Por Edward Feser
Tradução e notas de Helkein Filosofia
O título do livro A Unidade da Experiência Filosófica, de Etienne Gilson, pode fazer supor se tratar de uma obra sobre filosofia em geral. Em última análise, é mesmo; mas sua maior parte é dedicada a descrições pormenorizadas das idéias de pensadores considerados por Gilson como problemáticos, feito Abelardo, Ockham, Descartes, Malebranche, Kant e Comte. Há, relativamente, poucos pensadores caídos nas graças de Gilson, qual Aristóteles e Aquino. Isto pode parecer estranho, e o leitor compreensivo poderia supor que a experiência de filósofos como Aristóteles e Aquino deveria, certamente, valer tanto quanto (e não mais do que) a de “pensadores mais rebeldes” quando se trata de esclarecer a natureza da filosofia.
No entanto, tal reação refletiria uma má compreensão do título do livro, pois a expressão “experiência filosófica”, nos termos de Gilson, difere de um “modo de vida” ou “perfil psicológico” compartilhado entre os filósofos. Ele não está preocupado com “o que é ser filósofo”, como diria Thomas Nagel. Um indicativo de suas intenções é dado pelos títulos das três primeiras partes do livro, a saber, “A Experiência Medieval”, “A Experiência Cartesiana” e “A Experiência Moderna”. Nisto, a “experiência” visada por Gilson é algo análogo àquela cultivada pela ciência empírica, tendo que ver com a submissão de idéias filosóficas a uma forma de experimentação.
Mas qual forma? Gilson defende que “a história da filosofia é, para o filósofo, semelhante ao laboratório para o cientista” (p. 95). As teses da ciência empírica implicam previsões verificáveis via observação; mas teses metafísicas, referentes a questões transcendentes ao observável, não admitem esta forma de verificação. No entanto, elas também possuem suas implicações e, se uma tese metafísica leva a conclusões incoerentes ou absurdas, adquirimos motivos para rejeitá-la.[1] Dadas as limitações do intelecto humano, nem todas as implicações de uma tese metafísica são elaboradas ou compreendidas por seu pensador originário; nisto, devemos olhar para o dito por seus sucessores no percurso do desenvolvimento das premissas seminais, levando-as para novas direções enquanto as criticam, e assim por diante. Daí o dever de olhar para a história da filosofia, e não para o laboratório, quando precisamos testar teses metafísicas, pois as “experiências” às quais elas foram submetidas estão, essencialmente, incorporadas do registro histórico da disciplina.
Mas, e quanto à “unidade”, referida por Gilson, no título de seu livro? Ele trata, ali, da forma como (argumenta o filósofo) uma série de teses filosóficas, desde o medievo até o presente, operaram um amplo movimento que as levou a um mesmo resultado problemático, a saber, transformar questões metafísicas em outras de um tipo diferente. O resultado absurdo foi o ceticismo em relação à metafísica. Mas tal ceticismo fica, sempre, intelectualmente insatisfatório, pois é seguido de uma nova tentativa de metafísica – e, infelizmente, uma responsável por reiniciar o ciclo e permitir outro descarrilamento. A lição aprendida de tal série de experiências refere-se ao erro de operar o movimento iniciador da queda.
Está, entre os exemplos de tropeços discutidos por Gilson, a tentativa de reduzir questões metafísicas a temas lógicos, algo associado, pelo filósofo, a Pedro Abelardo. Há, ainda, a intenção de resolver problemas metafísicos como se fossem teológicos, problema associado, por sua vez, a S. Boaventura.[2] Ockham, argumenta Gilson, procura resolver questões metafísicas apelando à psicologia[3]; Descartes, modelando o conhecimento humano à luz da matemática; Kant, o mesmo, mas na física newtoniana[4], e Comte na sociologia. Tais pontos de vista (chamados por Gilson de logicismo, teologismo, psicologismo, matematicismo, fisicalismo e sociologismo) tentam, essencialmente, transformar a metafísica noutra coisa. Todos eles agem tomando um setor da realidade (verdades matemáticas, físicas, etc.) como se fosse sua completude.
Mas a metafísica preocupa-se, naturalmente, com o todo – o ser enquanto ser – de modo que tentativas de transformá-la numa “parte do todo” a distorcem e, necessariamente, falham. Os críticos da metafísica concluem, a partir desta série de fracassos, se tratar de uma disciplina eminentemente defeituosa – opinião classificada, evidentemente, como non sequitur, pois ataca antes distorções da metafísica do que sua essência. A especulação metafísica sempre renascer, mesmo após tantos fracassos, reflete o fato de existirem questões reais tratadas somente por ela – temas demasiado profundos ante os examinados por outros ramos do conhecimento, onde tantos metafísicos malfadados tentaram, erradamente, remodelar sua disciplina.
É neste contexto que Gilson observa, celebremente: “a filosofia sempre enterra os seus coveiros” (p. 246). Isto, sugere, é uma “lei” estabelecida pelas “experiências” filosóficas descritas em seu livro (de uma forma análoga àquela como as leis físicas são estabelecidas por experiências físicas). Há, ainda, outras “leis” estabelecidas da mesma forma, como “o homem é, naturalmente, um animal metafísico” (p.248) e “pela metafísica transcender todo o conhecimento particular, ciência particular alguma é competente para resolver seus problemas ou ajuizar suas soluções” (p.249). O filósofo considera, assim, que a “experiência filosófica” justificou a abordagem de pensadores como Aristóteles e S. Tomás (embora sublinhe que isto não os torna a última palavra da filosofia).
A tese de Gilson sugere a seguinte analogia (feita por mim): a heresia, num sentido estritamente teológico, envolve destacar, de seu contexto dogmático, um elemento da doutrina cristã e então distorcê-lo (o termo “heresia”, advém do grego “hairesis”, que significa “escolha”).[5] O monofisismo, por exemplo, enfatiza a divindade de Cristo a ponto de apagar sua humanidade, distorcendo o dogma de Jesus ser Deus; o modalismo atenta à unidade divina e esquece a distinção entre as três Pessoas da Trindade, distorcendo seu dogma, e assim por diante. Os erros metafísicos descritos por Gilson são análogos a isto, enquanto envolvem “tomar” ou “escolher” alguma parte da realidade (matemática, física, mental, ou qualquer uma a mais) e então tratá-la como se fosse seu todo.
É possível expandir o exemplo. O Papa S. Pio X, em sua Pascendi Dominici Gregis, caracterizou o modernismo como “síntese de todas as heresias”.[6] A filosofia, desde o tempo de Ockham, possui caráter análogo, de forma que não é estranho a maioria (e, reconhecidamente, não tudo) do descrito por Gilson em A Unidade da Experiência Filosófica ocorrer depois dele e, em especial, durante o fim do medievo. A filosofia moderna pode, portanto, ser caracterizada como uma espécie de “síntese de todos os erros metafísicos”, pois recapitula erros passados, vistos na história da filosofia (no período pré-socrático, por exemplo), e também os ramifica e exacerba num período relativamente curto. E pelos erros morais e políticos característicos do mundo moderno advirem destes erros metafísicos, o livro de Gilson é fundamental para compreensão não apenas da filosofia moderna, mas da modernidade em geral.
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Notas:
[1] Neste sentido, o “falseamento” de teses metafísicas ocorre por redução ao absurdo. Para algo neste sentido, ver Dario Antiseri, Pensar em Filosofia, p.55 ss. [N.T.]
[2] Há, aqui, um problema de compreensão. Normalmente se acusa S. Boaventura de operar uma “redução” das ciências à teologia como se fosse uma “redução” em sentido moderno, i.e., mostrar de que forma os problemas de uma disciplina podem ser reduzidos à de outra enquanto os princípios de teoria A podem ser derivados daqueles presentes em teoria B. Mas não é isto que S. Boaventura diz; a “reductio” tratada por ele refere-se a uma “recondução” das ciências à teologia enquanto todo o conhecimento humano espelha notas fornecidas pelo divino. Não há uma redução axiomática, como pode parecer para alguns, mas uma “conexão” entre vários campos distintos. [N.T.]
[3] Gilson chama Ockham de psicologista no sentido de, alegadamente, este crer que uma análise psicológica do conhecimento humano refletiria uma análise filosófica da realidade, e as relações psicológicas entre as idéias seriam parelhas às relações reais entre as coisas (La unidad de la experiencia filosofica p.106). [N.T.]
[4] É um erro comum acusar Kant de calcar-se excessivamente na física newtoniana, como se sua filosofia fosse dependente dela; entretanto, o pensamento kantiano é tributário da ciência de seu tempo tanto quanto o qualquer filósofo em relação à ciência correspondente (de sua era). O criticismo kantiano é baseado, principalmente, numa teoria do juízo e na estética transcendental, cujas formas puras da intuição empírica são obtidas via abstração da experiência corrente, numa espécie de engenharia reversa cuja intenção é revelar suas condições de possibilidade. Tal procedimento, que revela o espaço e o tempo puros enquanto formas da experiência reciprocamente irredutíveis e condições necessárias para a presença de objetos efetivos, independe e opera para além da física newtoniana. Podemos conferir um exemplo disto comparando o espaço puro enquanto forma da intuição empírica, na Crítica da Razão Pura, e o espaço empírico (real) descrito no Fundamentos Metafísicos da Ciência da Natureza. [N.T.]
[5] “A palavra “heresia” vem do verbo grego hairein, que significa “escolher”: Uma hairesis, originalmente, significava apenas fazer uma escolha. Um significado derivado seria o de opinião. No Novo Testamento, bem como nas epístolas paulinas, a palavra já tem uma conotação especificamente religiosa […] No desenvolvimento posterior das instituições eclesiásticas cristãs, é claro, o termo adquiriu sentidos teológicos e legais muito mais específicos. A sua etimologia permanece altamente esclarecedora. Para que essa noção de heresia tenha algum sentido, deve-se estar pressuposta a autoridade de uma tradição religiosa. É apenas em relação a essa autoridade que alguém poderia assumir uma postura herética. O herético negava essa autoridade, e recusava-se a aceitar a tradição in toto. Em vez disso, ele selecionava entre os conteúdos da tradição aqueles que lhe interessavam, construindo assim a sua própria opinião desviante.” Peter L. Berger – O Imperativo Herético p.44-45 [N.T.]
[6] “[…] quando se fala de modernismo, não se trata de doutrinas vagas e desconexas, mas de um corpo uno e compacto de doutrinas em que, admitida uma, todas as demais também o deverão ser. Por isso, também quisemos servir-nos de uma forma quase didática, e nem recusamos os vocábulos bárbaros, que os modernistas adotam. Se, pois, de uma só vista de olhos atentarmos para todo o sistema, a ninguém causará pasmo ouvir-Nos defini-lo, afirmando ser ele a síntese de todas as heresias. Certo é que se alguém se propusesse juntar, por assim dizer, o destilado de todos os erros, que a respeito da fé têm sido até hoje levantados, nunca poderia chegar a resultado mais completo do que alcançaram os modernistas. Tão longe se adiantaram eles, como já o notamos, que destruíram não só o catolicismo, mas qualquer outra religião. Com isto se explicam os aplausos do racionalistas; por isto aqueles dentre os racionalistas que falam mais clara e abertamente, se vangloriam de não ter aliados mais efetivos que os modernistas. E de fato, voltemos um pouco, Veneráveis Irmãos, à prejudicialíssima doutrina do agnosticismo. Com esta, por parte da inteligência está fechado ao homem todo o caminho para chegar a Deus, ao passo que se torna mais aberto por parte de um certo sentimento e da ação. Quem não percebe, porém, que isto se afirma em vão?” [N.T.]
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