essa análise continua através dos capítulos seguintes, enquanto Whitney delineia o culminar dos perigos do cientificismo na emergência do marxismo e do social-darwinismo nos séculos 19-20. O livro faz um trabalho admirável ao mostrar como a ciência defeituosa lançou as bases para muitas das mais hediondas políticas destes movimentos, particularmente a eugenia. O cientificismo impede os modernos de levar a sério a sabedoria dos pensadores antigos e medievais, aquela mesma sabedoria de Platão, Aristóteles, Agostinho, Al-farabi e outros é considerada “não científica” e, portanto, irrelevante para as preocupações da nossa moderna sociedade científica. Como resultado, os cientistas políticos modernos estão terrivelmente sub-equipados, não apenas para argumentar a favor do melhor regime, mas para reconhecer quando um bom regime está à beira da tirania e oferecer correções para o perigo.[9]
Claro que, como Whitney demonstra, a esperança não está totalmente perdida. O legado da sabedoria antiga tem sido preservado por pensadores como Leo Strauss e Eric Voegelin, entre outros. O caminho a seguir não pode ser uma simples rejeição da modernidade ou da ciência moderna, em vez disso, devemos encontrar uma forma de desenvolver uma verdadeira ciência política, uma ciência que combine a sabedoria do passado com o potencial do futuro. Conforme defendido pelo autor, a ciência política deve fomentar a phronesis, ou sabedoria prática, uma tarefa que “requer uma compreensão do certo e do errado e da justiça: conhecimento que, em última análise, é adquirido através da faculdade de noesis”.[10] Em conclusão, o Maladies of Modernity bem vale o tempo de qualquer pessoa interessada nas questões que tratam da relação adequada entre ciência e política, entre o pensamento político antigo e moderno. E, como deve ficar claro nesse momento, qualquer pessoa que aspire a uma boa cidadania numa sociedade moderna deve se interessar ativamente por essas questões, que por sua vez não possuem respostas simples ou fáceis. De fato, o consenso quanto a essas questões é provavelmente impossível, e isso torna a própria discussão tão essencial.
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Bibliografia citada e/ou recomendada:
- David Whitney — Maladies of Modernity
- Eric Voegelin — A Nova Ciência da Política
- Eric Voegelin — The Collected Works of Eric Voegelin — Vol. 33: The Drama of Humanity and Other Miscellaneous Papers 1939–1985
- Eric Voegelin — The Origins of Scientism.
- José Pedro Galvão de Sousa — O Estado Tecnocrático
***
Notas:
Por favor, veja a resenha de Scott Robinson e seu excerto do livro. [N.A]
[1] David Whitney, Maladies of Modernity (South Bend: St. Augustine’s Press, 2019), p. 2. [N.A] Tradução autoral, assim como demais trechos, tendo em vista a ausência da obra no mercado editorial brasileiro.
[2] Podemos citar, a título de exemplo, uma curiosidade apontada por Eric Voegelin: tendemos a reificar o termo “ciência” como se fosse referente a uma entidade uniforma que legisla sobre o conhecimento humano. Dizemos: “a ciência diz…” quando, na realidade, o que ocorre é que há cientistas que dão tal ou qual opinião fundamentada em qual ou qual estudo que, por conseguinte, pode estar errado. Leiamos o trecho: “second realities. So if somebody proposes something to you in terms of science, say, “science says this or that,” you are already floored because you believe science has something to say. You aren’t aware that “science” is an allegorical figure and “science” doesn’t say anything, but some specific person says something that may be entirely wrong. You might say that these second realities already have a prestige value. Now these prestige values can only be maintained, of course, if no questions are asked with regard to the evidence brought for such constructions of second realities. (I have already touched upon this problem.) Even in the case of a philosophical system—be it Hegelian or Marxian—you do not ask unpleasant questions with regard to the validity of its premises. If you admit the premises, everything follows nicely because these men think more or less logically. But if you ask questions with regard to the premises, the whole system breaks down.” Eric Voegelin – The Collected Works of Eric Voegelin – Vol. 33: The Drama of Humanity and Other Miscellaneous Papers 1939-1985 (2004) p.234 [N.E.]
[3] Whitney, 140. [N.A]
[4] Para informações acerca do método da filosofia política é interessante consultar Eric Voegelin – A Nova Ciência da Política. [N.E.]
[5] Recomenda-se ler Eric Voegelin – The Origins of Scientism.
[6] Kimberly Hurd Hale, Francis Bacon’s New Atlantis in the Foundation of Modern Political Thought (Lanham: Lexington Books, 2013). [N.A]
[7] Whitney, 21. [N.A]
[8] Whitney, 77. [N.A]
[9] Whitney, 144. [N.A]
[10] Whitney, 147. [N.A]
Artigo gentilmente concedido por Voegelinview.com. Original aqui.
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