[…] entendemos por Filosofia Concreta aquela que busca e justifica os postulados de um saber ontológico, válido em qualquer setor da realidade […] com seus respectivos critérios de verdade e de certeza.
Mário Ferreira dos Santos – Filosofia Concreta [1959] p.20
1. Introdução
Talvez o presente guia seja um projeto natimorto. Assim me refiro, pois, em edições antigas da obra de Mário Ferreira dos Santos encontramos, logo nas primeiras páginas, informações acerca de livros já publicados, planejados, e que não viram a luz do dia. Por outro lado, para além de tais listagens diferirem segundo o ano da publicação sob exame – e de não figurarem em edições recentes – elas não fornecem informações suficientes àquele que deseja saber por onde começar a estudar o filósofo. Embora leitores costumazes de Mário Ferreira possam “montar”, facilmente, guias de leitura, aquele que nunca ouviu falar do autor não possui condições de fazer o mesmo. É por isto que apresento este guia.
Há muitas sugestões acerca de possíveis candidatos a “livro para começar a ler Mário Ferreira dos Santos”; cinco deles são Convite à Filosofia e História da Filosofia, Filosofia e Cosmovisão, Tratado de Simbólica, Pitágoras e o Tema do Número e Filosofia da Crise. Entretanto, como poderemos selecionar o mais conveniente ou, caso haja mais de um, quais os melhores? Para isto é necessário que façamos alguns comentários. Prescindirei, aqui, de elucubrações sobre o simbolismo matemático intrínseco à obra ferreiriana, pois creio que, num mero guia altamente parcial, não seriam mais do que sinalização vã de eruditismo. Caso o leitor deseje examinar este tema, remeto ao livro de Olavo de Carvalho feito especificamente para tal, o Mário Ferreira dos Santos – Guia de estudo para sua obra, que inclui um estudo introdutório da obra de Ferreira dos Santos.
Quiçá o leitor estranhe o fato de que não chamo o pensamento ferreiriano de Filosofia Concreta (como ele mesmo fazia) mas de filosofia ferreiriana. Optei por esta terminologia com as mesmas intenções daqueles que distingüiram o idealismo-crítico [ou criticismo], criado por Kant, da filosofia kantiana. Ainda que não haja outros proponentes da filosofia concreta, aqui, referir-me-ei ao pensamento do homem Mário Ferreira dos Santos e não à sua possível escola de pensamento. Alguns referiram-se à filosofia ferreiriana como “concretismo”; tendo em conta que o concretismo refere-se antes a certo experimentalismo duvidoso do que à filosofia, alegamos que filosofia ferreiriana é não apenas mais bonito como mais coerente.
2. Uma noção dos componentes nucleares da obra
Mário Ferreira dos Santos esteve ciente de que, em seu tempo – a primeira e parte da segunda metade do século XX –, o acesso a obras filosofia era difícil no Brasil (não que ainda não o seja; demoramos duzentos anos para ter uma edição da Quadrúplice Raiz do Schopenhauer e mais da metade da obra de Boécio permanece desconhecida para o público): era necessário utilizar obras estrangeiras, sem tradução, para que fosse possível dar aulas em universidades. Um de meus professores viveu este tempo e contou que, em seu tempo de estudante, precisou ler as obras de René Descartes em grupos de estudo nos quais as pessoas traduziam, do francês, pedaços dos livros. Este é o tipo de esforço que faria um estudante moderno desistir da filosofia.
Diante deste cenário, Ferreira dos Santos reconheceu que a compreensão de seu pensamento exigiria uma cultura filosófica até então ausente no Brasil. Então, para superar este problema e fornecer as informações necessárias para ser retamente compreendido, fundou sua própria editora e redigiu uma série de obras introdutórias. Mário ferreira precisava, a rigor, aculturar seu público, pois, cria que a filosofia não precisa descer às massas, mas estas devem ser elevadas à filosofia. Então publicou, nas editoras Logos e Matese, além de traduções de clássicos e compilados de cultura geral, a Enciclopédia das Ciências Filosóficas e Sociais, o conjunto das obras – o menos o núcleo do pensamento –, dividida em três séries: uma introdutória [ou não], uma intermediária [ou quase] e uma avançada [ou sim]. A primeira parte compunha-se dos seguintes livros:
- Filosofia e Cosmovisão
- Lógica e Dialética
- Psicologia
- Teoria do Conhecimento
- Ontologia e Cosmologia
- Tratado de Simbólica
- Filosofia da Crise
- O Homem perante o Infinito
- Noologia Geral
- Filosofia Concreta (1, 2 ou 3 volumes a depender da edição)
Todos os livros da primeira série foram numerados de forma a compor uma ordem de leitura sugerida pelo próprio autor – e que, infelizmente, foi rejeitada em edições recentes, submetidas a uma numeração que mistura a primeira e a segunda parte da Enciclopédia.
É curioso notar que, caso arrancássemos a capa dos livros da primeira série e colássemos uns nos outros, formando apenas um volume, a coerência entre os volumes componentes é tamanha que este seria legível como se concebido desta forma – o que confirma, a saber, a idéia de enciclopédia, ainda que Ferreira dos Santos não fosse, como quiseram alguns, um enciclopedista nos moldes de D´Alambert. Entretanto, ainda que cada livro complete e avance tópicos explicitados em volumes anteriores, possuem solavancos internos, entre eles aquele ocorrido em Filosofia e Cosmovisão, sobretudo a partir da metade, onde passamos de uma exposição didática à, conforme observa Olavo de Carvalho, exposição de tópicos que o filósofo parece ter acabado de ler n’alguma revista especializada.
Para além destes detalhes, é mister salientar, conforme o conselho do autor ao numerar suas obras, que iniciar seu estudo pelo Filosofia Concreta, último volume e conclusão da primeira série, é um erro bobo. Este livro representa o fim de um ciclo, a reforma e fundamentação de todas as informações apresentadas nos volumes anteriores; lê-lo de pronto é como iniciar uma história pelo final e cometer um eqüívoco muito comum entre os leigos, a saber, decorar as conclusões sem compreender o percurso dos argumentos – algo semelhante saber o resultado de uma integral sem saber fazer a conta. Eis, de fato, a morte da filosofia.
Podemos citar, a título de exemplo tanto de solavanco interno quanto de continuidade do conteúdo, o Ontologia e Cosmologia, espécie de compilado onde o filósofo parece reunir, num todo mais ou menos coerente, tanto suas teses metafísicas favoritas quanto seu pensamento original. O art.3 do tema I que fala do Ser e do Ato [inclui uma teoria tríplice do tempo: epimeteico, híbrido e prometeico], o art.1 do tema III confecciona uma teoria mais ou menos original sobre os graus de realidade, o art.4 do mesmo tema trata da teoria modal suareziana – algo curioso, tendo em vista que ela antecede o capítulo dedicado às categorias aristotélicas que são, na ordem do conhecer, prévias a todos os temas tratados anteriormente –, e assim por diante. Todos estes temas serão sobejamente utilizados no decorrer das outras obras e, em especial, no Filosofia Concreta.
A segunda série da Enciclopédia das Ciências Filosóficas e Sociais sofre de um problema cômico: possui dois livros inaugurais, pois tanto o Filosofia Concreta dos Valores quanto o Sociologia Fundamental e Ética Fundamental rogam para si o título de primeiro:
- Sociologia Fundamental e Ética Fundamental [prefácio]: “Com esta obra, damos início à segunda parte de nossa Enciclopédia das Ciências Filosóficas e Sociais, tendo sido encerrada a primeira parte com Filosofia Concreta, na qual reduzimos as teses apoditicamente demonstradas…”
- Filosofia Concreta dos Valores [prefácio]: “Este volume, que ora damos à publicidade, que é o décimo primeiro de nossa Enciclopédia das Ciências Filosóficas e Sociais abre, propriamente, a segunda parte da mesma obra, que fora encerrada em o nosso ‘Filosofia Concreta’ …”
Portanto, visto que nem Ferreira dos Santos pode se decidir por onde começar a segunda série, fica a critério do leitor escolher seu favorito – afinal, segundo a lei de Scotus, de uma contradição pode sair qualquer coisa. A segunda parte da Enciclopédia não foi numerada, impedindo a delimitação rigorosa de seus volumes e ordem de estudo. Confiramos alguns de seus componentes:
- Aristóteles e as Mutações
- O Um e o Múltiplo em Platão
- Das Categorias
- Isagoge, de Porfírio
- Protágoras, de Platão
Comentário: Todos os livros anteriores são traduções comentadas de, respectivamente, Da Geração e da Corrupção [Aristóteles], Parmênides [Platão], Categorias [Aristóteles], Isagoge [Porfírio] e Protágoras [Platão]. Embora, por vezes, expressem antes opiniões de seu autor do que um comentário imparcial ou crítico, não são, por isto, destituídos de valor, podendo ser de grande ajuda para o leigo – e este que vos fala estaria preso até hoje na leitura do Parmênides se não fosse pela ajuda do Mário.
Comentário: Este livro contém a interpretação ferreiriana de Pitágoras. É notório que muito do que o autor diz de Pitágoras pode ser aplicado a ele mesmo na medida em que, comentando a [suposta] filosofia pitagórica, insere teses mui próprias, como a associação do Demiurgo platônico à processão da Díada plotiniana ao simbolismo numérico de matriz pitagórica [cap. XIII], ou a comparação dos resultados obtidos no livro à sua “reconstrução” segundo os cânones da Filosofia Concreta [cap. XX], aspectos que dificilmente veríamos em outros comentadores. Estas características tornam o livro, enquanto comentário, obra contaminada, servindo para que compreendamos antes o pensamento ferreiriano do que o pitagórico.
Por outro lado, este aspecto levou alguns, feito Olavo de Carvalho, a crerem que o Pitágoras e o Tema do Número pudesse ser uma boa introdução ao pensamento ferreiriano por conta de o Pitágoras ferreiriano servir de projeção da obra de seu artífice. Não parece má idéia, caso desconsideremos que algumas das teses ali expostas são abstrusas a ponto de poderem ser encontradas (numa exposição mais completa) no Sabedoria das Leis Eternas – é, portanto, má idéia.
- Métodos Lógicos e Dialéticos (2 ou 3 volumes a depender da edição)
Comentário: O Métodos Lógicos e Dialéticos atua ceteris paribus, como se fosse o “Investigações Lógicas do Mário”. Expõe e utiliza o método dialético ferreiriano de maneira bem superior ao apresentado em Lógica e Dialética.
- Dicionário de Filosofia e Ciências Culturais
Comentário: O “dicionário do Mário” é ferramenta indispensável para o estudioso de Ferreira dos Santos devido a servir antes de glossário do corpus ferreiriano do que como dicionário de filosofia – como o é, por exemplo, o Dicionário de Filosofia do Abbagnano
Comentário: Talvez, junto do Filosofia da Crise, uma das maiores pérolas refinadas pelo autor. Exemplo indelével de habilidade dialética. Pode ser visto como reapresentação dialógica das teses contidas no Filosofia Concreta. Encontramos, aqui, o alter-ego do Mário, Pitágoras de Melo, também presente em seu Homens da Tarde.
- Origem dos Grandes Erros Filosóficos
- Grandezas e Misérias da Logística
- Erros na Filosofia da Natureza
Comentário: Os três livros acima são, em especial o primeiro, semelhantes a aparelhos de demolição, uma vez que são todas obras de crítica. O segundo contém material valioso ao interessado em estudar e contribuir para a filosofia ferreiriana, uma vez que expõe um dos pontos fracos de seu autor, a saber, a falta de integração com a filosofia analítica.
- Tratado de Economia (2 volumes)
- Análise de Temas Sociais
- O Apocalipse de S. João
A terceira série da Enciclopédia das Ciências Filosóficas e Sociais contém o ápice da filosofia ferreiriana, sua metafísica, e é composta de quatro volumes, metade publicada postumamente: A Sabedoria dos Princípios, A Sabedoria da Unidade, A Sabedoria do Ser e do Nada [póstumo] e A Sabedoria das Leis Eternas [muito póstumo]. Este que vos fala não possui a menor idéia da intenção dos editores em publicar, no início do século XXI, o Sabedoria das Leis Eternas como primeiro livro de uma tentativa relançamento do corpus ferreiriano, uma vez que esta é a última parte da Enciclopédia.
O que importa reter é que a última parte dos serializados por Mário Ferreira contém uma curiosa síntese entre várias teses escolásticas e seu pitagorismo concreto, algo bem exposto em A Sabedoria das Leis Eternas, cujas teses são apresentadas em forma de década numerada em suas categorias erigem outras até que se unam, todas elas, na décima – eis, a propósito, a estrutura da primeira série da obra. Temos, portanto, o percurso metafísico perfeito: a ordem do conhecer que parte da primeira série até a última e a ordem do ser que desce da última à primeira, fundamentando-a. Dialética ascendente, no primeiro caso, e dialética descendente, no segundo. Há, ainda, uma boa coletânea de esparsos, feito as coleções Minimax [contendo, sobretudo, obras de juventude], Para Uma Nova Consciência (que contém a Invasão Vertical dos Bárbaros), e, para além destas, os originais datilografados – inacabados ou não – que nunca viram a luz do dia.[1]
3. Sugestões
Agora que temos uma idéia da composição das principais obras de Mário Ferreira dos Santos, urge sugerir o que ler antes ou depois. Devemos considerar que por maior que tenha sido a boa vontade do autor em confeccionar dez livros para que o leitor galgasse os degraus da filosofia, eles estão longe de ser o suficiente. Como comentado por Olavo de Carvalho sobre o Filosofia e Cosmovisão – e o comentário vale para outros –, houve uma tentativa impossível de mesclar didatismo e teses originais complexas, o que afasta tanto o leigo quanto o veterano a depender de qual parte do livro tratamos – da metade para a frente o autor introduz uma série de conceitos e temas que exigem muitas leituras prévias, por exemplo, os conceitos de extensidade e intensidade,[2] adaptações de conceitos da física moderna unidas à noção de ato e potência, exposição que afasta o primeiro por sua complexidade e o segundo pela falta de rigor. Desta observação deduzimos que o livro exige, no mínimo, alguma compreensão de Aristóteles, impressão confirmada pela profusão de conceitos metafísicos que surgem a partir do capítulo do princípio de razão.[3] O mesmo ocorre no Lógica e Dialética – que, a propósito, facilitaria algo da vida do leitor caso tivesse parte de seu conteúdo explicado antes no primeiro volume da série do que no segundo –: neste volume, quiçá o leitor creia que o autor sofresse de uma espécie de maldição, posto que o livro começa semi-didático e termina semi-infernal, pulando de um manual de lógica clássica para um comentário histórico-crítico da dialética – em especial a hegeliana – para depois verter numa exposição de dois dos métodos originais do autor, a Decadialética e da Pentadialética, utilizados no Psicologia, terceiro volume da série, e sobremaneira no quarto, o Teoria do Conhecimento [ver p.77 da edição de 1958]. Podemos seguir o mesmo processo ao longo da série, e o mesmo resultará de todas as análises: é impossível recomendar a obra ferreiriana ao leigo como se ela não tivesse pressupostos graves, como o Instituições Dialéticas [ou equivalente] de Pedro da Fonseca – uma das principais fontes do Filosofia Concreta, mais um dos livros recomendados por Olavo como candidatos a introduzir o pensamento ferreiriano.[4]
Por outro lado, o estudante que possui cultura filosófica se dará muito bem com Ferreira dos Santos. Tudo é, na medida do possível, muito límpido e direto, mesmo naquelas teses que aparecem rascunhadas, feito as explicações acerca da analogia no Tratado de Simbólica – que se repetem ipsis literis em outros livros, como o Ontologia e Cosmologia, seu antecessor –, uma vez que podem ser reconstruídas e complementadas quando se tem conhecimento das fontes clássicas de onde derivam. O autor demonstrava um notável senso prático, na medida em que algumas explicações se parecem com manuais de instruções; se unirmos o Lógica e Dialética com o Métodos Lógicos e Dialéticos e teremos algo próximo de um manual de instruções de Decadialética e Pentadialética, dotado de teoria e prática. Se a intenção do autor fora, como parece ser o caso, que o leitor dominasse o seu aparato filosófico, certamente alcançou seu objetivo. O Homem Perante o Infinito é um excelente compêndio comentado das principais teses da teologia natural, o Tratado de Simbólica apresenta teorias semi-perdidas [e uma original, da dialética symbolica] acerca dos fundamentos do simbolismo enquanto forma de analogia. Por fim, o Filosofia Concreta é um monumento do que podemos chamar de filosofia arquitetônica no sentido de uma grande concatenação de teses num more geométrico que não esconde sua inspiração scotista. O mesmo se repete no Filosofia Concreta dos Valores e no Sociologia Fundamental e Ética Fundamental – um livro aparentemente escrito ao contrário, uma vez que aborda o tema mais complexo antes do mais simples.
Sendo assim, como iniciar a leitura de Mário Ferreira dos Santos? Há duas vias: a primeira é tê-lo como comentador; a segunda, como filósofo. Seguindo a primeira, o leigo poderá ler alguns livros como apoio ao estudo de Platão e Aristóteles. Portanto:
- Protágoras, de Platão
- O Um e o Múltiplo em Platão (comentário do Parmênides)
- Das Categorias
- Isagoge, de Porfírio (mais comentários das Categorias)
- Aristóteles e as Mutações
Tendo em conta a segunda via, uma vez que exige todo aquele corpus que qualquer estudante de filosofia sério possui ou busca adquirir, creio que a melhor forma de começar a ler Mário Ferreira seja respeitar a ordem por ele proposta e começar por Filosofia e Cosmovisão. Quanto ao Tratado de Simbólica, ainda que seja, no que se refere à primeira série da Enciclopédia, o primeiro entre os mais bem compostos, é o sexto de componente de uma linha de pensamento que abrange dez volumes. O Pitágoras e o Tema do Número e o Filosofia da Crise são componentes da segunda série da Enciclopédia e, em especial o segundo, contém uma intrincada malha de conceitos dialéticos originais [crisis, syncrisis, diácrisis etc] do pensamento ferreiriano que exigem a compreensão do exposto no Lógica e Dialética [e não apenas nele, posto que o tema da intensidade e da extensidade permeia toda a obra] Recomendá-lo de pronto é algo próximo da insanidade Quanto ao Pitágoras e o Tema do Número, basta a observação feita sobre o Filosofia Concreta.
Bônus: sugestão de estudos para que se avance a filosofia ferreiriana de forma robusta.
Um dos principais motes da filosofia ferreiriana consiste na compilação e integração de tudo o que foi feito de positivo na história da filosofia, de forma a obter um todo coerente que lhes confira fundamentos ainda mais sólidos. Eis um objetivo nobre e, em verdade, é aquele que anima todos os filósofos: não um impulso pela destruição, mas pela criação: tudo o que foi feito de original nunca o foi em nome da originalidade, mas da verdade. A robustez é adqüirida através da construção sobre bases sólidas postas por aqueles que vieram antes de nós.
Por outro lado, há problemas. Teses rascunhadas, falta de rigor e profusão de lacunas.[5] Não temos um livro robusto a ponto de fundar uma escola e não tivemos comentadores habilitados para que isto fosse corrigido. Quem dera Ferreira dos Santos tivesse seu Porfírio, um discípulo que organizasse suas obras. O conteúdo bruto dos livros do autor é, caso utilizemos os padrões críticos atuais, inutilizável, uma vez que tende a ser menos rigoroso do que um artigo acadêmico.[6] Os escritos já eram problemáticos mesmo em seu tempo: basta que a comparemos aos produzidos por outros filósofos mais ou menos do mesmo período, como Marleau-Ponty, ou de dos criticados por Mário, Edmund Husserl.[7]
Minhas observações podem parecer críticas, mas são direcionadas antes à apresentação das ideias ferreirianas do que à sua qualidade intrínseca. Não podemos ignorar os erros dos grandes filósofos se quisermos corrigi-los. Ferreira dos Santos não precisa apenas de livros reescritos, anotados e comentados, mas de uma exposição crítica por parte de discípulos. Caso isso não aconteça, sua filosofia corre o risco de fossilizar e ser esquecida, algo que, doa a quem doer, já acontece.
Em meus devaneios de juventude, tentei consertar estes problemas. Escrevi rascunhos, fichei mais da metade da obra e teci comentários sobre a primeira tese da filosofia concreta. Procurei, ainda, fixar criticamente o significado de sua terminologia técnica. Infelizmente, por falta de envergadura intelectual, o projeto malogrou. Este guia é, em boa parte, baseado nesta experiência e, por isso, ofereço algumas sugestões para aqueles que desejam adotar a filosofia de Mário Ferreira e dar passos em direção à aspiração do filósofo de construir um edifício atual que incorpore o melhor das tradições antigas.
Sugestão 1: Unificação e fundamentação dos métodos presentes na filosofia ferreiriana – Ainda que os métodos decadialético e pentadialético, há outros, feito o método de suspicácia [ver Teoria do Conhecimento, prefácio]. Considerando que, assim como Husserl, Mário quis apresentar seu método – já em uso, inclusive – antes de sua filosofia, é crucial que este seja analisado de forma crítica para permitir avaliação, correção e aplicação por outros. Essa empreitada requer a compilação e fundamentação de todos os métodos utilizados ao longo de sua obra.
Sugestão 2: Integração da lógica à filosofia ferreiriana – Apesar da preferência de Mário Ferreira dos Santos pela lógica clássica em detrimento da matemática ou logística (Isso pode ser verificado em Grandezas e Misérias da Logística) essa abordagem tornou-se inadmissível devido ao significativo avanço da lógica no século XX; não podemos manter a seriedade do projeto restringindo seu escopo à teoria do silogismo.[8] Tendo em vista que a filosofia ferreiriana opera com moldes clássicos, é imprescindível que se integre a lógica moderna em seu corpus. Ignorar este problema é como permitir que se mantenha um motor de Kombi num caminhão que precisa de um v8 a diesel.
Sugestão 3: Integração das contribuições da fenomenologia à filosofia ferreiriana – Ainda que, por vezes, Mário prescinda e faça pouco da criação husserliana – como podemos conferir em Métodos Lógicos e Dialéticos –, a fenomenologia de viés realista é aparentada ao pensamento ferreiriano e com certeza poderia enriquecer sua abordagem metodológica.
Sugestão 4: Revisão e comentário das teses já conhecidas – Muito do escopo da obra ferreiriana, especial a primeira série da Enciclopédia, consiste na exposição e reexposição de teses já existentes, adaptadas à filosofia de Ferreira dos Santos. No entanto, devido à sua abordagem semi-didática, muitas delas carecem de profundidade. Portanto, é preciso fazer com o Mário o que o ele fez com os outros, reexpô-lo, de preferência segundo os resultados obtidos na sugestão 1. Podemos tomar como exemplo de exposição e comentário as obras Plato and the Foundation of Metaphysics de Joachim Krämer e Para uma nova interpretação de Platão, de Giovanni Reale. Assim teremos, por exemplo, os conceitos de atualidade e virtualidade expostos e “prontos para uso” da mesma forma que usamos essência em sentido tomista.
Sugestão 5: Integração dos últimos resultados científicos na filosofia ferreiriana – Ferreira dos Santos foi um entusiasta da ciência, procurando integrar o que houvesse de mais recente para robustecer a validade de suas teses. É crucial manter esse espírito e integrar os desenvolvimentos mais recentes da ciência moderna aos resultados obtidos no trabalho de reconstrução da filosofia ferreiriana esboçado nestes cinco itens.
Embora haja muito mais a ser feito, essas sugestões constituem um bom ponto de partida. Ainda que desafiadora, não é uma tarefa impossível. O esforço coordenado de pelo menos dez pessoas habilitadas poderia, em pouco mais de um ano, catalogar e expor, em linhas gerais, todos os principais conceitos ferreirianos; em suma, 90% do trabalho poderia ser feito por um professor coordenando um grupo de estudo.
***
Apêndice
Considerações sobre uma filosofia brasileira: apologia a Mário Ferreira dos Santos
Por Helkein Filosofia
Notas de rodapé de Claudionor Batista
Esclarece-se, assim, de uma vez por todas, que não nos filiamos a nenhum pensamento senão o nosso, o da Filosofia Concreta, cuja validez está em si mesma e em suas demonstrações. Como construção filosófica, ela valerá na medida em que valerem suas demonstrações.
Mário Ferreira dos Santos – Filosofia Concreta [1959] p.13
No que pensamos ao considerarmos uma filosofia genuinamente “brasileira”?[9] A resposta fácil consiste em argüir que uma filosofia brasileira seria aquela que expressasse as “necessidades” do povo de onde emerge, da mesma forma que a filosofia grega expressou a forma mentis de seus desenvolvedores. Entretanto, a resposta, inicialmente convincente, revela-se superficial, uma vez que sofre de um vício de inversão que, no limite, faz da filosofia antes uma particularidade nacional do que uma busca da sabedoria capaz de transcender o tempo e o espaço.
Inicialmente, atribuímos aos gregos e à sua filosofia uma preferência por estruturas fixas que conferem ao conhecimento uma forma inteligível; todavia, isto não seria grego antes de ser real e, de fato, a forma do conhecer. A qualificação de uma filosofia como “brasileira”, “alemã” ou “grega” sempre carrega o fardo da especificação: teu nome advém de seu local de nascimento ou de sua essência? Uma filosofia brasileira deveria ser chamada assim por ter nascido em nosso meio ou ser concebida como “brasileira” – seja lá o isto queira dizer? Tais perguntas, algo insistentes no caractere “nacionalidade”, podem facilmente fazer com que nos esqueçamos que a idéia de filosofia visa antes amar a sabedoria do que a pátria natal.[10] Esquecer disto e focar antes em particularidades do que na universalidade, revela antes um egocentrismo cultural que, por sua esterilidade, jamais originará uma filosofia.[11]
A filosofia de Mário Ferreira dos Santos tem poucos elementos “nacionais” para além da matéria tratada em suas obras que tratam de temas sociais. Filósofos são sempre “filhos de seu tempo” e devem carregar o fardo de tratar os problemas que lhe aparecem; é, portanto, natural que tenha tratado temas referentes à vida no Brasil. Por outro lado, seu pensamento é essencialmente clássico, espécie de fusão entre escolasticismo e pitagorismo e, neste aspecto, universal. Mas tal característica advém de seu estudo com os jesuítas, educadores do Brasil e, portanto, é difícil encontrar algo mais “abrasileirado” do que o pensamento ferreiriano: enquanto critica o Brasil da metade do século XX em seu Invasão Vertical dos Bárbaros, dialoga com a tradição filosófica em A Sabedoria do Ser e do Nada. Eis o particular e o universal, o temporal e o eterno, em diálogo, numa pessoa só: filosofia strictu sensu, e não sociologia disfarçada.
Mário dedicou-se, essencialmente, à metafísica, matéria tão desacreditada quanto incompreendida numa época que o filósofo chamaria de negativista – diagnóstico agravado no caso brasileiro, uma vez que as escolas dominantes em seu tempo foram o positivismo e o materialismo (ainda que com arroubos de espiritualismo); basta que comparemos a obra ferreiriana aos escritos cientificistas da escola de Recife. Tal como a semente lançada na terra seca, não é surpreendente que os escritos ferreirianos tenham sido, de pouco em pouco, esquecidos.
Mário Ferreira dos Santos reúne, em sua obra, os três elementos destacados por Olavo de Carvalho como os remanescentes fundamentais de uma nação após sua extinção: língua, religião e alta cultura. Sua escrita é caracterizada por uma profusão de termos técnicos que, mesmo rigorosamente derivados do latim, foram confeccionados num português quase intraduzível, marcados pela peculiaridade da nossa língua. Sua dedicação aos estudos teológicos o possibilitou erigir escritos concordantes, em linhas gerais, com os grandes clássicos da matéria. Por fim, edificou um construto filosófico que, mesmo sob forma bruta, prova sua universalidade através da verdade emanada de suas teses.
Neste sentido, talvez a filosofia brasileira, caso exista,[12] conserve seu nome no pensamento ferreiriano, pois, devidamente desenvolvido, certamente perdurará para além do tempo de sua terra natal.
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Notas:
[1] Mário Ferreira dos Santos: Guia de estudo para sua obra p.18
[2] Filosofia e Cosmovisão p.168 ss. na edição de 1959.
[3] Filosofia e Cosmovisão p.182 ss. na edição de 1959.
[4] Mário Ferreira dos Santos: Guia de estudo para sua obra p.18
[5] Por se tratar de um autor muito querido, minhas afirmações podem soar impressionantes; ofereço, portanto, alguns exemplos. Em Lógica e Dialética, o filósofo ainda crê que a lógica seja uma “ciência do pensamento”, enquanto tal afirmação já fora derrubada pelo menos desde as Investigações Lógicas e do estabelecimento, na lógica moderna, da definição como disciplina das inferências válidas; nisto, Mário fica vulnerável a formas de psicologismo. O mesmo livro está restrito à teoria do silogismo e, nisto, atrasado pelo menos cinqüenta anos em relação a outras obras do mesmo tema; resulta, daqui, considerável defasagem em relação ao Introduction to Logic, de Irwing Copi, publicado em 1953. O livro Ontologia e Cosmologia parece uma colcha de retalhos desorganizada quando comparado a manuais de metafísica da mesma época, como o Tratado de Filosofia tomo III de Régis Jolivet – e poderíamos, aqui, utilizar qualquer outro manual tomista; utilizados Jolivet, pois Mário Ferreira dos Santos conheceu as obras do autor e, portanto, tinha noção de como organizar as matérias. É possível afirmar, sem exagero, que um estudante compreenderia gnoseologia melhor com o History of Philosophy do Copleston do que com os resumos [de teses clássicas] do Teoria do Conhecimento que são, novamente, como versões inferiores do Tratado de Filosofia de Régis Jolivet. Caso subíssemos ainda mais a régua da crítica, sentir-nos-íamos tentados a descartar, a filosofia ferreiriana, tudo o que não fosse original ou nevrálgico para a compreensão de seu pensamento, uma vez que os comentários tendem a ser duvidosos ou pouco rigorosos em comparação a equivalentes da mesma época. Novamente, minhas críticas não visam denegrir o autor mas exortar o estudante a trabalhar na sua obra até que ela alcance o padrão que Mário desejou para ela.
[6] Desafio aqueles que discordem desta afirmação a submeterem, à crítica acadêmica, um pedaço de qualquer dos livros do Mário como se fosse um artigo. Alguns podem objetar que “o que importa é a intenção” e que a forma do escrito de nada vale; todavia, devemos replicar que o conteúdo é atualizado pela forma e é por isto que tantos filósofos são incompreendidos. Não podemos nos contentar com o conteúdo bruto: é preciso lapidá-lo até que possa ser exibido no máximo de sua beleza. É por isso que exorto o trabalho sobre a filosofia de Mário Ferreira dos Santos
[7] Mário Ferreira dos Santos critica Husserl, em seu Métodos Lógicos e Dialéticos, por não ter atentado às contribuições dos filósofos medievais para a lógica formal.
[8] Sabemos que o filósofo lida com avanços medievais, feito a teoria da suplência; entretanto, isto não é suficiente.
[9] Ver João de Fernandes Teixeira, Filosofia Jabuticaba: Colonialidade e pensamento autoritário no Brasil p. 27-8: “Filosofia Brasileira significa uma reflexão com uma marca distintivamente nacional, que não poderia ser encontrada em nenhum outro lado do mundo. A filosofia do Brasil é uma tentativa de pensar a nossa identidade nacional por meio das lentes da reflexão filosófica. E, finalmente, a filosofia no Brasil significa reflexão original, embora sem necessariamente implicar uma ruptura pragmática em relação às escolas filosóficas europeias ou americanas.”
[10] Ver Adolpho Crippa, em sua Introdução a “As idéias Filosóficas no Brasil – Séculos XVIII e XIX”, p. 37: “[…] no terreno das idéias, a originalidade não depende nem da geografia nem da nacionalidade. Os problemas do espírito são universais, porque dizem respeito à realidade, ao destino e ao valor do homem e das coisas, idênticos em toda parte. O local geográfico do nascimento de um grande pensador é uma curiosidade inteiramente acidental, alheia ao valor da reflexão e do pensamento.” Sempre digo que uma filosofia preocupada demais com nacionalidade e os problemas de “dentro” é sociologia, e não filosofia.
[11] A referência é de O Futuro do Pensamento Brasileiro, mas há outra em “Cartas de um filósofo ao Papai Noel”, in O Imbecil Coletivo p. 409 [10ª Ed.] “[…] jamais criaremos uma tradição filosófica se não construirmos em cima dos alicerces já lançados, e se estivermos, em vez disso, tendo de recomeçar a todo instante em cima da última moda francesa ou americana”.
[12] Podemos defender a inexistência de uma “filosofia brasileira” citando, primeiramente, Crippa, in Ibid. p. 40 “…a Filosofia no Brasil terá que ser antes de mais nada Filosofia. Para ser Filosofia terá que, repensando os problemas que interessam ao homem ou enfrentando a situação do homem no mundo de hoje, partir das formas e das soluções já criadas. Sem nenhum complexo de inferioridade e em absoluta igualdade de condições com os pensadores e filósofos de qualquer tempo e de qualquer parte do mundo.” É interessante conferi a idéia de perspectivismo, advinda de Ortega y Gasset, que serviu de base para alguns da geração dos “forjadores”, feito José Gaos, Juan David García Bacca e Francisco Romero.
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IntroduçãoElenco aqui uma tentativa de guia de leitura para Aristóteles. Ele é baseado na leitura…
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Esboço de um guia de leitura para as obras de Platão.
Introdução Essa Imediatez, essa multiplicidade e essa força simbólica dos diálogos já visíveis nas…