Por Hans Jonas
Tradução, notas e comentários de Helkein Filosofia
Neste capítulo proponho, ainda que experimentalmente, o perfilar de um comparativo entre dois movimentos, posições ou sistemas de pensamento amplamente separados pelo templo e pelo espaço, aparentemente incomensuráveis à primeira vista: um pertencente a nossos dias, conceitual, sofisticado e eminentemente “moderno” em mais sentidos do que o meramente cronológico; e outro pertencente a um passado nebuloso, mitológico, bruto – algo aberrativo eu seu próprio tempo e que nunca foi admitido enquanto companhia respeitável em nossa tradição filosófica. Minha tese consiste na afirmação de que ambos possuem algo em comum [e que consiste] em sua elaboração e, desde que mantenhamos à vista suas semelhanças e diferenças, espera-se que resulte numa iluminação recíproca [de ambas as correntes].
Com “recíproco” admito certa circularidade procedural, e minha própria experiência talvez ilustre o que quero dizer. Quando, há muitos anos atrás, voltei-me ao estudo do gnosticismo, descobri que os pontos de vista, a ótica que, por assim dizer, adquirira na escola de Heidegger, permitiu-me captar aspectos do pensamento gnóstico que haviam passado despercebidos; e eu estava cada vez mais impressionado com essa estranha familiaridade. Retrospectivamente, estou inclinado a crer que a percepção desta fátua e vagamente sentida afinidade que atraiu-me, num primeiro momento, para o labirinto gnóstico. E então, depois de longa estada naquelas terras distantes e de volta à minha, a cena filosófica contemporânea, descubro que o que havia aprendido fora me fez entender melhor os limites do que havia antes estabelecido. O extenso contato com o niilismo antigo provou – ao menos para mim – ser de grande ajuda para que discernisse e situasse o significado do niilismo moderno da mesma forma como este me equipou, num primeiro momento, para que avistasse seu obscuro primo do passado. E o que aconteceu foi que o existencialismo, que antes fornecedor do equipamento de análise, envolveu-se em seus resultados. A precisão de suas categorias voltadas à matéria em particular era algo a se pensar: elas se encaixavam por serem algo feio sob medida ou eram elas mesmas a medida? No princípio tomei tal aptidão como medo caso de validade presumida, o que asseguraria sua utilidade à interpretação de qualquer “existência” humana. Mas então ocorreu-me que a aplicabilidade das categorias aos exemplos dados pode ser devido ao tipo de “existência” de ambos os lados – o que forneceu as categorias e o que tão bem as recebeu.
Foi o caso de um adepto que creu possuir a chave que destrancaria todas as portas: cheguei a esta em específico, testei a chave e então ela encaixou e abriu a fechadura, provando seu valor. Apenas mais tarde, após ter superado a crença numa chave mestra, passei a me perguntar o motivo de seu esplêndido funcionamento. Teria acontecido de eu encontrar a chave e a fechadura corretas? Se sim, o que havia entre o existencialismo e o gnosticismo que fizera com que o último se abrisse ao toque do primeiro? Com esta reviravolta na abordagem, as soluções tornaram-se perguntas para o que a princípio pareciam apenas confirmações de seu poder em geral.
Assim, o encontro de ambos, principiado como a relação entre um método e um assunto, terminou me revelando que aquele existencialismo, que arroga ser a explicação dos fundamentos da existência humana enquanto tal, é a filosofia de uma situação específica e historicamente predestinada da existência humana – uma situação análoga (ainda que em outros aspectos em muito difira) que deu origem, no passado, a uma resposta também análoga. O objeto tornou-se objeto-lição, demonstrando a contingência e a necessidade na experiência niilista. O problema posto pela existencialismo não perde em seriedade; mas uma perspectiva adequada é obtida ao perceber a situação que ela reflete e ao qual se limita a validade de alguns de seus insights.
Em outras palavras, as funções hermenêuticas invertem-se reciprocamente – a fechadura se torna a chave e vice-versa: o leitor “existencialista” do gnosticismo, tão bem justificado em seu sucesso hermenêutico, convida, como seu complemento natural, a uma tentativa de leitura “gnóstica” do existencialismo.
Há mais do que duas gerações passadas, Nietzsche disse que o niilismo, “o mais inquietante de todos os hóspedes”, “está à porta.”[1] Enquanto isso o hóspede entrou e já não é mais hóspede e, até onde a filosofia sabe, o existencialismo está tentando conviver com ele. Viver em sua companhia é viver em crise, e seus primórdios remontam ao século XVII, local de formação da situação espiritual do homem moderno.
Entre as características que determinam a situação [espiritual do homem moderno] está uma enfrentada por Pascal, o primeiro a apontar suas assustadoras implicações e a expor com toda a força e sua eloquência: a solidão do homem no universo físico da cosmologia modera: “e mesmo no que vejo, fundido na imensidão dos espaços que ignoro e que me ignoram, aterro-me.”[2] “Que me ignoram”: mais do que a infinidade esmagadora de espaços e tempos cósmicos, mais do que a desproporção quantitativa, a insignificância do homem enquanto magnitude nesta vastidão, é o “silêncio”, i.e., a indiferença do universo em relação às aspirações humanas – a ignorância dos temas humanos por parte daquilo em que as coisas humanas devem antecipadamente ocorrer – que constitui a absoluta solidão do homem frente ao todo das coisas.[3]
Sendo assim, se enquanto parte da somatória das coisas postas no universo, mero exemplo de [coisa] natural, o homem é apenas um caniço suscetível de ser esmagado a qualquer momento pelas forças de um cosmo imenso e cego no qual sua existência é apenas um acidente aleatório, não menos casual seria [o acidente de] sua destruição. Entretanto, na qualidade de caniço pensante, ele não é parte da soma; não lhe pertence e difere radical e incomensuravelmente dela: pela “res extensa” não pensar, como ensinado por Descartes, e a natureza nada mais é do que “res extensa” – corpo, matéria, grandeza externa.[4] Caso a natureza esmague o caniço o fará sem pensar, ao passo em que o esmagado – o homem –, quando o for, estará ciente de sua condição.[5] Sozinho no mundo, o homem pensa não por causa [da natureza] mas apesar dela; não compartilha de um sentido na natureza, mas apenas de determinações mecânicas através de seu corpo – e assim a natureza ignora suas preocupações internas. Aquilo pelo qual o homem supera a natureza, seu único distintivo, a mente, não resulta numa integração superior de si à totalidade do ser, mas, inversamente, marca o abismo intransponível entre ele e o resto da existência. Afastado da comunhão, de estar num todo, sua consciência o torna um mero estrangeiro no mundo e cada ato reflexo o relembra de sua gritante alienação.
Eis a condição humana: finado está o cosmos com o qual meu logos imanente pode sentir-se em comunhão; finada jaz a ordem em que o homem ocupava seu posto; este lugar manifesta-se agora como acidente bruto e simples. “Estou assustado e espantado”, prossegue Pascal, “por me encontrar aqui e não lá; pois não há qualquer razão para que seja aqui em vez de lá, agora em vez de depois”. Sempre houve uma razão para o “aqui” desde que o cosmo foi considerado como lar natural do homem, i.e., desde que o mundo foi entendido enquanto “cosmo”. Mas Pascal fala “neste ponto afastado da natureza” em que o homem deveria “considerar-se perdido” na “pequena cela onde está preso, isto é, do universo [visível].”[6] A contingência absoluta de nossa existência no esquema das coisas nos priva de qualquer sentido ou quadro de referência possível para que entendamos a nós mesmos.
Mas há mais nessa condição do que a mera disposição do desabrigado, desamparado e apavorado; a indiferença da natureza também significa que ela não possui referência ou finalidade. Como a ejeção da teleologia[7] do sistema das causas naturais, a natureza torna-se sem propósito e deixa de sancionar qualquer possível propósito humano; é um universo sem hierarquia intrínseca, como é o copernicano, deixando os valores ontologicamente sem fundamento, e o homem volta inteiramente a si mesmo ao buscar por seu significado e valor; o significado não é mais encontrado, é “conferido”.[8] Os valores não são mais contemplados enquanto realidade objetiva, mas como produto de avaliação; enquanto funções da vontade, os fins são apenas minha própria criação, e assim a vontade substitui a visão e a temporalidade do ato anula a eternidade do “bem em si mesmo”.[9] Esta é a fase nietzschiana,[10] situação em que o niilismo europeu irrompe e o homem encontra-se sozinho consigo mesmo.
The world’s a gate
To deserts stretching mute and chill.
Who once has lost
What thou hast lost stands nowhere still.
Assim diz Nietzsche (em Vereinsamt), encerrando o poema com “ai daquele que não possui casa!”[11]
O universo pascaliano ainda era criação de Deus, e o homem solitário e desprovido de todos os adereços mundanos ainda era capaz de estender seu coração em direção ao Deus transmundano; mas este é, essencialmente, um deus desconhecido, agnostos theos, indiscernível na evidência de sua criação. O universo não revela o propósito do criador nos padrões de sua ordem, nem sua bondade na abundância das coisas criadas, nem sua sabedoria pelo seu ajuste fino e nem sua perfeição através da beleza de sua totalidade – mas revela seu poder através de sua grandeza, sua imensidão espaço-temporal.[12] O extenso, o quantitativo, jaz como único atributo essencial restante para o mundo e, portanto, se o mundo tem algo a dizer do divino, o faz através dessa propriedade: e pode-se dizer que grandeza é poder.[13] Mas um mundo reduzido à mera manifestação do poder também admite para si mesmo – uma vez que a referência ao transcendente decaiu e nada sobre ou ao homem – nada senão relações de poder, ou seja, domínio. A contingência do homem, de seu existir aqui e agora, é em Pascal ainda algo referente à vontade de Deus, ainda que essa vontade que lançou-me “neste canto remoto da natureza” seja inescrutável e o “por quê?” de minha existência seja tão insolúvel quanto o existencialismo mais ateu possa fazer parecer. O deus absconditus do qual nada senão a vontade e o poder podem ser predicados deixa para trás como legado, ao sair de cena, o homo absconditus, um conceito de homem caracterizado apenas pela vontade e pelo poder – a vontade de poder[14], a vontade de querer para a qual a natureza indiferente nada mais é do que ocasião para seu exercício do que um objeto verdadeiro.[15]
O ponto particularmente importante aos propósitos da discussão consiste em que uma mudança na visão da natureza, digo, do ambiente cósmico do homem, é o fundamento da situação que deu origem ao existencialismo moderno e às suas implicações niilistas.[16] Mas se assim for então a essência do existencialismo consiste em certo dualismo, um estranhamento entre o homem e o mundo advinda da perda da ideia de um cosmos – em suma, uma acosmia antropológica – uma situação não necessariamente criada pela ciência moderna enquanto tal. Um niilismo cósmico enquanto tal, gerado por quaisquer circunstâncias históricas, seria a condição em que alguns dos traços característicos do existencialismo podem evoluir. E até que ponto isso se verifica é, na realidade, o caso de ser um teste de relevância do elemento que descrevemos como característico da posição existencialista.
Há uma situação, e apenas uma até onde sei, na história do homem ocidental, em que – em um nível intocado por qualquer coisa semelhante ao pensamento científico moderno – em que essa condição foi vivida com toda a veemência de um evento cataclísmico: e é o movimento gnóstico – ou os mais radicais movimentos gnósticos entre os vários deles, que pulularam nos profundamente agitados primeiros três séculos da era cristã e proliferaram-se no período helenístico, em partes do império romano e ainda para além de suas fronteiras orientais. A partir deles, por conseguinte, podemos esperar aprender algo para que compreendamos esse assunto perturbador, o niilismo, e desejo evidenciá-lo ao leitor na medida do possível no breve espaço de um capítulo, ainda que com todas as reservas que tal experiência comparativa exige.
A existência de uma analogia ou afinidade que perpassa as eras, segundo o modelo aqui descrito, não surpreende caso lembremos que há múltiplos paralelos entre a situação cultural do mundo greco-romano dos primeiros séculos cristãos e a situação moderna, com Spengler chegando ao ponto de declarar as duas idades como “contemporâneas” no sentido de serem idênticas em seu respectivo ciclo cultural – e nesse sentido analógico poderíamos estar vivendo no período dos primeiros césares. Entretanto, decerto há mais do que mera coincidência no fato de nos reconhecermos em tantas facetas da antiguidade pós-clássica posterior, muito mais do que o que ocorre com a antiguidade clássica. O gnosticismo é uma delas, pois mais difícil que o seja, dada a estranheza dos símbolos, e surge como um choque inesperado especialmente àqueles que conhecem algo do gnosticismo, visto que a expansividade de sua fantasia metafísica, que [à primeira vista] não parece concordar com a austera desilusão do existencialismo, assim como seu caráter religioso em geral com a essência ateísta com fundamentalmente “pós-cristã” que Nietzsche identificou com o niilismo moderno. Entretanto, uma comparação pode produzir resultados interessantes.
O movimento gnóstico – assim como deve ser chamado – foi um fenômeno iniciado nos séculos críticos que indicamos, alimentando-se, assim como cristianismo, dos impulsos de uma situação humana amplamente prevalente e, portanto, irrompido em muitos lugares, formas e línguas. A primeira entre suas características a serem aqui enfatizadas foi a disposição radicalmente dualista que subjaz a atitude gnóstica enquanto tal e unifica duas amplamente diversificadas atividades em expressões mais ou menos sistemáticas. É sobre este fundamento humano primordial, de uma experiência passional do eu em relação ao mundo, que repousam as fórmulas das doutrinas dualistas, com o dualismo [normalmente sendo] entre o homem e o mundo e atualmente entre o mundo e Deus. É uma dualidade de termos antes contrários do que suplementares, e eis um exemplo: a dualidade entre o homem e o mundo espelha-se no plano da experiência da cisão entre o mundo e Deus e deriva dela como seu terreno lógico – a menos que se prefira manter, inversamente, a doutrina da transcendência do dualismo mundo-Deus que deriva da experiência imanente de uma desunião entre o homem e o mundo enquanto seu fundamento psicológico. Nesta configuração tríplice – homem, mundo e Deus –, homem e Deus jazem contrapostos ao mundo mas, apesar dessa existência unida, estão postos enquanto separados precisamente pelo mundo. Para o gnóstico este fato é objeto de revelação e determina sua escatologia, sendo possível que encontremos nela a projeção da experiência básica que cria para si sua verdade revelada. O sentimento primário é, então, de ruptura absoluta entre o homem e aquilo em que ele se encontra – o mundo –, e que é explicitado sob forma doutrinal. Em seu aspecto teológico esta doutrina afirma que o Divino é alheio ao mundo e que não possui participação ou interesse no universo físico; o verdadeiro Deus, estritamente transcendente, não é revelado e nem indicado pelo mundo e, por conseguinte, é Desconhecido, totalmente Outro, incognoscível em termos de quaisquer analogias mundanas. Correspondentemente, seu aspecto cosmológico afirma que o mundo não é criação de Deus mas de algum princípio inferior cuja lei executa; e, em seu aspecto antropológico, o ‘eu profundo’ do homem, o pneuma (“espírito”, em contraste com “alma” = psyche) não faz parte do mundo, da criação ou do domínio da natureza, sendo, por conseguinte, enquanto no mundo, tão transcendente e desconhecido por todas as categorias mundanas quanto sua contraparte transcendente, o “deus desconhecido”.
Que o mundo tenha sido criado por alguma ação pessoal é algo geralmente dado como certo nos sistemas mitológicos, ainda que a necessidade quase impessoal de impulsos sombrios pareçam operar em sua gênese; mas o homem não deve nem lealdade e nem respeito ao trabalho daquele que criou o mundo. Sua obra, embora compreenda de alguma forma o homem, não oferece uma direção segundo a qual possa definir seu curso; também não fornece nem sinal de seus desejos ou proclamações de sua vontade. E visto que não foi o Deus verdadeiro que criou aquilo de que a individualidade se sente tão alheia, a natureza manifesta apenas os aspectos inferiores do demiurgo enquanto um poder profundamente abaixo do Deus supremo, sobre o qual até mesmo o homem pode olhar do alto de seu espírito afeito a Deus; o demiurgo, essa perversão do divino, retêm dele apenas o poder de agir, ainda que cegamente, sem conhecimento ou benevolência. Sendo assim, o demiurgo criou o mundo através da ignorância e da paixão.
O mundo, por conseguinte, é produto e até mesmo a encarnação negativa do conhecimento [ou seja, é ignorância]. O que ele manifesta é obscuro, maligno, procedente do espírito da autoafirmação, do poder, da vontade de governar e coagir; a insensatez desta vontade é o espírito do mundo que, sendo assim, não possui relação alguma com o conhecimento e com o amor. As leis do universo são as leis destas regras [benévolas] e não advém da vontade divina. O poder torna-se, assim, o principal aspecto do cosmos, sendo sua essência interna a ignorância (agnosia). O complemente positivo disto é a essência do homem, que consiste no conhecimento – tanto de si mesmo quanto de Deus: eis o que determina sua situação como a do que “potencialmente sabe” entre aqueles que não sabem, de luz entre as trevas, e tal relação jaz no fundamento de sua alienação, sua solidão imersa na obscura vastidão do universo.
Este universo em nada se assemelha ao cosmo grego, o que lhe rende epítetos desdenhosos: “estes elementos miseráveis” (paupertina haec elementa), “esta prisão insignificante do criador” (haec cellula creatoris).[17] Entretanto, ainda é cosmos, ordem – mas uma ordem vingativa e alheia às aspirações humanas; seu reconhecimento é composto de medo e desrespeito, tremor desafio; a mancha da natureza não reside numa deficiência da ordem mas em sua completude. Longe de ser caótica, a criação demiúrgica, ainda que fruto da ignorância, ainda é concebida como um sistema de leis; mas essa lei cósmica, outrora adorada como expressão de uma razão com a qual o homem pode se comunicar através de atos cognitivos, agora é vista apenas sob seu aspecto compulsivo, que frustra a liberdade humana. O logos cósmico dos estóicos, outrora identificado com a providência, é substituído pela heimarmene, o fatalismo do cosmo opressor.
Esse fatum é dispensado pelos planetas ou estrelas em geral enquanto expoentes personificados da rigidez legislativa de um universo hostil. A mudança do conteúdo emocional do termo “cosmos” não é melhor simbolizada em lugar algum do que na depreciação do outrora setor mais divino do mundo sensível, as esferas celestes. O céu estrelado – para os gregos, ao menos desde Pitágoras, a mais pura encarnação da racionalidade do universo sensível e também garantia de sua harmonia – agora encara fixamente o homem com o semblante fixo de um poder alheio e tirânico.[18] Não mais seus parentes, mas tão poderosas quanto antes, as estrelas tornam-se tiranos – temidas, mas ao mesmo tempo desprezadas enquanto inferiores ao homem. “Eles (comenta Plotino, indignado com os gnósticos), que consideram até o mais vil dos homens como digno se ser chamado irmão, negam, insanamente, este título ao Sol, às estrelas do céu e à alma do mundo, nossa irmã, ela mesma!” (Enn. II. 9.18). Quem é mais “moderno”? Plotino ou os gnósticos? “Eles deveriam (diz Plotino em outro lugar) desistir de seus contos horríveis acerca das esferas cósmicas […] se o homem mesmo é superior aos outros seres animados, quanto mais as esferas, que não jazem no Todo por tirania, mas para que lhe confiram lei e ordem” (Ibid. 13). Nós ouvimos como os gnósticos se sentiam sobre esta lei; nada possui de providente e é hostil à liberdade humana: abaixo deste céu impiedoso, que já não inspira confiança ou louvor, o homem conscientiza-se de seu desamparo. Envolvido nele, submisso a seu poder ainda que superior dada a nobreza de sua alma, ele [o homem] conhece a si mesmo não tanto como parte [do cosmo] mas como algo inexplicavelmente posto neste sistema totalitário.[19]
Assim como Pascal, [o gnóstico] está assustado com sua alteridade solitária, descoberta enquanto desamparo que irrompe num sentimento pavoroso. O pavor como resposta da alma à sua estadia no mundo é um lugar-comum na literatura gnóstica. É a reação do “eu” à descoberta de sua situação e, na verdade, ele mesmo é um elemento dessa descoberta na medida em que marca o despertar de um sono ou intoxicação mundana, pois o poder dos espíritos das estrelas ou do cosmo em geral não é mera exterioridade, compulsão física, mas a mais radical alienação, a auto-alienação. Ao tomar consciência de si o eu descobre que não é de fato ele mesmo, mas sim o executor involuntário de desígnios cósmicos. O conhecimento, a gnosis, pode libertar o homem desta servidão; mas dado que o cosmo é contrário à vida e ao espírito, o conhecimento salvífico não pode visar a integração do homem no todo cósmico e à conformidade de suas leis, como visou a sabedoria estóica enquanto buscava a liberdade no conhecimento e no consentimento com a necessidade significativa do todo. Para os gnósticos, por outro lado, a alienação do homem no mundo deve ser aprofundada e trazida à tona, para que se possiblidade a extricação do seu eu interior que, por conseguinte, só tem a ganhar. O mundo – e não sua alienação – deve ser superado, e um mundo degradado devido a um sistema de poderes só pode ser superado através do poder. O poder em questão aqui nada mais é do que o domínio tecnológico;[20] o poder do mundo é, por um lado, superado pelo poder do Salvador que irrompe em seu sistema fechado de fora e, por outro, pelo poder do “conhecimento” trazido por ele que, como uma arma mágica, derrota os planetas e abre à alma um caminho através de suas ordens impeditivas. Diferentemente em sua forma das relações de poder entre o homem moderno e a causalidade do mundo, a semelhança ontológica reside no fato formal de que a oposição entre os poderes é a única relação com o todo da natureza que restou ao homem.
Gnosticismo, Existencialismo e Niilismo: parte II
Nota do tradutor:
Para os trechos de Pascal utilizei a versão de Pensamentos da edição de Os Pensadores. Para os trechos de Nietzsche utilizei a versão de A Vontade de Poder da Editora Contraponto. Rogo a alguma editora que, um dia, publique o Gnostic Religion, dado que o livro é capital em seu campo de estudo. Caso necessário eu ajudo a traduzir.
Caso o leitor tenha aprendido algo com nossos textos, favor considerar uma doação, via PIX [real] ou Lightning Network [Bitcoin], no código QR correspondente. Sua contribuição nos motiva a continuar fornecendo filosofia de forma simples, mas não simplificada.
Recomendações Bibliográficas
- Franco Volpi – O Niilismo [o assunto do cap.11é o mesmo do presente texto]
- Giovanni Reale – O Saber dos Antigos
- Giovanni Reale & Dario Antiseri – Filosofia: Idade Contemporânea
- Régis Jolivet – As Doutrinas Existencialistas
- Susanne K. Langer – Ensaios Filosóficos
- Zeljko Loparic – Heidegger Réu: Um ensaio sobre a periculosidade da filosofia
Notas:
[1]Vontade de Potência (1887), § 1. [N.A]
[2]Pensamentos, Fr. 205: “[…] e mesmo no que vejo, fundido na imensidão dos espaços que ignoro e que me ignoram, aterro-me e assombro-me de ver-me aqui e não em outra parte, uma vez que não existe motivo algum para que eu esteja aqui e não alhures, neste momento e não em outro momento qualquer. Quem me colocou em tais condições? Por ordem e obra de quem me foram designados este lugar e este momento? Memoria hospitis unius diei praetereuntis? [N.A]. Hans Jonas cita apenas o lugar; achei por bem colocar o trecho exato para maior conforto do leitor. [N.T.]
[3] O “silêncio”, assim como “abismo”, é um simbolismo gnóstico comumente utilizado para apontar a face oculta do deus absconditus. O ressurgimento do “silêncio” enquanto símbolo da vastidão do universo nos revela que o que antes era utilizado como analogia do transcendente agora o é para analogar o imanente. De qualquer forma, o sentimento de pequenez esmagadora e de “abandono” perante tamanha vastidão mantêm-se; o sentimento do gnóstico antigo é o mesmo do homem moderno, mudado apenas o “objeto silencioso.” [N.T.]
[4] Nesse sentido o mecanicismo cartesiano pode ser considerado com o precursor do niilismo moderno. A redução do cosmo às relações mecânicas da res extensa e sua futura redução ao sistema da física de matriz newtoniana eliminam do esquema do universo a causa final. Se o universo não tem finalidade então abre-se a porta para que se elimine a causa eficiente; assim, já em Kant, o tema da criação do universo é dado como indefinido; em Schopenhauer ele é negado, dado que no ciclo das causas dos fenômenos é impensável um início; e em Nietzsche instala-se a hipótese do eterno retorno. Não se quer, aqui, dizer que em matéria de física, Descartes, Newton ou qualquer outro tenha errado; o dado é que o efeitos foram precisamente os descritos. Podemos atentar, ainda no tema da res extensa, do mecanicismo e a eliminação da causa final, que o materialismo moderno não só alega a redução da res cogitans à res extensa como, na variante de Marx, exclui também, como naturalmente aconteceria, uma causa eficiente quando recusa a discussão do argumento etiológico. [N.T.]
[5] Pensamentos, Fr. 347: “O homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante. Não é preciso que o universo inteiro se arme para esmagá-lo: um vapor, uma gota de água bastam para matá-lo. Mas, mesmo que o universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre do que quem o mata, porque sabe que morre e a vantagem que o universo tem sobre ele; o universo desconhece tudo isso.” [N.A.]
[6] Pensamentos, Fr. 205 [N.A.]
[7] Giovanni Reale explica o fenômeno no cap. 9 de O Saber dos Antigos [N.T.]
[8] Aqui é possível observar como o tema da “criação de valores” é um tema eminentemente moderno e que pressupõe certo niilismo. Para a filosofia antiga, que via no universo uma criação divina ou pelo menos como dotado de sentido advindo de fora, era possível descobrir o que fazer segundo a ordem da natureza entendida como ordenamento do cosmos; daí a analogia do homem como microcosmo. Deve-se atentar ainda que a distinção moderna entre ‘fato’ e ‘valor’ também só pode surgir numa cosmologia secularizada, que contenha um niilismo em germe e, de fato, só pode funcionar nela; não podemos derivar ‘deveres’ de uma ordem meramente mecânica. Por outro lado, as morais antigas, por exemplo a Platônica, procuravam seu fundamento numa ordem que a tudo abarca, aquela que advém da ideia do Bem; não havia ‘criação de valores’; a criação de valores é executada para que se valorize coisas sem valor intrínseco e isso, como explica Jonas, é a situação do homem moderno. Podemos ir mais longe e atentar que depois de desvalorizar as coisas o homem desvalorizou a si mesmo. Podemos atentar ainda mais e perceber que tentativas de redução do ‘valor’ ético [e agora cientes de que o termo mesmo valor é ideologicamente carregado] ao valor econômico são pseudo-problemas advindos do pecado original da secularização do cosmo. [N.T.]
[9] É por conta disso que o pensamento heideggeriano é incapaz de fornecer uma moral e, neste sentido, decai no niilismo. Como explicado por Loparic, “segundo Heidegger, toda máxima estabelecida pelo homem é perecível e, portanto, não universalizável. Cada uma delas pode ser rejeitada perante novas escolhas de possibilidades do Estar-aí. A exigência kantiana da universalidade é uma ilusão baseada no tempo do ente intramundano, ilusão que quer negar a angústia humana, o desamparo perante a responsabilidade solitária para com as consequências de seus atos. Nem agora nem nunca poderemos calcar nosso agir em princípios universais, nem mesmo em algo parecido ao ser social pleno, no sentido de Marx.” Zeljko Loparic – Heidegger Réu: Um ensaio sobre a periculosidade da filosofia p.188-9
[10] De fato é a fase Nietzschiana, pois o Übermensch procura precisamente a supremacia desta vontade: “O super-homem substitui os velhos deveres pela própria vontade. Há “um dragão enorme que o espírito não quer continuar chamando seu patrão e seu Deus? Chama-se ele: ‘Tu deves”. Mas contra ele o espírito do leão arremessa as palavras “Eu quero”. Há os pregadores da morte, que são os pregadores da vida eterna: eles pregam mundos sobrenaturais, mas Zaratustra deseja ser “a voz do corpo devolvido à saúde”. É a voz da coragem e do orgulho: se quer o amor do próximo, “não a nossa compaixão, e o vosso valor salvou até agora quem corria perigo”. “O homem é corda esticada, esticada entre o bruto e o super-homem, uma corda esticada sobre um abismo.” Não está longe o momento da transição do velho homem embrutecido por seus desvalores e com a cabeça na areia das coisas celestes ao homem que cria o sentido da terra, isto é, novos valores todos terrestres.” Giovanni Reale – Filosofia: Idade Contemporânea p.251
[11] Não fui capaz de localizar a fonte do poema, ainda que tenha encontrado seu original alemão:
Die Krähen schrein
Und ziehen schwirren Flugs zur Stadt:
Bald wird es schnein, –
Wohl dem, der jetzt noch – Heimat hat!
Nun stehst du starr,
Schaust rückwärts, ach! wie lange schon!
Was bist du Narr
Vor Winters in die Welt entflohn?
Die Welt – ein Tor
Zu tausend Wüsten stumm und kalt!
Wer das verlor,
Was du verlorst, macht nirgends Halt.
Nun stehst du bleich,
Zur Winter-Wanderschaft verflucht,
Dem Rauche gleich,
Der stets nach kältern Himmeln sucht.
Flieg, Vogel, schnarr
Dein Lied im Wüstenvogel-Ton! –
Versteck, du Narr,
Dein blutend Herz in Eis und Hohn!
Die Krähen schrein
Und ziehen schwirren Flugs zur Stadt:
Bald wird es schnein, –
Weh dem, der keine Heimat hat!
[N.T.]
[12] Podemos ver, aqui, como o mecanicismo expulsou todos os atributos pelos quais a filosofia antiga tendia a procurar pelo divino. [N.T.]
[13] Cf. Pascal, loc. Cit: “E o fato de nossa imaginação perder-se nesse pensamento constitui, em suma, a maior característica sensível da onipotência de Deus” (sc. da imensidão de espaço cósmico). [N.A.]
[14] Aqui percebemos que antes de diagnosticador do niilismo, Nietzsche foi seu produto. O niilismo não se origina, como comenta Nietzsche, da “cisão” entre o “mundo real e o mundo ideal” levada a cabo por Platão, dado que o pensador grego nunca pensou nisso, mas de sucessivos erros que eliminaram toda a carga simbólica do cosmo. E, nesse sentido, a solução nietzschiana, que tenta “fundar valores” num cosmo morto não passa de tentativa estéril. A vontade de potência mesma transmuta-se em mero impulso desesperado e passa a nada ter que ver com sua atribuição original, dado que os homens que Nietzsche apontava como “superiores” e “criadores de valores” nada tinham que ver com tal caracterização, a começar pelo fato de que não criaram valor algum e, em verdade, achariam algo assim uma grande maluquice. [N.T.]
[15] O papel de Pascal como o primeiro existencialista moderno, aqui esboçado preliminarmente, foi amplamente exposto por Karl Lowith em seu artigo sobre “Man Between Infinities”, em Measure, A Critical Journal (Chicago) vol. 1 (1950). [N.A.]
[16] Susanne K. Langer via o existencialismo antes como um “movimento de retiro espiritual” do que como uma filosofia: “As velhas metáforas perderam sua pertinência, os velhos modelos são quebrados, e a Humanidade – especialmente a parte mais sensível e pensativa dela em toda parte — perdeu a orientação mental e a certeza moral. A Filosofia exibe hoje violentos sintomas desse colapso intelectual. O seu mais importante elemento de prova é a tendência dos pensadores sérios da atualidade a basear todo o seu cometimento filosófico não na racionalidade humana, mas no desespero da razão. […] Essa atitude, mais do que qualquer doutrina, constitui o espírito do “existencialismo” que impregna a maior parte da filosofia e da literatura contemporâneas no continente europeu, e de certo modo também nos países de fala inglesa. Os princípios que unem os diversos filósofos que se dizem “existencialistas” — notadamente Heidegger e Jaspers na Alemanha, Sartre e Marcel na França — são mais programáticos do que doutrinais. Na doutrina, esses escritores amiúde estão deveras apartados. É no objetivo, no ponto, de partida e no método que eles pertencem a um mesmo movimento espiritual […] O seu ponto de partida é o reconhecimento da existência como uma experiência interior suprema – não apenas a existência de cada um, mas a do mundo, que tem o mesmo caráter. Seu problema não é entender a existência, dado que ela é essencialmente irracional e portando elude o entendimento, mas sim aceitá-la e avaliá-la. A motivação mais profunda da busca desses filósofos é introduzir valores no mundo onde não os encontram. […] O existencialismo é um movimento de retiro intelectual. Pode haver sabedoria no retiro, mas nos tempos atuais o que nele há é sobretudo grave perigo. Se os líderes do pensamento, os filósofos por vocação e educação, desesperarem da razão, quem conservará a confiança para que o conhecimento possa ampliar-se a fim de manter sob seu comando o assombroso acréscimo de novos fatos?” Susanne K. Langer – Ensaios Filosóficos p.154-156. Nesta clave podemos entender o niilismo – ausência de valor – enquanto pressuposto do implícito existencialismo. [N.T.]
[17] Tertuliano, Contra Marcionem, I. 14. [N.A.]
[18] Este sentimento é sobejamente semelhante àquele que o jovem moderno experimenta ao tomar nota da diferença de tamanho entre nós, a Terra, o Sol, o Sistema Solar e algumas estrelas que poderiam conter em si inúmeros sóis; posto que há coisas tão grandes assim, não seríamos nós insignificantes? Isto é o que o jovem propenso ao niilismo pensa, e é esse o sentimento descrito por Jonas como próprio do gnóstico que sente oprimido por um universo tão vasto e hostil. O homem mal pode olhar para o sol sem cegar-se; precisamos de roupas especiais para que nos mantenhamos por algumas horas no espaço e ainda assim nossa permanência fora da gravidade da terra nos causa problemas nos ossos. Não seria o universo hostil? Há meteoros e radiação fora da terra e mesmo aqui há inúmeras coisas que podem nos matar. Juntemos todos esses dados e temos a formação de uma cosmovisão que fatalmente arrastará a pessoa ou a alguma forma de niilismo ou vertente do gnosticismo moderno, seja na forma de new-age ou esoterismos, ainda que tantos creiam que o resultado seja uma diminuição do ego – e não seria a morte do ego, que nem de longe é aquela referida pelos budistas, que nulifica o homem e o arrasta para o niilismo? Deixemos um exemplo para apreciação aqui. [N.T.]
[19] Sentimento análogo ao “abandono” heideggeriano: “O sentimento fundamental do estar-aí corresponde, portanto, ao sentimento do estar-lançado-aí, ou seja, ao sentimento do abandono ou da derrelicção (Geworfenheit). Este sentimento pertence à própria estrutura do ser e não resulta simplesmente de uma contingência acidental na maneira de chegar ao mundo mas sim da própria existência na sua realidade ontológica. Eu sou, com efeito, projetado no mundo sem que da minha parte tenha havido qualquer escolha; o sentimento de abandono e de solidão acompanha, portanto, a minha existência, impregnando-a de tal forma que imprime profundo carácter à sua natureza.” Régis Jolivet – As Doutrinas Existencialistas p.105 [N.T.]
[20] Esse é o fundamento gnóstico do transhumanismo. [N.T.]
Posts Relacionados
-
Gnosticismo Existencialismo e Niilismo: Parte II
Por Hans Jonas Tradução, notas e comentários de Helkein Filosofia Antes que prossigamos,…
-
Gnosticismo Existencialismo e Niilismo: Parte II
Por Hans Jonas Tradução, notas e comentários de Helkein Filosofia Antes que prossigamos,…
-
Niilismo, Ética e o Dilema do Bonde
Por Richard Cocks Tradução de Tibério Cláudio de Freitas Notas e comentários de Helkein Filosofia…