- Introdução
Essa Imediatez, essa multiplicidade e essa força simbólica dos diálogos já visíveis nas primeiras alusões, fizeram de Platão o autor que, a despeito das diferenças das culturas nacionais, é considerado hoje em toda parte o mais eficaz instigador do interesse filosófico. Quem começa a filosofar com Platão pode ter certeza de estar no caminho certo.
Thomas A. Szlezák — Ler Platão p.15
Ler Platão é um singularmente prazeroso. Para além de ser, praticamente, o fundador da filosofia ocidental enquanto engloba, em sua obra, mesmo em germe, quase todos os temas e técnicas filosóficas discutidas até hoje, a confeccionou de forma a poder ser lida pelo leigo e o veterano sem esgotar seu conteúdo — e, mesmo não sobrando muito a extrair de seus escritos após leituras sucessivas, sua filosofia contém, ainda, um ensinamento oral.
Entretanto, nem tudo são flores; há duas características intrigantes para o leitor moderno: a) a escrita dialógica e b) a fragmentação temática. Habituado à leitura de escritos “monológicos”, algo estranho à filosofia platônica, e à circunscrição temática em obras individuais que pretendem esgotar seu tema, é natural o estudante moderno estranhar o antigo filósofo espalhar sua doutrina em várias obras e expressá-la em forma de diálogo. Sendo assim, é interessante haver um guia que forneça as linhas gerais da leitura do corpus platônico e responda à questão: como ler Platão?
Os temas tratados por Platão comumente jazem espalhados em dois ou mais diálogos organizados de forma hierárquica e processual, de forma a apresentar uma questão em obra A e reelaborá-la em obra B e, talvez, resolvê-la numa C. Temos, portanto, três modelos identificáveis de diálogo: aporético, referente à discussão de uma questão sem a resolver; intermediário, reelaborando algo deixado aberto num aporético; e maduro, dedicado a encerrar um tema e iniciar outro.
Todavia, os diálogos não são lineares ou monotemáticos; o que ocorre é um entrelaçamento temático, de forma a haver um tema principal – por exemplo, na República, a Justiça – interligado a uma pletora de temas secundários que a) lhe fornecerão o material para a discussão do primeiro plano e/ou b) emergirão da discussão principal. Assim, a forma do diálogo platônico se confunde com a forma mesma da filosofia: não existem temas isolados. Portanto, concluímos a impossibilidade da apreensão do escopo de uma questão a partir da leitura de apenas uma obra “em específico”, pois nenhum dos diálogos é específico; contém apenas questões de primeiro e segundo plano.
Há de se atentar, ainda, a uma das grandes virtudes da filosofia platônica, que chamarei de processualidade dialética; tratar-se do incentivo à reprodução imaginativa das várias linhas de raciocínio simultâneas e entrelaçadas que formam o sentido dos diálogos platônicos: Sócrates coloca uma questão, avalia sua recepção por interlocutores, procura pelos termos corretos para expressar questões anexas e então retorna ao início para saber como proceder, num percurso cujo resultado nem sempre é positivo enquanto desemboca numa conclusão. No entanto, o ponto nevrálgico é, aqui, o postulado dos raciocínios. Nisto, a conclusão dos diálogos é posta em segundo plano, mas jamais excluída como algo acessório da filosofia; no entanto, em alguns diálogos, a intenção é claramente colocar e mostrar como se pensa uma questão filosófica.
Para exemplificar o antedito, basta apontar a miríade de autores que, crendo ver no Teeteto o encerramento da discussão epistemológica platônica, imputam ao filósofo a tese do conhecimento enquanto crença verdadeira e justificada, afirmação tanto não defendida por Platão como refutada por ele mesmo no mesmo livro. Há ainda o caso dos acostumados desde cedo a versões pasteurizadas da parábola da caverna e, entendendo com certa razão que esta encerra algo como um resumo das intenções do pensamento platônico, terminam por crer ser uma boa alternativa iniciar a leitura de Platão pela República, diálogo que procura encerrar uma série de questões postas em obras anteriores. Tal decisão comumente termina mal.
Devo dizer, por fim, que não sou especialista em Platão. O presente guia é resultado da leitura do corpus platonicum completo e de comentadores consagrados. Portanto, ofereço-o como forma de evitar que outros cometam erros comuns, como tentar iniciar a leitura do corpus pelo Sofista [continuação da discussão do Parmênides, uma das obras mais complicadas do corpus] e, assim, aproveitem melhor os ensinamentos platônicos.
- Razões
Platão conseguiu criar obras de arte literária, que não determinam a filosofia de forma abstrata […] a arte expositiva platônica transmite ao leitor o que é realmente filosofia e lhe dá a impressão de estar implicado em cada embate e confronto.
A ordem dos escritos foi baseada, para além de em minha leitura pessoal, nas sugestões temáticas e históricas contidas, essencialmente, no capítulo I do Platão de Franco Trabattoni, no capítulo II do Platão de Michael Erler e no capítulo I da primeira seção do História da Filosofia Grega e Romana III: Platão de Giovanni Reale.
Do primeiro, herdei principalmente a divisão triádica [aporético, intermediário e maduro] enquanto reflexo do processo de desenvolvimento da filosofia platônica, expresso mais ou menos na seguinte categorização cronológica: diálogos do primeiro período, diálogos da maturidade e diálogos da velhice. Todavia, discordo do autor por este negar certa via evolucionária do pensamento platônico, algo bem visível na evolução, nas Leis, das teses vistas na República. Do segundo, herdei a sugestão quadrilógica da saga, vida ou cronologia fictícia [Erler p.62] de Sócrates, composta por Eutífron, Apologia de Sócrates, Críton e Fédon, — o que, em minha opinião, possibilita o leitor seguir a sugestão de Thomas Szlezák [em Ler Platão] e ler os diálogos como se fossem um drama. A mesma diretriz organiza a série A República, Timeu e Crítias. Todavia, não pude cometer [e nem o Erler, a saber] a loucura de, atendo-me a certa cronologia, postular o Parmênides, diálogo figurado pelo jovem Sócrates, como o primeiro da série de leituras. Do terceiro, herdei a idéia de finalidade protréptica dos primeiros diálogos, buscando uma forma de, antes de qualquer coisa, tratar de temas educativos e morais antes de tomar questões mais robustas e de certa forma impessoais; daí os diálogos se iniciarem com o personagem “Sócrates” e encerrarem com o “estrangeiro ateniense”.
Nisto, optei pela série Crátilo, Cármides, Laques, Íon e Menexeno, os cinco diálogos contidos no volume VI da obra completa, como primeiras recomendações ao interessado na leitura do corpus platônico. Enquanto o primeiro introduz um tema filosófico relevante, o dos primórdios da filosofia da linguagem sob forma didática através da avaliação de teses opostas, os outros diálogos contêm temas ético/técnicos: o Cármides e o Lacques contém, em primeiro plano, discussões acerca da virtude; o Íon trata, por sua vez, do limite do uso da Ilíada [e da poesia em geral] como substrato para a especulação filosófica [sendo, portanto, sobre a técnica filosófica]; e o Menexeno, por vezes tratado como espúrio, contém em seu tema, o da oração fúnebre, material que pode ser ligado à discussão sobre a piedade contida, por exemplo, no Eutífron.
No entanto, mesmo na ausência de uma forma definitiva de organizar tais leituras, é notória a presença de séries rígidas, e algumas delas são: as obras referentes à vida de Sócrates: Eutífron, Apologia de Sócrates, Críton e Fédon; obras voltadas ao conhecimento e à posição do sofista e do político — e aqui vemos temas primários e secundários se entrelaçando: Parmênides, Teeteto, Sofista e Político [O Político é uma continuação do Sofista, que, por sua vez, pressupõe o Parmênides; o mesmo valendo para o Teeteto]. Procurei manter tais séries como referência para o guia e, assim, poupar o leitor de certa anarquia organizacional.
Boa sorte àquele que decidiu seguir o caminho da filosofia e que nunca se esqueça de que o melhor modo de caracterizá-la é como nota de rodapé do pensamento platônico.
The safest general characterization of the European philosophical tradition is that it consists of a series of footnotes to Plato. I do not mean the systematic scheme of thought which scholars have doubtfully extracted from his writings. I allude to the wealth of general ideas scattered through them. His personal endowments, his wide opportunities for experience at a great period of civilization, his inheritance of an intellectual tradition not yet stiffened by excessive systematization, have made his writings an inexhaustible mine of suggestion.
Alfred North Whitehead — Process and Reality p.39
- Edições
Listo, abaixo, as edições que li e utilizo como material para a confecção deste guia; nisto, mesmo o leitor podendo adquirir a obra completa de Platão pela Edipro, recomendei também algumas edições alternativas, normalmente bilíngües, para satisfazer o estudante interessado em consultar o texto grego. Não sou muito exigente com edições, pois creio que possíveis erros possam receber correção mediante a consulta de comentários especializados – e, aqui, reservo o direito de ser chato –; entretanto, também devo alertar que edições demasiado espartanas são inadmissíveis. Edições da República com menos de 400 páginas, sem a marcação crítica nos parágrafos, versões duvidosas em domínio público e materiais semelhantes devem ser evitados a todo custo.
Ordem e leitura recomendada para o corpus platônico:
- Crátilo
- Cármides
- Laques
- Íon
- Menexeno
- Hípias Maior
- Hípias Menor
- Eutidemo
- Protágoras
- Górgias
- Mênon
- Parmênides
- Teeteto
- O Sofista
- Político
- Eutífron
- Apologia de Sócrates
- Críton
- Fédon
- Lísis
- Filebo
- Banquete
- Fedro
- A República
- Timeu
- Crítias
- Leis
- Epinomis
- Carta VII
Comentários
Listo aqui alguns de meus comentários favoritos. Tenho especial carinho pela leitura dos escritos de Thomas A. Szlezák e de Giovanni Reale, não apenas por sua precisão mas também pela didática ímpar. Talvez o leitor estranhe que alguns dos citados discordem frontalmente entre si; Franco Trabattoni, por exemplo, discorda do paradigma das doutrinas não escritas defendidas radicalmente por Szlezák. Entretanto, não creio que seja de bom-tom nivelar os comentários numa falsa uniformidade como se todos, por exemplo, fossem partidários de Tübingen-Milão e todos os platônicos concordassem com tudo – ainda que, em linhas gerais, isso deva acontecer; afinal, o autor interpretado é um só. Os comentários poderão ser adquiridos e lidos a qualquer momento a depender da necessidade; entretanto, recomendo sua leitura seja iniciada a partir do nono diálogo do guia, o Protágoras, para que o estudante já tenha em mente o funcionamento da filosofia platônica partir da fonte primária. É importante sempre ter em mente: o juiz do comentário é sempre o autor comentado; caso o comentarista diga algo frontalmente contrário ao verificado na fonte primária, então deverá ser ou descartado, ou posto em dúvida. Sendo assim, é importante que sempre conheçamos algo do autor visado antes de consultar material adicional.
- Alberto Barnabé — Platão e o Orfismo: Diálogos Entre Religião e Filosofia
- Charles H. Kahn — Platão e o diálogo pós-socrático
- Delmar Cardoso — A Alma Como Centro do Filosofar de Platão
- Elisabetta Cattanei — Entes matemáticos e metafísica — Platão, a Academia e Aristóteles em confronto
- Eudoro de Sousa – Catábases: Estudos Sobre Viagens aos Infernos na Antiguidade
- Fernando Muniz — A Potência da Aparência: Um Estudo Sobre o Prazer e a Sensação nos Diálogos de Platão
- Fernando Rey Puente — Ensaios Sobre o Tempo na Filosofia Antiga
- Franco Ferrari — O Exercício da Razão no Mundo Clássico
- Franco Trabattoni — Platão
- Giovanni Casertano – O Prazer, a Morte e o Amor nas Doutrinas dos Pré-Socráticos
- Giovanni Casertano — Paradigmas da verdade em Platão
- Giovanni Reale — História da filosofia grega e romana v.3: Platão
- Giovanni Reale — História da Filosofia Vol.1.
- Giovanni Reale — Para uma nova interpretação de Platão
- Hector Benoit — Platão e as Temporalidades: A Questão Metodológica
- Jaa Torrano — O Pensamento Mítico no Horizonte de Platão
- Jean-François Pradeau — As leis de Platão
- Jill Gordon — O mundo erótico de Platão
- Juliano Paccos Caram — Platão contra o amor platônico
- Julius Moravcsik — Platão e platonismo: Aparência e realidade na ontologia, na epistemologia e na ética
- Julius Stenzel – Platão Educador
- Loraine Oliveira — Plotino, Escultor de Mitos
- Luc Brisson — Platão: Leituras
- Luiz Rohden – Filosofar com Gadamer e Platão. Hermenêutica Filosófica a Partir da Carta Sétima
- Maria Dulce Reis — Psicologia, ética e política — A tripartição da “psykhé” na “República” de Platão
- Maria Teresa Nogueira —Platão: Helenismo e Diferença
- Mario Vegetti — Um Paradigma no Céu: Platão Político, de Aristóteles ao Século XX
- Marcelo Pimenta Marques — Estudos platônicos — Sobre o ser e o aparecer, o belo e o bem
- Michael Erler —Platão
- Richard Kraut — Platão
- Thomas M. Robinson — A psicologia de Platão
- Thomas M. Robinson — As Origens da Alma: Os Gregos e o Conceito de Alma de Homero a Aristóteles
- Thomas Alexander Szlezák — Ler Platão
- Thomas Alexander Szlezák — Platão e a escritura da filosofia
- Thomas Alexander Szlezák — A imagem do dialético nos diálogos tardios de Platão
- Thomas Alexander Szlezák — Platão e Aristóteles na Doutrina do Nous de Plotino
Resenhas platônicas:
Artigos e Ensaios de Platão:
- A.E. Taylor – Timeu e Crítias: Primeira Parte
- A.E. Taylor – Timeu e Crítias: Primeira Parte
- A.E. Taylor – As Leis e Epinomis: Primeira Parte
- Julianne M. Romanello — O Platão de Eric Voegelin: Parte I
- Julianne M. Romanello — O Platão de Eric Voegelin: Parte II
- Paul Elmer More — Platonismo e Pseudoplatonismo
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