Para quem quiser conhecer bem a minha filosofia, de modo geral faço a exigência de que leia cada uma das linhas que publiquei. Pois não sou um escritor prolixo, nem um fabricante de compêndios, nem um assalariado, nem alguém que com seus escritos procura a aprovação de um ministro, numa palavra, não sou um autor cuja pena encontra-se sob a influência de fins pessoais: não me empenho senão pela verdade, e escrevo, como os antigos escreviam, com a única intenção de preservar os meus pensamentos, para que um dia beneficiem aqueles que saberão como meditá-los e apreciá-los.
Arthur Schopenhauer – O Mundo como Vontade e Representação Tomo II p.553-4
- Introdução e avisos preliminares
Arthur Schopenhauer é um autor multifacetado e multi-rotulado: filósofo idealista crítico, filodoxo, adulto frustrado, velho sábio, misógino, moralista, pessimista, estóico, gênio da prosa filosófica, simplista e muitos outros adjetivos igualmente opostos, refletindo, de certa forma, a complexidade de uma personalidade completa. Os grandes homens sempre foram difíceis de classificar; é possível notar a totalidade de transparência da água na profundidade de um pires, mas não num lago suficientemente profundo – analogia especialmente feliz, pois a obscuridade acompanha a profundeza das águas. Nisto, temos o filósofo como uma personalidade dialética e, neste sentido, normal; nada há de estranho num erudito possuir muitos aspectos sintetizados numa unidade algo curiosa.
Schopenhauer escreveu, comparado a seus pares, pouco, e sua obra pode ser dividida em, essencialmente, dois ramos: acadêmico, reunindo suas aulas e escritos filosóficos em sentido estrito, e popular, com os textos componentes do Parerga und Paralipomena. Os primeiros reúnem seu quadro teórico e tratamento de questões filosóficas clássicas referentes, principalmente, a quatro tópicos: epistemologia, metafísica, estética e ética – esta é, inclusive, a ordem dos capítulos de O Mundo como Vontade e como Representação enquanto ordenados pelas figuras do princípio de razão suficiente expostos em seu A Quadrúplice Raiz.[1] Já os segundos reúnem sua obra ensaística e contempla questões variadas e acessórias num estilo eminentemente popular e, daí, seu sucesso comercial ainda durante a vida do filósofo. Nisto, temos um caso interessante, onde os escritos populares, cujo sentido eminentemente depende dos acadêmicos, foram muito mais lidos do que os textos voltados à filosofia em sentido estrito. Daí fica simples compreender como Schopenhauer foi mal interpretado devido a certo eclipsamento do filósofo pelo ensaísta – algo ocorrido também com um filósofo brasileiro.
Portanto, este guia não seguirá uma ordem de dificuldade, cuja idéia nos forçaria a colocar os escritos populares antes dos acadêmicos e, nisto, postular como principal o considerado apenas acessório por seu autor. A regra será, aqui, cronológica, pois Schopenhauer mesmo estabeleceu a estrutura interna de seus escritos desta forma, citando-os retroativamente sempre que possível para evitar repetir-se. Assim, por exemplo, exige-se, para a leitura profunda de O Mundo, a leitura prévia do Quadrúplice Raiz, pois aquele contém os fundamentos de seu sistema. Respeitaremos, assim, a maneira de ser lido desejada pelo autor, em vez de fornecer uma falsa facilidade responsável por sua distorção e cuja utilidade, para o leitor avançado – e o deste filósofo não pode não o ser – é nula.[2]
- Bibliografia Primária
Apenas a consciência é dada imediatamente, por isso o fundamento da filosofia está limitado aos fatos da consciência, isto é, a filosofia é essencialmente idealista.
Arthur Schopenhauer – O Mundo como Vontade e como Representação Tomo II II 6
Schopenhauer desejou, para sua compreensão integral, ser lido até a última linha; eis, portanto, o destino do desejoso de especializar-se neste filósofo. No entanto, por ser um autor que escreveu pouco e claramente, ler sua obra completa é relativamente simples. Os volumes mais ásperos são precisamente os iniciais, Quadrúplice Raiz e o Mundo, com os outros sendo praticamente deduções e resumos destes e, encerrados os textos filosóficos, resta pouco para ler. No entanto, o interessado no “básico” de sua obra não necessita ler o tomo II de O Mundo ou os escritos populares.
Quanto às suas edições, feito ocorrido com Aristóteles, Platão, Kant e outros, urge preferir edições traduzidas do original e com as marcações críticas correspondentes; neste caso, a Arthur Schopenhauer Sämtliche Werke. Mesmo sendo um filósofo claro, não é bom preterir precisões feito a distinção entre objetidade e objetividade, entre outras minúcias.
Neste guia fica pressuposta a cultura filosófica do leitor nos moldes do explicado em Conselhos ao Estudante de Filosofia e O Grão de Mostarda. Nisto, considerando que o interessado leu o capítulo de Schopenhauer em História da Filosofia de Giovanni Reale & Dario Antiseri e/ou na Uma História da Filosofia de Frederick Copleston, resta recomendar algumas introduções especializadas. Indicamos, aqui, estas, ambas mais ou menos equivalentes em conteúdo:
- Jair Barboza – Schopenhauer: A Decifração do Enigma do Mundo
- Adolphe Bossert – Introdução a Schopenhauer
Quanto às fontes primárias, a recomendação do Quadrúplice Raiz em primeiro lugar é inevitável devido a não apenas ter sido pensado como fundamento de um sistema como por ter recebido suplementos de maneira a servir ainda melhor como introdução ao restante da obra. O Sobre a Visão e as Cores, exame crítico da Teoria das Cores de Goethe e da de Newton num sistema próprio, pode ser visto como curiosidade e não é essencial para o interessado no “básico” deste filósofo, situação totalmente diversa de O Mundo, obra capital e de leitura integral incontornável – no entanto, o Tomo II, composto essencialmente de suplementos ao Tomo I, pode ser “negligenciado”. O Sobre a Vontade na Natureza é mero acessório do O Mundo, e pode ser negligenciado pelo estudante interessado apenas no essencial. Os textos morais,[3] essencialmente dependentes da estrutura apresentada nas obras anteriores, encerram os textos acadêmicos.
2.1. Acadêmicos I – livros
- Arthur Schopenhauer – Sobre a Quadrúplice Raiz do Princípio da Razão Suficiente (escrito em 1813 e suplementado em 1847)
- Arthur Schopenhauer – Sobre a Visão e as Cores
- Arthur Schopenhauer – O Mundo como Vontade e como Representação Tomo I
- Arthur Schopenhauer – Sobre a Vontade na Natureza
- Arthur Schopenhauer – O Mundo como Vontade e como Representação Tomo II
- Arthur Schopenhauer – Os Dois Problemas Fundamentais da Ética (inclui Sobre a Liberdade da Vontade e Sobre o Fundamento da Moral)
2.2. Acadêmicos II – Preleções
Preleções das aulas ministradas em Berlim em 1820.
- Arthur Schopenhauer – Metafísica da Natureza
- Arthur Schopenhauer – Metafísica do Belo
- Arthur Schopenhauer – Metafísica dos Costumes
2.3. Populares
Quanto às obras ruins, nunca se lerá pouco quando se trata delas; quanto às boas, nunca elas serão lidas com freqüência excessiva. Livros ruins são veneno intelectual, capaz de fazer definhar o espírito.
Para ler o que é bom uma condição é não ler o que é ruim, pois a vida é curta, o tempo e a energia são limitados.
O Parerga, livro continente dos escritos populares de Schopenhauer, não possui versão integral em português; as únicas disponíveis estão em alemão e inglês. No entanto, é possível “montá-lo”, em sua maior parte, coletando diversas edições esparsas, comumente sob o nome de “A Arte de…”. Tais livros não possuem ordem de leitura alguma e podem ser consultados a depender do gosto do leitor. Os classificaremos conforme a ordem dos capítulos da obra original.
2.3.1. Arthur Schopenhauer – Parerga und Paralipomena Erster Band
- Esboço de uma História do Ideal e do Real
- Fragmentos de História da Filosofia
- Sobre a Filosofia Universitária
- Sobre a Aparente Intencionalidade no destino do Indivíduo
- Ensaio sobre ver Fantasmas e seu Sentido
- Aforismos para a Sabedoria de Vida
2.3.2. Arthur Schopenhauer – Parerga und Paralipomena Zweiter Band
- Sobre a filosofia e seu método
- Sobre lógica e a dialética
- Pensamentos acerca do intelecto em geral e em todas as suas relações
- Algumas considerações sobre a oposição entre a coisa-em-si e o fenômeno
- Algumas palavras sobre o panteísmo
- Sobre filosofia e ciência da natureza
- Sobre a teoria das cores
- Sobre a ética
- Sobre a jurisprudência e a política
- Da doutrina da indestrutibilidade de nosso verdadeiro “eu” pela morte.
- Suplemento à doutrina do nada e da existência
- Suplemento à doutrina do sofrimento do mundo
- Sobre o suicídio
- Suplemento à doutrina da afirmação e da negação da vida
- Sobre a religião
- Temas sobre a literatura sânscrita
- Considerações arqueológicas
- Considerações mitológicas
- Sobre a metafísica do belo e a estética
- Sobre o juízo, a crítica, o aplauso e a fama
- Sobre a erudição e os eruditos
- Pensar por si
- Sobre a escrita e o estilo
- Sobre os livros e a leitura
- Sobre a linguagem e as palavras
- Observações psicológicas
- Sobre as mulheres
- Sobre a educação
- Sobre a fisionomia
- Sobre os ruídos e o som
- Parábolas, fábulas, símiles e versos
- Bibliografia Secundária
Uma consciência sem objeto não é consciência alguma. Um sujeito que pensa tem conceitos para seu objeto, um que intui empiricamente tem objetos dotados de qualidades correspondentes à sua organização.
Arthur Schopenhauer – O Mundo como Vontade e como Representação Tomo II II 17
A seleta de comentários prioriza, aqui, autores cujos livros estejam disponíveis em português e, muito felizmente, há comentários o suficiente para informar o estudante, sendo que o único livro incontornável foi o The Philosophy of Schopenhauer, de Bryan Magee.
- Alain Roger – Vocabulário de Schopenhauer
- Eduardo Ramos Coimbra – Schopenhauer e os conhecimentos intuitivo e abstrato
- Eli Vagner Francisco Rodrigues – Schopenhauer, Niilismo e Redenção
- Georg Simmel – Schopenhauer e Nietzsche
- Jair Barboza – Infinitude subjetiva e estética: arte em Schelling e Schopenhauer
- Jair Barboza – O Náufrago da existência: Machado de Assis e Arthur Schopenhauer
- Jean Lefranc – Compreender Schopenhauer
- Fábio Luiz de Almeida Mesquita – Schopenhauer e a filosofia indiana
- Felipe Durante – Entre heresias e atualidades de Arthur Schopenhauer
- Maria Lúcia Cacciola – Schopenhauer e a questão do dogmatismo
- Michael Tanner – Schopenhauer: Metafísica e Arte
- Rüdiger Safranski – Schopenhauer e os Anos Selvagens da Filosofia
- Vilmar Debona – A outra face do pessimismo
- Bryan Magee – The Philosophy of Schopenhauer
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Notas:
[1] Schopenhauer comenta em todos os seus livros que o Quadrúplice Raiz deve ser lido como iniciação a seu pensamento; e isso é correto, pois a divisão quadrúplice do princípio de razão suficiente em princípio do devir, do conhecer, do ser e do agente perpassa toda a sua obra e regra até mesmo a ordem dos capítulos, normalmente organizados por tema, a saber: epistemologia, metafísica, estética e ética, cada um regido por uma figura do princípio e sempre na mesma ordem. Sendo assim, é absolutamente impossível entender Schopenhauer sem ter entendido o que ele ensina no Quadrúplice Raiz. A mesma “sombra do princípio” é percebida na ordem dos livros de O Mundo como Vontade e como Representação; ali lemos: Livro I: o mundo como representação [epistemologia]; Livro II: o mundo como vontade [metafísica]; Livro III: o mundo como representação [estética]; Livro IV: o mundo como vontade [ética].
[2] É inútil e até desrespeitoso duvidar da capacidade do estudante com praticamente dois mil anos de história da filosofia na cabeça.
[3] Sobre a Liberdade da Vontade foi o ensaio vencedor de um concurso realizado pela Real Sociedade da Dinamarca que pedia pela solução de alguns problemas sobre o livre arbítrio. O filósofo ficou tão feliz que participou de outro concurso de tema parecido com seu Sobre o Fundamento da Moral, mas não venceu por ter feito troça de Hegel. Talvez isso tenha deixado Schopenhauer “ainda mais puto” com seu rival, dado que encontramos críticas — por vezes virulentas mas absurdamente engraçadas — em quase todos os seus livros posteriores.
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