O mais difícil em nossas relações com os outros é o que talvez pareça ser o mais simples: é reconhecer essa existência própria, que os faz semelhantes a nós e no entanto diferentes de nós, essa presença neles de uma individualidade única e insubstituível, de uma vocação que lhes pertence e que devemos ajudá-los a realizar, em vez de nos mostrarmos invejoso sou de querermos infleti-la para conformá-la à nossa. Para nós, essa é a primeira expressão da caridade, e talvez a última também.
O Erro de Narciso p.59
- Avisos preliminares
Louis Lavelle apresenta-se como uma figura singular no espírito de sua época, marcada pela corrosão do sentido, pela expansão do niilismo e pela difusão de um pensamento imanentista. Enquanto o mundo se inclinava à superficialidade e renegava qualquer fundamento sólido, Lavelle escolheu a via mais nobre: a metafísica.
O desespero, nutriente dos pensamentos mais sombrios, nasce da intuição de um vazio sob os pés, da percepção de uma realidade puramente movediça. Em termos platônicos, habitamos a tensão entre o ser e o não-ser — o entremeio —, mas o niilista, ao perder de vista o Ser, contempla apenas a vertigem do devir, vendo nele o emblema de um caos primevo, sempre renascente, que zomba de toda crença e nega à verdade qualquer sentido.
Diante desse cenário, o que resta à filosofia? Para muitos, ela sucumbiu; para outros, sobrevive apenas como um artifício prático — uma sabedoria resignada, destinada a atenuar o sofrimento humano. A filosofia de Lavelle, contudo, não se curva a tais reduções. Ela se ergue como testemunho de que o pensamento, longe de ser um lamento diante do absurdo, pode reencontrar sua vocação mais alta: a busca do fundamento, da ordem e da presença de Deus.
Ao homem angustiado, que contempla o abismo e se vê tentado a chamá-lo de lar, Lavelle não oferece ilusões, mas um caminho que dispensa tanto a glorificação do sofrimento quanto a aceitação do eterno retorno da banalidade. Ele aponta para a possibilidade de reconhecer, além do breu aparente, a presença de uma realidade estruturada, que nos convida ao Ser e nos propõe uma comunhão — sempre oferecida, embora nem sempre aceita. Propomos, neste espírito, um guia de leitura ao estudioso interessado em adentrar o pensamento daquele que foi, com justiça, denominado o Platão do século XX.
Quanto à sua obra, podemos acolher as palavras de Pierre Hadot, no prefácio de suas Lições ao Collège de France:
Lavelle expôs sua intuição filosófica […] em grandes tratados metafísicos, reunidos sob o título: La dialectique de l’éternel présent (1928-1951: De l’être, De l’acte, Du temps et de l’éternité, De l’âme humaine), e por outro lado, em obras mais curtas e mais acessíveis ao grande público. Os grandes tratados metafísicos são apresentados como uma série de teoremas, demonstrados ou comentados, que desenvolvem todas as implicações conceptuais da experiência viva que ele colocou no ponto de partida da filosofia. Tratam-se de livros austeros e de difícil acesso. Entretanto, a sua leitura atenta seria certamente um exercício filosófico muito frutuoso. As obras mais curtas e mais simples, La conscience de soi (1933) e L’erreur de Narcisse (1939), revelam uma faceta completamente diferente de Lavelle.
Sua obra pode ser dividida em três setores: (1) popular, composto por livros de cunho moral e resenhas; (2) intermediário, com textos introdutórios e comentários robustos; e (3) escolástico, voltado à metafísica. Nesse ponto, há alguma semelhança com a estrutura da obra de Schopenhauer, onde a arquitetura conceitual dos escritos sistemáticos sustenta os mais acessíveis. Contudo, ao contrário deste, Lavelle não trata seus textos populares como apêndices, mas como verdadeiros convites à sua filosofia. Essa dimensão introdutória é, na verdade, nitidamente platônica – linhagem à qual, com justiça, se pode filiá-lo.
É célebre, na Antiguidade, a disputa quanto à ordem de leitura dos escritos de Aristóteles: os platônicos iniciavam pelas obras éticas e concluíam com as metafísicas; os peripatéticos, pelo contrário, começavam pela lógica. Os primeiros argumentavam que não se pode filosofar sem antes uma metanoia — conversão da alma — e uma kátharsis — purificação — que a tornem apta à contemplação da verdade. É nesse mesmo sentido que as obras morais de Lavelle devem ser lidas: tratam de uma ascética filosófica cujo objetivo é preparar a alma do leitor a acolher docilmente a verdade; são, pois, exercícios espirituais.
E isso não é mera interpretação nossa. O próprio autor exige uma pureza de espírito como condição para a exposição de sua experiência fundamental — a experiência da presença do Ser. Em A Presença Total, escreve: “[…] mas é difícil isolá-la e considerá-la em sua pureza; para isso, é necessária uma certa inocência, um espírito livre de todo interesse e de toda preocupação particular.[1] E mais adiante: “Saber que ela existe não é realizá-la, não é atualizá-la e possuí-la.”[2] Pois, “uma vez que essa constatação seja feita, ela passa muito rapidamente: basta que ela permaneça implícita; e nós nos deixamos levar pelos fins limitados que a curiosidade e o desejo nos propõem. A nossa consciência se dispersa…”[3]
Assim, um dos grandes méritos de Lavelle foi recuperar esse aspecto da filosofia que coloca a moral como uma condição propriamente epistêmica:
“[…] a verdade só pode penetrar numa consciência que se mostre digna dela […] Ainda se pode dizer que aquele que se eleva mais alto é também aquele que conhecerá a luz mais clara e mais bela, e que aquele que esvaziar melhor a sua alma de todas as impurezas do amor-próprio terá mais espaço para recebê-la.”[4]
Em nada difere a filosofia, neste aspecto, da teologia, à qual Lavelle deve muito em suas obras morais:[5] ambas possuem a característica de serem vazias de sentido caso não provoquem uma modificação na vida interior do teórico, exigindo o homem por inteiro, e não somente parte dele. “O homem” — como coloca belamente Eckhart.
“[…] não deve se contentar com um Deus pensado, pois quando o pensamento passa, Deus também passa. Em vez disso, devemos ter um Deus essencial, que está muito acima dos pensamentos do homem e de toda criatura […] quem tem Deus dessa maneira, no ser, toma-o de forma divina e o descobre em todas as coisas, porque todas as coisas têm o sabor de Deus.”[6]
Quanta semelhança há entre isso e a concepção lavelliana do Ser? Também aqui não basta pensar o Ser: é preciso possuí-lo espiritualmente, vivificá-lo em cada gesto.
O que é A Consciência de Si, senão o itinerário de um eu que, ao descobrir a própria presença, reconhece também a presença do Ser — que é Deus? Como observou Le Senne, a dialética da consciência divide-se em três momentos:
- O conhecimento (cap. II–IV), que, ao contemplar a infinitude de Deus, percebe sua própria incapacidade de abarcá-Lo, reconhecendo a distância entre ambos;
- A vontade (cap. V–VII), que se descobre participante da criação — uma criatura criadora —, mas que, para possuir Deus, deve enfim abdicar de si mesma;
- E, por fim, o amor (cap. VIII–IX), em que o eu se dissolve em Deus por um consentimento dócil.
É nesse espírito que as obras morais de Lavelle devem ser lidas: como meditações que tornam a alma apta a filosofar.
Deste modo, vê-se claramente que mesmo o setor popular da obra lavelliana exige esforço interpretativo e, portanto, não é recomendado a leigos em filosofia — mas sim ao leitor já familiarizado com seu universo conceitual. Isso precisa ser esclarecido, pois Lavelle é com frequência — à semelhança de Schopenhauer — confundido com um autor “livre”; daí que seus livros sejam lidos irrestritamente e, por consequência, mal interpretados. Diga-se de passagem que Lavelle, embora inserido entre a elite intelectual francesa do século XX, viu-se reiteradamente instado a prestar esclarecimentos sobre suas obras, porque, detrás de um francês clássico e transparente, esconde-se uma complexidade refinada.
Dois exemplos ilustram esse ponto. O primeiro: Léon Brunschvicg, professor de Lavelle e membro da banca que avaliou sua tese na Sorbonne em 1921, solicitou-lhe uma exposição geral de sua doutrina filosófica, a fim de compreender melhor o conteúdo do trabalho — um feito notável, considerando que tanto Brunschvicg quanto Léon Robin integravam o alto escalão intelectual da época. O segundo: após a publicação do primeiro volume da Dialética do Eterno Presente, em 1928, a obra permaneceu incompreendida por boa parte do público, até que Lavelle se viu compelido a escrever A Presença Total, em 1934, onde apresenta a mesma doutrina “mas reduzida a uma linha mais simples e, por assim dizer, ideal, atenuada de todas as questões particulares que corriam o risco de dividir a atenção e de todas as discussões técnicas que a obrigavam a se prolongar.”[7]
Não se deve ignorar que Lavelle é herdeiro de uma tradição filosófica bimilenar, de modo que tal herança transborda em todas as suas obras — mesmo o postumamente [e indevidamente] publicado Regras da Vida Cotidiana. Nesse sentido, Lavelle deve ser lido com os mesmos cuidados hermenêuticos e preparatórios indicados no Conselhos ao Estudante de Filosofia.
- Bibliografia primária
Considerando a tripartição da obra lavelliana, a ordem de leitura sugerida neste guia não segue uma cronologia estrita, mas obedece a um critério misto: a gradação por dificuldade e a distribuição temática — conforme o modelo adotado no Guia de Leitura para Platão.
As obras morais e populares são, sem dúvida, as melhores portas de entrada para quem nunca leu Lavelle. Desde que Ciência, Estética e Metafísica seja reservado para o fim — por ser o mais áspero de sua classe —, a ordem dos demais títulos pode variar conforme o interesse e o preparo do leitor.
Neste guia fica pressuposta a cultura filosófica do leitor nos moldes explicados em Conselhos ao Estudante de Filosofia e O Grão de Mostarda. No entanto, considerando que Lavelle raramente figura num livro de história da filosofia, o leitor precisará contar, para sua instrução, apenas com introduções especializadas. Há, infelizmente, apenas uma em português:
- Tarcísio Padilha – A Ontologia Axiológica de Louis Lavelle
O leitor talvez estranhe a indicação do livro de Tarcísio Padilha em vez do Introdução à Filosofia de Louis Lavelle, de Olavo de Carvalho. O motivo é claro: trata-se de uma interpretação filosófica pessoal de temas lavellianos — e não de uma introdução acadêmica rigorosa, fundada na “filosofia pura” de Lavelle, com o mínimo de interferência teórica externa. Por essa razão, o livro figura na bibliografia secundária.
2.1. Bibliografia Introdutória
- Louis Lavelle – Regras da Vida Cotidiana
- Louis Lavelle – A Consciência de Si
- Louis Lavelle – O Erro de Narciso
- Louis Lavelle – O Mal e o Sofrimento
- Louis Lavelle – Ciência, Estética e Metafísica
2.2.Bibliografia Principal
- Louis Lavelle – Da Existência [De l’existence]
- Louis Lavelle – Introdução à Ontologia [Introduction à l’ontologie]
- Louis Lavelle – A Dialética do Mundo Sensível [La dialectique du monde sensible]
- Louis Lavelle – A percepção visual da profundidade [La perception visuelle de la profondeur]
- Louis Lavelle – A Presença Total e Ensaios Reunidos
- Louis Lavelle – A Intimidade Espiritual
- Louis Lavelle – Dialética do Eterno Presente Volume 1: O Ser
- Louis Lavelle – Dialética do Eterno Presente Volume 2: O Ato [De l’Acte]
- Louis Lavelle – Dialética do Eterno Presente Volume 3: O Tempo e a Eternidade [Du temps et de l’éternité]
- Louis Lavelle – Dialética do Eterno Presente Volume 4: O Amor Humano [De l’Âme Humaine]
- Louis Lavelle – Manual de Metodologia Dialética
- Louis Lavelle – A Existência e os Valores [L’Existence et la valeur]
- Louis Lavelle – Tratado dos Valores Tomo I – Teoria Geral dos Valores [Théorie générale de la valeur]
- Louis Lavelle – Tratado dos Valores Tomo II – O Sistema dos Diferentes Valores [Le système des différentes valeurs]
2.3. Outros
- Louis Lavelle – Quatro Santos
- Louis Lavelle – Cadernos de Guerra [Carnets de guerre, 1915-1918]
- Louis Lavelle – Panorama das Doutrinas Filosóficas [Panorama des doctrines philosophiques]
- Louis Lavelle – A Filosofia Francesa entre as duas Guerras [La philosophie française entre les deux guerres]
- Louis Lavelle – O Eu e seu Destino [Le Moi et son destin]
- Louis Lavelle – Moral e Religião [Morale et religion]
- Louis Lavelle – Psicologia e Espiritualidade [Psychologie et spiritualité]
- Louis Lavelle – A Palavra e a Escrita [La Parole et l’écriture]
- Bibliografia secundária
- Américo Pereira – Metafísica do Tempo na Obra de Louis Lavelle
- Américo Pereira – Louis Lavelle: na senda de uma milenar tradição metafísica.
- Américo Pereira – Ontologia e Práxis em Louis Lavelle
- Américo Pereira – A Relação entre o Acto e o Ser na Obra L´Acte de Louis Lavelle
- Américo Pereira – Fundamentação Ontológica da Ética na Obra de Louis Lavelle
- Américo Pereira – Da Ética em Louis Lavelle
- Bruno Fleck da Silva – A presença e a constituição do saber o contributo fenomenológico de Edmund Husserl e Louis Lavelle à educação
- Bruno Pinchard – Métamorphose de la Philosophia perennis selon Louis Lavelle
- Christiane d’Ainval – Une doctrine de la présence spirituelle: la philosophie de Louis Lavelle
- Emérita Quito – La notion de la liberté participée dans la philosophie de Louis Lavelle
- Gonzague Truc – De J.-P. Sartre à L. Lavelle, ou Désagrégation et réintégration
- Januário Torgal Ferreira – O Pensamento Antropológico de Louis Lavelle
- Jean École – La métaphysique de l’être dans la philosophie de Louis Lavelle
- Jean École – Louis Lavelle et le renouveau de la métaphysique de l’être au XXe siècle
- Jean École – Louis Lavelle et l’histoire des idées Index des auteurs auxquels il se réfère
- José Aparecido Pereira & Harlon Luan dos Santos – A desordem do amor‑próprio segundo o pensamento de Louis Lavelle.
- Olavo de Carvalho – Introdução à Filosofia de Louis Lavelle
- Paule Levert – L’être et le réel selon Louis Lavelle
- Sébastien Robert – La philosophie de Louis Lavelle: Liberté et participation
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Conteúdo lavelliano disponível em Helkein Filosofia:
- A Experiência Psicológica do Tempo
- A Liberdade como Termo Primeiro pt.I
- A Liberdade como Termo Primeiro pt.II [assinantes]
- Dialética do Mundo Sensível
- Epitome Metaphysicae Spiritualis
- Princípios Gerais de Toda Filosofia da Participação
- Ser e Ato: Parte I
- Ser e Ato: Parte II [assinantes]
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Notas:
[1] La Presénce Totale, p. 21
[2] Ibidem.
[3] Ibidem.
[4] L’Errour de Narcise, p. 116
[5][ Diz-nos Sciacca, aliás, que Lavelle leu quase toda mística e ascética cristã.
[6] Colóquios de Instrução n. 5
[7] Essa introdução tornou-se o Prefácio à Dialética do Mundo Sensível, a qual já traduzimos.