Por A.E. Taylor
Tradução de Gabriel Marvin
Notas e comentários de Helkein Filosofia
O Górgias é uma obra muito mais longa que todas até então analisadas por nós, sendo também — e sempre o foi — uma das favoritas de todos os amantes da grande literatura ética, isto por nos expor a moralidade socrática tão repleta de sentimentos apaixonados e expressa com uma eloquência muito comovente. No entanto, o fervor moral e o esplendor do diálogo não devem nos cegar, como o fizeram à maioria dos escritores dedicados a cronologia platônica, perante certos indícios óbvios de que é uma obra da juventude do filósofo, talvez anterior à composição de outros diálogos dos quais já nos ocupamos.
Poderíamos inferi-lo pelo simples fato de Platão ter adotado a forma do diálogo direto para uma obra tão importante, perdendo, assim, a oportunidade de nos descrever a personalidade de Górgias para compará-la com o elaborado em Protágoras. Não posso também deixar de achá-lo, apesar de todo o seu esplendor moral, um diálogo excessivamente longo: “arrasta-se”. O Platão do Protágoras ou da República, parece-me, teria produzido o mesmo efeito com menos dispêndio de palavras; há uma dispersão no nosso diálogo dedurando a mão do aprendiz, neste caso, Platão. Isto me incentiva a ver, feito tantos outros, o aperfeiçoamento ético-doutrinal do Protágoras para o Górgias como um erro a priori. Veremos, quando tratarmos do Protágoras, que a doutrina ética destes diálogos é idêntica, sendo inconcebível para mim a possibilidade de leitores literariamente sensíveis duvidarem de qual dos dois é o produto dum domínio mais maduro da arte dramática. Não me parece seguro arriscar qualquer conjectura quanto à data de composição da obra para além de sua antigüidade, — afirmação comum — provavelmente datada após a morte de Sócrates[1]
É particularmente difícil determinar a data do diálogo. Já se supôs, algumas vezes, por uma referência de Sócrates aos tempos de membro do βουλή, responsável de presidir às reuniões dos εκκλησιά, quando provocou grande alvoroço e gargalhadas por sua ignorância das formalidades frente a submissão de uma questão (Gorg. 473e); em consonância, se diz que tal situação teria de ver com os acontecimentos do julgamento dos generais em Arginusas, onde sabemos, tanto por Platão como por Xenofonte, que Sócrates era, de fato, um dos presidentes da Assembléia.
Se esta interpretação for verdadeira, o diálogo ocorreria algures no último ano da guerra do Peloponeso, quando Atenas estava, por um fio, lutando por sua sobrevivência. No entanto, o diálogo não sugere tal situação; pelo contrário, parece retratar certa normalidade na vida política e comercial da cidade. Além disso, segundo Burnet, a democracia não estava para brincadeiras por ocasião do julgamento dos generais e, por isso, parece-nos forçado supôr que a referência remete a um incidente desconhecido, ocorrido anteriormente, quando Sócrates era membro do βουλή. Em contrapartida, as frases iniciais do diálogo indicam um Sócrates alheio a Górgias e a sua profissão, levando a crer uma primeira visita do sofista em Atenas. E nada parece obstar a mesma afirmação feita por Diodoro Sículo, segundo o qual Górgias teria feito esta visita enquanto membro da embaixada de sua cidade natal, Leontini, no ano 427, data conforme os outros indícios da obra, como a referência à “recente” morte de Péricles[2] e às afirmações acerca do poder quase despótico do demagogo ateniense[3] — coincidindo perfeitamente com o momento que Péricles teve o seu lugar ocupado por Cléon e homens da mesma corja —, talvez a ocasião não seja muito anterior, pois se pode aludir, como uma beldade real, ao formoso Demos, filho de Pirilampo, padrasto de Platão, embora neste ponto possamos ter um pequeno anacronismo por causa da menção feita por Aristófanes ao desvario apaixonado por Demos nas Vespas, obra de 422 a.C[4].
Em contrapartida, mais uma vez, encontra-se a Antíope de Eurípides citada como uma obra conhecida e popular[5], cuja data da tragédia remonta a 408 a.C. A carreira de Arquelau da Macedônia, por sua vez, é objeto de discussão[6], e comumente inferiu-se com base em Tucídides que seu reinado não começou antes de 414-413, embora sucessões disputadas e a existência simultânea de vários pretendentes à coroa fossem tão comuns na Macedônia a ponto de não podermos nos amparar com muita confiança nesses dados. É lamentável não termos informações externas quanto a Cálicles de Acarnes, apresentado no diálogo como um jovem culto e ambicioso recentemente ingresso na vida política, e a mera menção de seu nome, disposto por Platão, é suficiente para fazer crer tratar-se de um homem real, e não, como foi sugerido, um pseudônimo. Não devemos nos admirar, se ele realmente tentou agir de acordo com as teorias nietzschianas atribuídas a si no diálogo, que nenhum registro de sua carreira tenha sobrevivido. Entre os nomes citados por Platão como seus companheiros imediatos, reconhecemos alguns proeminentes na segunda metade da grande guerra mas, evidentemente, as suas juventudes pertenceriam à primeira metade. De modo geral, os argumentos a favor duma dramática data inicial parecem preponderar, embora as referências a Antíope e à usurpação da coroa macedônica por Arquelau, em especial esta segunda, criem um pouco de contestação.[7]
As personagens do diálogo, além de Sócrates, são quatro: Górgias, o famoso “orador” de Leontini, a quem os famigerados artifícios retóricos — na tentativa de empombar e lustrar a linguagem — representam o primeiro estágio no desenvolvimento de um estilo de prosa literária elevada acima do coloquialismo ou da narração direta de fatos e, ainda assim, permanecer proseado; Pólo de Agrigento, seu entusiasmado discípulo e admirador; Cálicles de Acarnes, de quem sabemos apenas o convenientemente descrito por Platão, e Querefonte, o companheiro magro de Sócrates, aparentemente muito supersticioso e impetuoso, considerando por Aristófanes tão útil quanto uma bunda[8]. O local exato não é indicado e, aparentemente, não é na casa de Cálicles, onde jaz hospedado o ilustre visitante, mas em algum lugar público onde Górgias exibia seus dons[9].
Deve-se distinguir, cuidadosamente, os temas aparente e real nesta conversa. Aparentemente, a questão proposta é a nova técnica introduzida por Górgias em Atenas, a arte do discurso convincente; os pontos a serem decididos são, se ela é realmente uma “arte” e, se for, se é, como Górgias afirma, a rainha de todas as outras “artes”. Mas, para descobrir o verdadeiro objeto da obra, precisamos examinar cuidadosamente a construção geral do argumento e, particularmente, o final de toda a composição. Se fizermos isso, descobriremos que o diálogo realmente consiste em três conversas sucessivas de Sócrates com um único interlocutor; ele tem, por assim dizer, três cenas, cada uma com dois “atores”. Na primeira conversa entre Sócrates e Górgias, o tópico é realmente o caráter e o valor da arte do “retórico”; na segunda, entre Sócrates e Pólo, descobrimos a dependência de convicções éticas, nitidamente contrastantes, acerca da verdadeira felicidade do homem para as considerações antagônicas quanto ao valor da retórica. Na conversa final com Cálicles, onde o tom do diálogo atinge seu nível mais elevado, todas as questões secundárias caíram completamente em segundo plano e somos deixados com o conflito direto e absoluto entre duas teorias concorrentes da vida, cada uma representada por uma personalidade marcante.[10]
O verdadeiro objeto da obra como um todo se revela assim: a contraposição duma vida típica de devoção ao bem supra-pessoal à teoria e prática típicas da “vontade de poder” em sua máxima expressão.[11] Esta última nos será exposta por um campeão completamente capaz, inteligente e de modo algum ignóbil — como o é Cálicles — bem como a prática dela decorrente, encarnada no imperialismo pericleano, se apresentam sob a ótica de um Sócrates; e, por outro lado, o modo como as convicções e a trajetória de um Sócrates se revelam ao adorador da “força”. E, quando tivermos perscrutado cada parte com os olhos da outra, caberá a nós o juízo entre ambas. Portanto, o verdadeiro tema do diálogo é a vida e o modo como ela deve ser vivida, e não o valor da retórica, figurando qual o verdadeiro tema da República, que não são os méritos e deméritos dos sistemas políticos e econômicos concorrentes, mas “a justiça, a temperança e o juízo vindouro”[12].
Em termos formais, o diálogo começa de maneira familiar: Sócrates está ansioso para descobrir o caráter preciso da arte ou “técnica” (τέχνη) professada por Górgias, ou seja, a “retórica”. Ela é, conforme o sofista (449d), uma arte do “falar” ou do “discurso” (περί λόγους) que torna seus usuários hábeis em “discursar” e, deste modo, como o discurso é a expressão do pensamento ou da inteligência, torna-os inteligentes (δυνατύς ϕρονεῖν, 450a). Porém, essa definição está longe de ser adequada; podemos distinguir as “artes em dois tipos: a primeira tem operações total ou principalmente manuais, enquanto a outra é pura ou principalmente realizada pelo λόγοι (450d), uma das primazes declarações distintivas — tornada fundamental nos diálogos posteriores de Platão e na filosofia de Aristóteles — das ciências “teóricas” e “práticas”.
Ora, a retórica não é a única “arte” do segundo tipo; há muitas outras, como a aritmética teórica e prática (ἀριθμητική e λογιστική), geometria, medicina e outras, nas quais as operações manuais não desempenham nenhum papel ou desempenham um papel subordinado; mas Górgias certamente não diz ensinar qualquer uma destas. Para completar a definição, precisamos saber qual é a matéria com o qual o “discurso” do retórico se preocupa, à semelhança do “discurso” do aritmético, este relativo ao “par e ímpar”, i.e., às propriedades da sucessão dos números inteiros (451a-d).
Segundo Górgias, é suficiente caracterizar a matéria como a “mais importante dentre as preocupações humanas” (τὰ μέγιστα τῶν ἀνθρωπείων πραγματῶν), “os supremos interesses da humanidade”. Todavia, uma afirmação deste tipo, ávida por definir mediante uma fórmula de louvor, é ambígua, pois existem diferentes opiniões quanto à noção de qual é a “grande preocupação” do homem. Um médico poderia dizer que é a saúde, um economista ou um homem de negócios, a riqueza. Logo, embora Górgias possa estar certo na avaliação de sua arte, ela mesma pressupõe uma resposta à pergunta ética: qual é o principal bem para o homem (452d)? O sofista responde que este seria ϵ̓λϵνθϵρία, entendida enquanto liberdade de ter seu próprio caminho e ser capaz de impor sua vontade a seus concidadãos, sendo a retórica, a arte do discurso persuasivo ou plausível, a produtora desse bem (452d). Portanto, argumenta-se para o “poder” enquanto o principal bem e a retórica, a arte suprema, porque, na vida de uma cidade como Atenas, a eloquência persuasiva é a grande arma com a qual o estadista adquire poder; o orador persuasivo faz sua política ser adotada pela ecclesia, seus planos financeiros pelo βουλή, e consegue impugnar seus oponentes e defender seus partidários perante a discateria; então, o segredo de um Péricles é simplesmente seu domínio dos recursos da eloquência persuasiva. Sustenta-se, então, a possibilidade de ensinar este segredo a um aluno, e por isto o sofista considera sua própria τέχνη como a suprema conquista da inteligência humana[13].
Cumpre notar, logo no início do diálogo, a insinuação do verdadeiro problema a ser debatido: a questão ética — ainda não formalmente abordada até chegarmos à cena onde Cálicles é o interlocutor —, a saber, se o “poder”, entendido como essa liberdade sem freios de agir conforme a própria vontade e de compelir outrem a fazer o seus desejos, é o sumo bem. A controvérsia acerca dos “méritos” da arte retórica subordina-se por inteiro a esse propósito ético, sendo sobretudo suscitada pois, numa democracia grega, a desenvoltura e a capacidade de persuasão na fala constituíam, por necessidade, os principais instrumentos para se alcançar tal “poder”[14].
Sabemos, agora, o que Górgias deseja dizer por “retórica”: uma “arte” de persuasão. É uma “arte” porque é, ou pretende ser, redutível a princípios inteligíveis; seu fim ou objetivo é “persuadir” os homens a aceitarem os pontos de vista do praticante, e assim torná-los instrumentos consentidos de sua vontade. Mas a definição tem o defeito de ser muito ampla: ela não estabelece, de fato, os diferenciais específicos da atividade do orador. Há outras “artes”, incluindo a do aritmético, pelas quais os homens são persuadidos a aceitar a opinião do especialista, pois elas “nos ensinam” certas verdades, e quem é ensinado certamente persuade-se das coisas ensinadas. Em seguida, devemos nos perguntar: que tipo de persuasão usa a retórica e em quais matérias produz persuasão? (454a). Górgias responde: a retórica é o tipo de persuasão usada “diante de dicastérios e turbas em geral”, e persuade “do certo e do errado”, sendo assim, é a arte de discursar efetivamente de questões morais em público (454b).
Põe-se, então, uma importante distinção: a persuasão ou convicção (τὸ πιστεύειν) será produzida com ou sem instrução. No primeiro caso, um homem não é apenas persuadido de ter uma opinião, ele é direcionado ao conhecimento; no segundo, ele é convencido de uma opinião, mas não sabe de sua veracidade. Ora, é óbvia a incapacidade duma “turba” em ser conduzida ao conhecimento de problemas profundos e complicados durante o curto espaço de tempo necessário para a realização dum discurso eficaz. Por conseguinte, o teórico deverá ser um praticante da mera persuasão que não conduz a um conhecimento real. Será de esperar que esse homem não tente persuadir o seu público de assuntos onde há óbvia exigência de conhecimentos técnicos especiais, como a engenharia naval e militar, mas apenas “do certo e do errado” — não considerado, popularmente, uma questão para especialistas.
No entanto, Górgias lembra das maiores construções navais e militares de Atenas — as docas, os portos, as “longas muralhas” — cuja empreitada não foi feita por iniciativa de especialistas em engenharia, mas por Temístocles e Péricles, eminentes “oradores”. De facto, perante toda audiência pública, demonstra-se um orador hábil ser sempre mais “convincente” que um “especialista” não-orador, mesmo na sua competência. O “orador” sem conhecimento de medicina, por exemplo, será sempre mais persuasivo, em relação ao especialista médico não-orador, mesmo numa discussão médica. Via de regra, o mero “orador” hábil conseguirá exibir-se ao público como uma autêntica autoridade em assuntos dos quais não possui nenhum conhecimento técnico real, e este é precisamente o segredo de seu poder. Este truque é o habitualmente empregado por advogados capazes e eloquentes, onde se fala “a partir do próprio dossiê” e, portanto, a visão de Górgias equivale a sustentar que o estado é apenas uma questão de habilidade consumada em falar “a partir de um dossiê”. Certamente os homens maus poderão recorrer a esta formidável arma para os fins mais nefastos, sendo a culpa não do mestre com quem aprenderam a usá-la, mas sim deles próprios. Seria tão absurdo culpar o mestre pelos abusos de um aluno, quanto responsabilizar um pugilista ou um mestre de esgrima por um golpe desleal desferido por um de seus alunos (455a-457c). Vemos, assim, que Górgias não pretende “ensinar o bem” — e lhe é até oportuno seus alunos fazerem o uso correto das armas cujo manejo os ensinou —, mas sua preocupação é restrita ao ensino do manejo destas armas.
Há um óbvio ponto fraco neste elogio da arte do orador, e Sócrates agarra-o de imediato. O orador, segundo o próprio Górgias, não é um “especialista”; do mesmo modo, não é a “turba” ou “multidão” diante da qual ele silencia que é o verdadeiro especialista. Portanto, diz o sofista, a oratória é um artifício pelo qual um ignorante persuade um público, igualmente ignorante, de sua melhor compreensão dum objeto, mesmo se comparado nesta ao seu perito verdadeiramente qualificado. Então, pergunto, isto se aplicará às questões morais com as quais o “orador” será em grande parte confrontado? Ele não precisaria saber mais do certo e do errado, da honra e da desonra, em relação, por exemplo, à engenharia naval ou à medicina? Se precisar de conhecimentos deste tipo, onde poderá consegui-los, pois o próprio Górgias afirmou que não é da sua incumbência transmiti-los? Daí, o sofista sugere inconsistentemente que, em caso de necessidade, um aluno pode acidentalmente obter o conhecimento do certo e do errado a partir de si próprio; em todo caso, ele precisa tê-lo.[15] O “orador” deve ser δίκαιος, “um homem justo”; ora, se não o fosse ele poderia fazer o uso inadequado de sua habilidade oratória. Mas se ele for um “homem moral” não terá o desejo de fazer o mal. Por isso, um verdadeiro orador nunca abusaria da sua habilidade, o que parece inconsistente com o argumento anterior segundo o qual um orador que faz mau uso da sua arte é responsabilizado – e não o seu professor. (457c-461b).
Até agora, concluímos o seguinte: sugeriu-se, pelo menos, que um estadista, cujo poder numa democracia se deve à capacidade de persuasão, não precisa ser um especialista em nenhuma das artes técnicas, mas precisa de princípios morais sólidos, mesmo não sendo muito claro como pode consegui-los. Neste ponto, Górgias retira-se da discussão e o seu lugar é tomado por Pólo, seu discípulo e admirador mais jovem, disposto a romper com os pontos de vista convencionais relativos à moralidade; algo não feito pelo respeitável Górgias. Segundo Pólo, Sócrates aproveitou-se injustamente da modéstia convencional de seu mestre, o levando a renunciar à sua reputação de professor profissional do certo e do errado, ou seja, aquilo fora uma mera questão de boas maneiras e o filósofo cometera, portanto, uma infração ao fingir levar a situação seriamente. O sofista aprendiz também insiste em Sócrates exercer o papel de “interrogado” e submeter a exame sua própria definição de retórica — algo que ele realmente está disposto a fazer.
De acordo com esta definição, que abre a segunda das três secções do diálogo, a retórica não é absolutamente uma “arte”, i.e, objeto de conhecimento especializado, mas sim, um mera “habilidade” empírica (ἐμπειρία, τριβή), e para ser mais preciso, a “habilidade de satisfazer” (462c). Para este efeito, assemelha-se à culinária, pois o cozinheiro agrada ao paladar dos seus clientes através de uma combinação elegante de sabores, e o orador “faz cócegas nos ouvidos da plebe” através de combinações atrativas de palavras e frases. Pretende-se dizer com isso que nem a culinária nem a oratória são aplicações de princípios racionais; não se pode estabelecer regras para nenhuma delas, porquanto ambas são meros truques para satisfazer os gostos de um grupo de clientes e, em cada caso, o truque não depende de nada mais científico para além de um tato não ensinável, mas somente apreendido por uma longa experiência pessoal de sucessos e fracassos. Não há nada de “virtuoso” em qualquer uma delas; ambos são ramificações da “habilidade”, para quais o nome apropriado é κολακεία, “fazer as vontades segundo o humor do patrão”[16], “agir como uma parasita.”
Com efeito, podemos distinguir quatro espécies de κολακεία, cada uma das quais é uma espúria falsificação ou “fantasma” (εἴδωλον) de uma verdadeira ciência ou arte. Nós começaremos com a concepção socrática, agora familiar, da finalidade duma coisa. Há uma dupla arte para os fins corporais, i.e., a de mantê-lo num estado saudável e em forma, e uma correspondente dupla arte quanto a finalidade da alma. Para o corpo, as duas artes do “cuidado” não levam o mesmo nome; são elas a “ginástica”, a cultura corporal (que estabelece o ideal da verdadeira “forma física” do corpo), e a medicina (cuja função é restituir a saúde àqueles “fora de forma”). A arte do “cuidado” da alma tem um único nome, é chamada de πολιτική, “política”: mas ela também tem dois ramos, a legislação (νομοθετική), que estabelece o padrão de saúde espiritual, e a “justiça” (ou retidão, δικαιοσύνη), que corrige e repara a doença na alma. Cada uma destas quatro é uma arte verdadeira; tem como finalidade o bom ou o verdadeiro melhor estado do corpo ou da alma, e por isso repousa num conhecimento da ciência do bem e do mal. Os regulamentos da “ginástica” e da medicina fundamentam-se no conhecimento do saudável para o corpo, os do legislador e do juiz no conhecimento do saudável para a alma. Mas cada uma das quatro artes tem a sua falsificação, e esta difere da verdadeira arte por tomar como padrão o agradável e não o bom. Assim, o cozinheiro é uma falsificação do médico. O médico tem como objetivo prescrever a dieta saudável e o cozinheiro prescrever o agradável aos paladares. Ora, é possível saber qual dieta é saudável, mas só se pode descobrir qual dieta agradará ao paladar de um homem através de palpites baseados num longo conhecimento dos seus humores e caprichos, e mesmo quando se acerta, os pratos preparados não serão, geralmente, bons para o cliente.
O mesmo acontece com a κομμωτική, ou a “arte”, se assim se pudesse chamar, do adorno corporal (a vocação do cabeleireiro, do embelezador profissional, do joalheiro e de muitos outros), que é uma paródia da arte genuína do treinador. A “ginástica” torna o corpo intrinsecamente atraente e gracioso, treinando-o nos exercícios produtores de graça, agilidade e vigor verdadeiros; κομμωτική imita a verdadeira arte ao produzir uma graça e um encanto enganosos, obtidos através do artifício dos cosméticos, das roupas da moda e de outras coisas semelhantes. (Aqui, mais uma vez, não há um padrão real, nada além do capricho da “moda” passageira). O mesmo acontece com as artes referentes à saúde da alma. O sofista proclama ensinar o bem, mas ensina apenas o tipo de vida suscetível de se recomendar aos seus ouvintes; o “orador” pretende ser o médico das desordens do corpo político, mas as medidas recomendadas só persuadem o seu público porque ele tem o cuidado de fazer as recomendações agradáveis ao estado de espírito momentâneo de seus ouvintes. Daí podermos definir a retórica como sendo a falsificação de uma parte da “política”, ou seja, da justiça (463a-466a)[17].
Por causa disso, Pólo defende a impossibilidade da retórica ser uma forma de κολακεία, uma pois o “bajulador” é uma figura de má reputação, já o “orador” é a pessoa mais poderosa da comunidade e, segundo se depreende, a figura de maior importância. Com a sua influência, pode garantir a expulsão de quem quiser, confiscar os seus bens e até mesmo conseguir a sua execução. Assim, é praticamente um autocrata sem superior. Sócrates reconhece-o, mas nega a inferência segundo tanto o orador como o autocrata sejam realmente poderosos, se por “poder” entendermos tudo de bom para um homem ter. O autocrata, reconhecido ou não, sem dúvida faz sempre “o que lhe parece bom”, mas por essa razão nunca faz “o que quer” (466e). Ora, não é bom, se o seu pensamento for falso, um homem fazer “o que lhe parece bom”. Para explicar melhor este ponto, podemos dizer o seguinte: Fazemos muitas coisas, não pelo próprio fazer delas, mas como meio para outra coisa, como quando um homem bebe um medicamento desagradável por ordem do seu médico, para recuperar a saúde, ou segue a fatigante e perigosa profissão de marinheiro com o objetivo de fazer fortuna. Em todos esses casos, quando uma coisa é feita como um meio para um fim último, e é este o desejo do homem, não o meio desagradável ou indiferente usado[18]. E ele deseja o fim pois o considera um bem. Assim, quando condenamos um homem à morte, ou o banimos, ou confiscamos os seus bens, temos sempre um fim último. Só fazemos essas coisas por pensarmos na sua “utilidade” em vista desse fim. Portanto, se o autocrata se engana ao supor que essas medidas “serão para o seu bem”, quando na verdade são más, ele não está fazendo “o que desejava” e não deve ser chamado de “poderoso”. O pensamento é, portanto: todos desejam realmente o bem, ninguém deseja o mal. “O objeto do desejo de cada homem é um bem para si próprio.” Ser realmente poderoso significa ser capaz de obter o bem; é fraqueza, não poder, “fazer tudo o que se quer”, se a consequência é colher o mal e não o bem (466a-469e).
Passamos agora à exposição da principal doutrina ética do diálogo. Ela é suscitada pela observação pouco cortês de Pólo, segundo a qual, independentemente do professado por Sócrates, ele certamente invejaria o homem capaz de confiscar, prender ou matar quem quisesse. Sócrates diz não o invejar, pois o homem infligindo tais coisas a outro, mesmo quando são justamente merecidas, não é invejável, mas quem as inflige imerecidamente é miserável e digno de pena, e se encontra mais neste estado que a infeliz e inocente vítima, pois cometer uma injustiça é muito pior do que ter de sofrê-la. É claro, o próprio Sócrates, tal como Cândido num caso semelhante, “não escolheria nem uma coisa nem outra”, mas se tivesse de escolher, preferiria sofrer o crime a cometê-lo (469a-c).
Pólo considera esta idéia como um paradoxo ridículo. Com efeito, qualquer homem com uma faca debaixo duma capa pode arrogar-se “poderoso”, no sentido de poder, tal como o autocrata, matar qualquer pessoa de acordo com seu desejo, com uma única exceção: a certeza de seu castigo. Portanto, a impunidade deve ser estipulada como uma das condições do “poder”, em contrapartida, argumenta, uma criança poderia refutar a opinião de Sócrates de que só é “melhor” matar, banir e confiscar à vontade quando esses actos são praticados “justamente”. Bastaria considerar o exemplo mais recente da vida contemporânea, o de Arquelau, fazendo de si mesmo o rei na Macedônia através duma carreira de rebelião e assassínio, mas a conquista do trono se deu precisamente por isso. De acordo com a teoria socrática, ele deveria ser o mais miserável dos homens, mas é, de facto, o mais feliz, e não há um homem em Atenas, nem mesmo o filósofo, que não gostaria muito de trocar de lugar com o rei (469c-471d). Contudo, um apelo deste tipo é uma ignoratio elenchi na sua acepção mais literal. Mesmo que todos, exceto Sócrates, estivessem dispostos a entrar no banco das testemunhas em nome de Pólo, é possível alguma testemunha solitária dizer a verdade e o testemunho de muitos ser errôneo. O filósofo, por sua vez, não considerará sua posição confirmada exceto com um único testemunho a seu favor: o de seu adversário (472b). Noutras palavras, a disputa não pode ser decidida pelo peso da autoridade, mas pelo do argumento. O primeiro passo é, portanto, definir com a maior exatidão possível o tema da discussão. Trata-se, de facto, da mais importante de todas as questões práticas, e consiste na resposta para: “Quem é o homem verdadeiramente feliz?” Pólo afirma, sim, um homem ser feliz e injusto; Sócrates nega-lhe essa possibilidade. Por conseguinte, há um desacordo secundário, o primeiro sustenta a impunibilidade necessária ao homem injusto para a sucessão de sua felicidade; o segundo, a infelicidade desse homem em qualquer circunstância, embora seja mais infeliz se escapar ao castigo do que se o sofrer. Cabe-lhe, pois, persuadir Polo de ambas as teses (472d-474c).[19]
O ponto específico da discordância entre as posições opostas é definido mais precisamente. Pólo encontra-se tão influenciado pelas convenções morais vigentes que reconhece, de imediato, ser mais “feio” ou “vergonhoso” (αἰσχρόν) cometer um erro se comparado a sofrê-lo, mas recusa-se a inferir daí a necessidade duma coisa “mais feia” ser também o mal maior. Ele distingue, enquanto Sócrates se recusa a fazê-lo, entre o bom (ἀγαθόν) e o belo/admirável ou “nobre” (καλόν), e consequentemente também entre o “feio” (αἰσχρόν) e o mau (κακόν). A tarefa de Sócrates é mostrar a falsidade destas distinções, sendo este seu argumento: Quando distinguimos entre “belos/admiráveis” corpos, cores, sons, costumes (ἐπιτηδεύματα) e aqueles “feios” ou “vergonhosos”, o nosso padrão é sempre o “benefício” ou “prazer”. Por uma forma, cor ou som “belos/admiráveis” entendemos aqueles úteis e/ou imediatamente agradáveis. O mesmo se aplica quando falamos de leis (νόμοι) e costumes “nobres” ou “belos/admiráveis” na vida, ou da “beleza” de uma ciência[20]. Referimo-nos ao facto do uso, do negócio ou da ciência em questão ser altamente benéfico e/ou “criar no espectador desinteressado um agradável sentimento de aprovação”; uma visão sobre a qual Pólo se deleita pelas suas aparentes implicações hedonistas. Daqui se deduz o seguinte: quando chamamos a uma coisa “feia” ou “vulgar”, temos forçosamente de querer designá-la como sendo desagradável e/ou dolorosa. Além disso, quando dizemos “A é mais belo/admirável do que B”, pretendemos dizer que A é ou mais agradável e/ou mais útil do que B. Já quando chamamos A de “mais feio”, pretendemos apontá-lo como ou mais nocivo e/ou mais doloroso. Agora estamos de acordo que cometer uma injustiça (τὸ ἀδικεῖν) é algo “mais feio” que sofrê-la (τὸ ἀδικεῖσθαι), e certamente não é mais doloroso nem mais prejudicial cometer o crime do que tê-lo cometido contra si. Deve-se concluir ser a prática da injustiça a mais danosa, ou seja, o curso mais nefasto, o pior de todos. Ora, ninguém pode racionalmente preferir uma alternativa pior e ao mesmo tempo a mais “feia” das apresentadas, e, assim, Sócrates estabelece o seu ponto principal tirando-o da boca do seu adversário(474c-476a). Passemos à prova do corolário.
Ao iniciarmos uma consideração da lógica geral, devemos reconhecer o princípio fundamental: “onde houver um agente (ποιῶν), há um correlato ‘paciente’ (πάσχων), i.e., algo ou alguém que padece a ação”. Ademais, o modo da ação origina qualificações (πάθη) estritamente correlacionadas no agente e no paciente. Se o agente, e.g., golpeia subitamente, de forma severa ou dolorosa, o paciente é golpeado subitamente, de forma severa ou dolorosa. Se o agente “corta profundamente”, o paciente é “profundamente cortado”, e assim por diante. Ora, ser punido por um crime é ser o paciente em uma relação na qual o infligidor da penalidade é o agente. Portanto, se o agente inflige a penalidade de forma merecida ou justa, o paciente a sofre de forma merecida ou justa[21]. E, como Pólo não nega que o justo é “belo”, por conseguinte, deve ser ou bom ou agradável. Mas, como ninguém ousaria afirmar ser prazeroso a punição, depreende-se que o justamente punido recebe algo bom, se beneficiando disso. Podemos continuar especificando a natureza do benefício. Os bens e males podem ser classificados em três categorias: condições boas ou ruins de fortuna (χρήματα), do corpo e da alma. Uma condição ruim da fortuna é a pobreza; do corpo, a fraqueza, a doença, a deformidade; da alma, o estado ruim é a injustiça(ἀδικία), reconhecido como o mais “feio” dentre os três. No entanto, certamente não é mais doloroso ser injusto do que ser indigente ou fisicamente doente, pois, em acordo com nosso raciocínio anterior, ele deve ser muito superior no seu dano ou maldade. Uma alma ruim é, portanto, o maior mal ao qual um homem está exposto, e assim voltamos ao princípio fundamental de toda a ética socrática (476b-477e)[22].
Ainda resta mais um passo a ser dado. Existe uma “arte” para cada um dos três tipos de maldade. O comércio (χρηματιστική) nos liberta da pobreza, a medicina da doença física, a “justiça” administrada por um juiz competente da injustiça. O juiz que sentencia o criminoso é, portanto, um médico da alma, e seu chamado é mais “belo/admirável” do que o do médico do corpo, pois cura uma doença mais grave. Em ambos os casos, o processo de tratamento é desagradável, mas salutar para nós e, do mesmo modo, a condição mais feliz é ter saúde física ou espiritual, dispensando assim o médico; dir-se-á também que o homem curado de uma doença grave por meio dum tratamento rigoroso está muito menos mal frente ao doente sem tratamento. Por isso, um homem como Arquelau, elevado por meio de um crime, ficando acima das possibilidades de correção, é semelhante a um paciente com uma doença mortal que se recusa a se submeter ao cirurgião. Então, o argumento dado para a retórica de permitir ao seu possuidor “escapar”, quando este é chamado a prestar contas de seus erros, torna-se totalmente vã. O melhor uso dessa eloquência por parte dos criminosos seria utilizá-la para denunciar a si mesmos e garantir a recepção, por parte do juiz, de qualquer castigo necessário para restaurar a saúde de sua alma. E se deve ser usada para permitir ao criminoso “livrar-se” das penalidades de seus delitos, seria apropriado reservar esse emprego para o caso de nossos inimigos mortais, como a ferida mais mortal que podemos infligir (477e-481b).
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Notas:
[1] Veremos, quando tratarmos da República, que este e, consequentemente, todos os diálogos predecessores devem ser datados não muito depois de 387, no período de doze anos após a morte de Sócrates. Se o Górgias se enquadra no início desse período, precisamos colocar sua composição logo após esse evento, enquanto os sentimentos relacionados a ele ainda estavam muito frescos na mente de Platão. O professor Wilamowitz-Moellendorf, em seu Platão, i. 221, ii. 94-105, faz uma tentativa engenhosa para obter uma datação mais exata. Ele parte da curiosa citação incorreta dos conhecidos versos de Píndaro sobre νδμος, conforme apresentado por todos os nossos melhores MSS. em Górgias 484b (onde o texto foi corrigido novamente em todas as edições impressas). Ele, segundo me parece, sustenta com razão que a citação incorreta foi o verdadeiramente escrito por Platão e, em seguida, prossegue (creio, novamente com razão) inferindo da Apologia de Sócrates, de Libânio, que a acusação por citar erroneamente Píndaro foi mencionada no panfleto de Polícrates contra Sócrates, publicado por volta de 393. Sua inferência final é esta: a acusação foi baseada nessa passagem do Górgias, sendo, portanto, anterior ao panfleto de Polícrates. Pretendo sugerir algumas razões para acreditar que a citação é consciente e feita com um propósito legítimo. Gostaria apenas de observar a essa altura a impossibilidade dessa citação ter sido o fundamento de uma acusação contra a memória de Sócrates, por duas razões contundentes: (1) que, de todo modo, uma citação errônea em Platão não seria prova de nada contra Sócrates, e (2) a pessoa a quem Platão faz citar erroneamente Píndaro não é Sócrates, mas Cálicles, que está argumentando contra ele. Polícrates, a julgar pela linha adotada por Isócrates a seu respeito (Isoc. xi. 1-8), era um grande tolo, mas é difícil acreditar que pudesse ter usado uma citação errônea colocada por Platão na boca de Cálicles para prejudicar a reputação de Sócrates. Ao mesmo tempo, não tenho dúvidas de que o Górgias foi escrito tão cedo quanto o professor Wilamowitz afirma, e muito provavelmente antes. [N.A.]
[2] Isso é bastante compatível com a declaração da Apologia, 32b 1. Lá, Sócrates diz que foi membro do βουλή. No entanto, ele não diz ter servido apenas uma vez nessa função. Veja a nota de Burnet em loc. cit. Os melhores historiadores acreditam num deslize de Xenofonte ao dizer que Sócrates era o ἐπιστάτης no famoso julgamento. [N.A.]
[3] Górgias 503c. [N.A.]
[4] Górgias, 481d, Vespas, 89. [N.A.]
[5] Górgias, 484e-486d. Como Aristóteles parece ter sido a primeira pessoa a tentar construir uma cronologia do drama ático por meio de uma coleção de didascálias, eu não deveria ter dado importância a esse ponto em particular, a não ser pelo fato de que, se a visão comumente aceita sobre a data do Antíope estiver correta, Platão certamente deve ter assistido à apresentação pessoalmente. [N.A.]
[6] Ibid. 470d-471d. [N.A.]
[7] A maneira como Nícias é mencionado em 472a certamente parece pressupor que ele está vivo e no auge de sua prosperidade. Isso excluiria qualquer data muito posterior à navegação da expedição siracusana em 415. As dificuldades me parecem ser criadas pela riqueza de alusões específicas pelas quais o diálogo é notável. Seria muito difícil, na ausência de algo como os arquivos completos de um jornal, fazer tantas dessas alusões sem cair em um pequeno erro aqui ou ali, e não havia jornais ou gazetas em Atenas. [N.A.]
[8] Para a magreza, cf. Aristófanes, Nuvens, 502-503; para a impetuosidade, Apologia, 21a, σοφὸς ἐφ’ ᾧ ᾖ ὁρμήσειεν; para a superstição, Aristófanes, Aves, 1553 ss., onde seu gosto por coisas fantasmagóricas é satirizado ao torná-lo o cúmplice e intérprete fraudulento dos “espíritos” nas séances de Sócrates. [N.A.]
[9] Ou talvez devamos supor que Sócrates e Cálicles se encontram na rua e, após as cortesias iniciais, a cena mude para a casa de Cálicles. [N.A.]
[10] Szlezák vê isto como uma forma de “socorro” às teses do mestre (Górgias) na medida em que os discípulos aprofundam seus fundamentos e os levam às últimas conseqüências. Ver Thomas A. Szlezák, Platão e a Escritura da Filosofia p.206 [N.E.]
[11] Opinião parelha à de Michael Erler: “Ao lado de Sócrates, a figura de Cálicles – se se trata de uma figura histórica ou não, é um assunto controverso – sempre fascinou o leitor. Nietzsche irá encontrar aqui cunhagens prévias de suas próprias concepções (Dodds, 1959, pp. 387-391). Uma vez que Cálicles propaga, com muita coerência, uma busca de poder neutra quanto a valor, e Sócrates critica radicalmente essa postura, o diálogo despertou grande interesse, sobretudo, nas análises de correntes totalitárias do século XX.” Michael Erler – Platão p.120 [N.E.]
[12] O Górgias está em nítido contraste com o maior dos diálogos no que se refere à maneira pela qual se delimitam as três secções constituintes do argumento, como cenas no palco grego ou francês, apresentando um novo interlocutor para sustentar o fardo do argumento. No auge de seu gênio dramático, Platão costuma entrelaçar os fios de sua trama de forma mais sutil. Isso, mais uma vez, é uma base justa para inferir o lugar do diálogo na série de obras platônicas. [N.A.]
[13] É certo que estamos lidando nesta passagem com uma tese realmente defendida por Górgias. Pois no Filebo, Protarco comenta (Filebo. 58a-b) que muitas vezes ouviu Górgias afirmar como a arte da persuasão é muito superior a todas as outras, porque o homem que a possui pode fazer todos cumprirem sua vontade e fazê-lo voluntariamente. Obviamente, a referência não é ao Górgias em si (embora 458c implique a presença de uma plateia na discussão), mas a alguma declaração realmente feita em um discurso de Górgias. O Górgias 452d e seguintes refere-se claramente à mesma declaração e provavelmente a reproduz com grande fidelidade. [N.A.]
[14] Podemos dizer, de fato, que a grande fraqueza da democracia antiga era que ela realmente significava um governo de oradores irresponsáveis, assim como a democracia moderna tende a significar um governo de “jornalistas” igualmente irresponsáveis. [N.A.]
[15] Conferir a explicação de Szlezák: “A pretensão com que Górgias entra na conversa mostra, não menos claramente que a estrutura-de-βοήθεια negativa da sequência do diálogo, com que medida a retórica do injusto deve ser medida. Cada um pode perguntar o que quiser, Górgias está confiante em poder responder a tudo. Poder responder a tudo pressupõe conhecer a verdade sobre tudo. Apenas o filósofo das Ideias ου ο διαλεκτικός poderia cumprir o que Górgias promete: mas Górgias não sabe responder já à pergunta sobre como seus alunos podem colocar a retórica a serviço da injustiça, embora saibam o que é justo. Prova-se que Górgias é contraditório (461 a2); segundo suas palavras precedentes (458 b4), ele deveria se alegrar com o ganho que a refutação trouxe. Mas Platão não quer conceder ao mentor dos admiradores do que é injusto essa atitude verdadeiramente filosófica. Ele, contudo, lhe poupa uma insurgência penosa e um desejo de esquivar-se, e, em vez disso, faz que os ambiciosos adeptos lutem por ele. Em todo o longo diálogo, Platão mantém desperta a lembrança da original pretensão de Górgias salientando continuamente a vontade dos adversários de refutar Sócrates e a prontidão de Sócrates em se deixar refutar. O resultado da tenaz discussão é inequivocamente formulado, ao mesmo tempo, como resposta à pretensão de Górgias: depois de tantos logoi serem refutados, subsiste apenas o logos de Sócrates de que se deve mais evitar cometer injustiça do que sofrer injustiça. Foi, portanto, Sócrates que pôde responder a “tudo”.” Thomas A. Szlezák – Platão e a Escritura da Filosofia p.206-7 [N.E.]
[16] A palavra não deve ser traduzida como “lisonja”. O demagogo bem-sucedido muitas vezes se sai melhor “batendo” em seu público do que lisonjeando-o. Na linguagem do século V, κολαξ significava o chamado pela nova comédia de παράσιτος, o “trencherman” (adulador/bajulador) que mantém seu lugar à mesa de um homem importante obedecendo aos seus humores, como os “parasitas” da Casa dos Gaunt em Thackeray. O pensamento de Sócrates é que o “estadista” certo de estar impondo sua vontade sobre o “monstro de muitas cabeças” está apenas “bajulando” habilmente a criatura. [N.A.]
[17] O “homem público” mais extravagante sempre insiste que está apenas defendendo os “direitos justos” de sua nação, igreja ou classe. Mas um “direito justo” em seus lábios significa, na verdade, qualquer coisa que seus apoiadores estejam dispostos a exigir. [N.A.]
[18] Observe que, no decorrer desse argumento (em 468a), Sócrates fala de coisas “participando” do bem e “participando” do mal, usando a mesma palavra (μετέχειν) que aparece em conexão com a teoria das Idéias como um termo técnico para a relação entre a “coisa particular” e o “universal” predicada dela. Uma vez que não se pode duvidar com razoabilidade da considerável precedência temporal do Górgias em relação ao Fedro, isso cria uma grande dificuldade para os defensores da teoria enquanto uma invenção do próprio Platão, exposta no Fedro. [N.A.]
[19] “[…] Sócrates mede o sucesso a partir de um outro parâmetro, que segundo a concepção tradicional deve parecer como paradoxo. Para Sócrates, o que importa não é a “vitória” da própria pessoa, mas a libertação de seu opositor de suas concepções errôneas. Por isso, diante do julgamento, a defesa se transforma em acusação, e por isso Sócrates não considera sua condenação como uma derrota. O comportamento de Sócrates não é consequência de incompetência, mas consequência de sua impostação filosófica, que está às voltas com a alma dos outros. O Górgias e Fedro fundamentam que e porque a retórica filosófica platônica avalia como sendo sucesso aquilo que a retórica tradicional considera como derrota. Estes diálogos ajudam a compreender o que e como a retórica tradicional dos escravos, enquanto uma espécie de direção da alma (psicologia), se transforma em um recurso importante para a cura d’alma platônico-socrática.” Michael Erler – Platão p.119 [N.E.]
[20] Note-se que a “indução” se encontra em exata correspondência com a célebre exposição de Diotima no (Banquete, 210a e seguintes) onde os estágios sucessivos na ascensão à contemplação do Belo são o deleite com a beleza corporal de uma pessoa, com a beleza corporal universal, com a beleza da alma e do caráter, pela beleza dos costumes e das leis (ἐπιτηδεύματα καὶ νόμοι), até alcançar a beleza das ciências (ἐπιστήμαι). Quanto mais atentamente se examinam os diálogos platônicos até a República, mais se percebe sua unidade doutrinária e mais difícil se torna identificar neles qualquer “desenvolvimento”. [N.A.]
[21] Observe-se, mais uma vez, que o princípio lógico pressuposto sobre a interconexão entre as modalidades dos correlatos é o mesmo empregado na República para estabelecer a realidade da distinção entre as “partes da alma” (Rep. IV, 438b-e). Ambos os trechos pressupõem a existência de uma considerável doutrina lógica já reconhecida desde o período da Guerra Arquidâmica. [N.A.]
[22] [N.A] A suposição da classificação tríplice de bens como da alma, do corpo e do “patrimônio” é algo bastante familiar (Gorg. 477a e seguintes). Isso também, portanto, é claramente pré-Academia. [N.A.]
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