O cultivo (cultura) das faculdades naturais pessoais (as faculdades do espírito, da alma e do corpo), como meio para toda a espécie de fins possíveis, é um dever do homem para consigo próprio.
Immanuel Kant – Metafísica dos Costumes §19 445
- Avisos preliminares
Immanuel Kant foi um autor razoavelmente complicado; ele mesmo sabia disso e, daí, seu desabafo na introdução da segunda edição da Crítica da Razão Pura.[1] No entanto, um texto difícil não precisa ser confuso ou incompreensível; a incompreensibilidade na expressão é o inverso do almejado pelo verdadeiro filósofo, pois o objetivo deste deve ser expor claramente a verdade – quanto à obscuridade, esta pertence ao pseudo-místico. Nisto, nos perguntamos: Kant é mesmo difícil de entender?
O filósofo de Königsberg comenta, na Crítica da Razão Pura, que sua exposição deve ser escolástica [acadêmica],[2] pois, sob forma popular, o conteúdo visado seria distorcido, algo também mencionado na Fundamentação da Metafísica dos Costumes – afinal, uma exposição para todos os públicos só pode ser conduzida por quem meditou um problema até as últimas conseqüências.[3] Disto colhemos o seguinte: Kant é um filósofo cujo trabalho visa seus pares, i.e., filósofos e eruditos em geral, não sendo, portanto, um autor voltado para leigos. No entanto, Kant costuma ser recomendado muito precisamente para leigos e curiosos em geral; então temos um problema de público comparável a presentearmos uma pessoa leiga em matemática com um livro de cálculo – e pedir, no caso de cursos superiores, que ela faça uma prova daquilo. Deste erro primordial advêm todas as conseqüências esperadas: dificuldade em identificar o objeto descrito pelo autor, seguir sua linha de raciocínio, compreender o problema a ser resolvido, o dito com tantos termos técnicos e, daí, uma boa série de distorções.
Por outro lado, uma vez posto em seu devido lugar, i.e., sendo estudado por pessoas cuja cultura filosófica jaz preenchida o suficiente pelo conteúdo ministrado por filósofos anteriores, Kant é relativamente claro e até simples compreensão, a depender do esforço empregado. As linhas gerais de sua filosofia podem ser bem fixadas mediante o estudo atento de suas fontes primárias e o comentário de alguns poucos especialistas. No entanto, este tema exige algum cuidado.
Devido à sua natureza restrita, o texto kantiano necessita de comentadores seletos e edições críticas. É muito perigoso e também fácil encontrar comentários duvidosos sobre Kant, comumente advindos de outros filósofos (a maioria de escolas rivais), onde seus conceitos ficam apreendidos apenas superficialmente ou sob a ótica e um quadro teórico estranho, e o mesmo vale para seus livros que, feito os de Platão, Aristóteles e outros, não são confiáveis senão quando bem comentados e atrelados a edições críticas – este segundo ponto é motivo de atenção no meio acadêmico brasileiro devido à única edição da Crítica da Razão Pura disponível por muito tempo ter sido uma versão incompleta. Portanto, a preferência deve ser dada a especialistas e comentadores consagrados em conjunto com edições completas e marcadas conforme a Kant´s Gesammelte Schriffen – e, muito preferencialmente, no caso da Crítica da Razão Pura, contendo tanto a versão A quanto a B.
Devemos atentar, por fim, às fases da obra kantiana, normalmente distintas em duas: pré-crítica e crítica. Grosso modo, na primeira, Kant comporta-se comumente como um racionalista semelhante a Leibniz; na segunda, feito o carrasco do racionalismo e do empirismo, submetendo todas as suas concepções a um novo sistema. Portanto, o teor dos filosofemas kantianos deve ser considerado conforme a fase de seu pensamento, pois grande parte das teses não é intercambiável.
Quanto à trilogia crítica, composta pela Crítica da Razão Pura, Crítica da Razão Prática e Crítica da Faculdade do Juízo, devemos considerá-las como apenas um sistema ditado de três aspectos cujas características são expostas em livros correspondentes. Nisto, a leitura de apenas um não esgota o pensamento kantiano; isto deve ser bem estabelecido, pois teses aparentemente impugnadas na primeira crítica, voltada à razão especulativa em sua própria estrutura, retornam sob nova forma na segunda crítica, onde são considerados elementos ausentes no “isolamento metodológico” da primeira. Nisto, é prudente “avaliar” o próprio conhecimento do corpus kantiano apenas após a leitura das três críticas, pois elas fornecem o quadro teórico para todas as obras posteriores até a incompleta Opus Postumum.
- Bibliografia Primária
A crítica é antes a necessária preparação para o estabelecimento de uma metafísica sólida fundada rigorosamente como ciência, que há-de desenvolver-se de maneira necessariamente dogmática e estritamente sistemática, por conseguinte escolástica (e não popular).
Crítica da Razão Pura B XXXVI
A bibliografia recomendada neste guia segue uma ordem semi-cronológica; não é totalmente cronológica, pois os escritos pré-críticos não são obrigatórios ao interessado “comum” em Kant, embora sejam para o desejoso de uma especialização; mas é cronológica na disposição das obras, cuja organização acompanha a evolução do pensamento kantiano mesmo. Não consideramos um ordenamento “por dificuldade”, pois o estudo de Kant depende antes do estabelecimento de um quadro teórico inteligível do que da leitura de “obras mais fáceis” – algo em verdade inútil para o estudante cuja cultura filosófica o qualifica para ler Kant, pois este já foi suficientemente “treinado” por textos complicados e, neste ponto, já não se é mais leigo há muito tempo.
Neste guia fica pressuposta a leitura do capítulo de Kant na História da Filosofia de Giovanni Reale & Dario Antiseri e/ou na Uma História da Filosofia de Frederick Copleston; nisto, o leitor já deve conhecer as linhas gerais da filosofia kantiana e sua posição histórica. Cumpre, portanto, conferir alguma introdução especializada. Há duas principais introduções a Kant disponíveis; considero a primeira muito superior à segunda, mas não há prejuízo para o desejoso de ler ambas.
- Mário Ariel González Porta – O Pensamento de Immanuel Kant
- Will Dudley & Kristina Engelhard – Immanuel Kant: Conceitos fundamentais
Recomendamos, como primeira fonte primária, a leitura do Manual dos Cursos de Lógica Geral por este conter extensas e valiosíssimas explicações acerca da teoria kantiana do juízo, esta servindo de estopim para a principal pergunta da Crítica da Razão Pura: como são possíveis os juízos sintéticos puros a priori? Recomenda-se ainda a leitura da introdução e do capítulo 1 do Cambridge Companion do Kant para complementar o visto nas introduções indicadas. Aqui, considerando o interesse do estudante comum e a necessidade do pretendente a especialista, é possível ler os Escritos Pré-Críticos. Isto feito, indicamos a seguinte ordem:
- Immanuel Kant – Crítica da Razão Pura
- Immanuel Kant – Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza
- Immanuel Kant – Fundamentação da Metafísica dos Costumes
- Immanuel Kant – Crítica da Razão Prática
- Immanuel Kant – Crítica da Faculdade do Juízo
- Immanuel Kant – Metafísica dos Costumes
Justificamos a inserção de dois livros entre as três críticas deste modo: o Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza “completa” exposições da Crítica da Razão Pura em especial no referente à compreensão do papel da estética transcendental; inúmeros erros advém da ignorância do papel do espaço relativo enquanto condicionado pelo espaço absoluto, e isto é facilmente sanado através da leitura das primeiras páginas deste livro. A Fundamentação da Metafísica dos Costumes “prepara” o caminho para a Crítica da Razão Prática, estabelecendo questões cujo surgimento ocorre apenas na segunda crítica. Daí, resta apenas a Crítica da Faculdade do Juízo e, então, a Metafísica dos Costumes, completando o “grosso” do corpus kantiano.
O estudante não precisa mais, a partir daqui, de ajuda para ler Kant – na verdade, o correto seria ele ser capaz de pesquisar sozinho muito antes de chegar nele –, então restam apenas as recomendações de comentadores. Listo então, para fins de completude, o restante das obras de Kant disponíveis em português.
- Immanuel Kant – Prolegômenos a toda metafísica futura que se apresente como ciência
- Immanuel Kant – Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita
- Immanuel Kant – Lições sobre a Doutrina Filosófica da Religião
- Immanuel Kant – Lições de Ética
- Immanuel Kant – Lições de Metafísica
- Immanuel Kant – Sobre a Pedagogia
- Immanuel Kant – Começo Conjectural da História Humana
- Immanuel Kant – A Religião dentro dos limites da simples razão
- Immanuel Kant – A Paz Perpétua
- Immanuel Kant – O Conflito das Faculdades
- Immanuel Kant – Os Progressos da Metafísica
- Immanuel Kant – Antropologia do ponto de vista pragmático
- Immanuel Kant – Opus Postumum
- Bibliografia Secundária
Esclarecimento (Aufklärung) significa a saída do homem de sua minoridade, pela qual ele próprio é responsável. A minoridade é a incapacidade de se servir de seu próprio entendimento sem a tutela de um outro. É a si próprio que se deve atribuir essa minoridade, uma vez que ela não resulta da falta de entendimento, mas da falta de resolução e de coragem necessárias para utilizar seu entendimento sem a tutela de outro. Sapere aude! Tenha a coragem de te servir de teu próprio entendimento, tal é portanto a divisa do Esclarecimento.
Immanuel Kant – Resposta à pergunta: O que é o Esclarecimento? (tradução de Luis Paulo Rouanet)
A seleta de comentários prioriza, aqui, autores cujos livros estejam disponíveis em português. No entanto, devido à falta de outros, muito essenciais, ficamos forçados a recomendar bibliografia em língua estrangeira. Recordemos, ainda, que Kant é muitíssimo comentado, sendo irreal propor uma bibliografia exaustiva; então listamos apenas o necessário – e um pouco além disto – à boa compreensão do filósofo.
- Ottfried Höffe – Kant
- Ottfried Höffe – Kant: Crítica da Razão Pura, os fundamentos da filosofia moderna
- Ernst Cassirer – Kant: Vida e Doutrina
- Paul Guyer (Org.) – Kant (Cambridge Companion)
- Joseph Maréchal – O Ponto de Partida da Metafísica vol. III: A Crítica de Kant
- Howard Caygill – Dicionário: Kant
- Béatrice Longuenesse – Kant e o Poder de Julgar
- Henry E. Allison – O Idealismo Transcendental de Kant: Interpretação e Defesa
- Sally Sedgwick – Fundamentação da Metafísica dos Costumes: Uma Chave de Leitura
- Karl Ameriks – Kant’s Theory of Mind: An Analysis of the Paralogisms of Pure Reason
- Karl Ameriks – Kant and the Fate of Autonomy: Problems in the Appropriation of the Critical Philosophy
- Karl Ameriks – Interpreting Kant’s Critiques
- Lewis White Beck – A Commentary on Kant´s Critique of Practical Reason
- Paul Guyer – Kant´s Impact on Moral Philosophy
- Paul Guyer – Kant and the Claims of Knowledge
- Gerold Prauss – Kant und das Problem der Dinge an sich
- Marcus Willaschek, Jürgen Stolzenberg, Georg Mohr & Stefano Bacin – Kant-Lexikon in drei Bänden
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Notas
[1] “No que se refere a esta segunda edição não quis, como é natural, deixar passar o ensejo de obviar quanto possível às dificuldades e obscuridades que podem ter dado origem a interpretações errôneas em que caíram homens argutos ao julgar este livro, talvez em parte por minha culpa.” Crítica da Razão Pura BXXXVII
[2] “Contudo, bem depressa vi a grandeza da minha tarefa e a multidão de objetos de que tinha de me ocupar e, dando conta de que, expostos de uma forma seca e puramente escolástica, esses objetos dariam extensão suficiente à minha obra, não me pareceu conveniente torná-la ainda maior com exemplos e explicações, apenas necessários de um ponto de vista popular; tanto mais que esta obra não podia acomodar-se ao grande público e aqueles que são cultores da ciência não necessitam tanto que se lhes facilite a leitura, coisa sempre agradável, mas que, neste caso, poderia desviar-nos um pouco do nosso fim em vista.” Crítica da Razão Pura A XVIII
[3] “Este facto de descer até aos conceitos populares é sem dúvida muito louvável, contanto que se tenha começado por subir até aos princípios da razão pura e se tenha alcançado plena satisfação neste ponto; isto significaria primeiro o fundamento da doutrina // dos costumes na metafísica, para depois, uma vez ela firmada solidamente, a tornar acessível pela popularidade. Mas seria extremamente absurdo querer condescender com esta logo no começo da investigação de que depende toda a exactidão dos princípios. E não é só que este método não pode pretender jamais alcançar o mérito raríssimo de uma verdadeira popularidade filosófica, pois não é habilidade nenhuma ser compreensível a todos quando se desistiu de todo o exame em profundidade; assim esse método traz à luz um asqueroso mistifório de observações enfeixadas a troixe-moixe.” Fundamentação da Metafísica dos Costumes BA 31
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