- Introdução
Essa Imediatez, essa multiplicidade e essa força simbólica dos diálogos já visíveis nas primeiras alusões, fizeram de Platão o autor que, a despeito das diferenças das culturas nacionais, é considerado hoje em toda parte o mais eficaz instigador do interesse filosófico. Quem começa a filosofar com Platão pode ter certeza de estar no caminho certo.
Ler Platão é um singularmente prazeroso. Para além de ser, praticamente, o fundador da filosofia ocidental enquanto engloba em sua obra, ainda que em germe, quase todos os temas e técnicas filosóficas discutidas até hoje, escreveu seus livros de forma que pudessem ser lidos pelo leigo ou pelo veterano sem que seu conteúdo fosse esgotado — e, mesmo que de certa forma não sobre muito o que retirar se seus escritos após muitas leituras, ainda há o ensinamento oral.
Entretanto, nem tudo são flores; há duas características intrigantes para o leitor moderno: a) a escrita dialógica e b) a fragmentação temática. Habituado à leitura de escritos “monológicos”, algo estranho à filosofia platônica, e à circunscrição temática em obras individuais que pretendem dizer tudo o que houver para ser dito sobre algo, é natural que o estudante moderno estranhe que o antigo filósofo tenha espalhado sua doutrina em várias obras escritas em forma de diálogo. Sendo assim, é interessante que haja um guia que forneça as linhas gerais da leitura do corpus platônico e responda à questão: como ler Platão?
Os temas tratados por Platão comumente jazem espalhados em dois ou mais diálogos organizados de forma hierárquica e processual, de forma que dada questão posta e discutida em obra A será redescoberta em obra B e, talvez, resolvida em obra C; portanto, podemos identificar três modelos de diálogo: diálogos aporéticos, aqueles que iniciam a discussão de algum tema; diálogos intermediários, que procuram discutir novamente algo deixado sem solução numa obra anterior; e diálogos maduros, que procuram encerrar a questão fornecendo o fecho da abóbada. Todavia, os diálogos não são lineares ou monotemáticos; o que ocorre é um entrelaçamento temático, de forma que, ainda que haja um tema principal – por exemplo, na República, a Justiça –, ele estará intrinsecamente interligado com uma pletora de temas secundários que a) lhe fornecerão o material para a discussão do primeiro plano e/ou b) emergirão da discussão principal. Assim, a forma do diálogo platônico se confunde com a forma mesma da filosofia: não existem temas isolados. Portanto, concluímos a impossibilidade da apreensão do escopo de uma questão a partir da leitura de apenas uma obra “em específico”, pois nenhum dos diálogos é específico; o que temos são diálogos que contém certa questão em primeiro plano e uma pletora de que questões de segunda ordem. Há de se atentar, ainda, que uma das grandes virtudes da filosofia platônica é o que chamarei de processualidade dialética: ela será bem entendida na proporção em que o leitor reproduzir, mentalmente, as várias linhas de raciocínio que se entrelaçam para formar o sentido dos resultados obtidos. Sendo assim, de nada vale coletar as conclusões dos diálogos; na verdade, seria mais produtivo meditar sobre um diálogo aporético do que anotar uma conclusão da qual não se conhece o sentido.
Para que exemplifiquemos o antedito, basta que apontemos a miríade de autores que, crendo que o Teeteto encerra a discussão epistemológica na filosofia platônica, imputaram ao filósofo a tese do conhecimento enquanto crença verdadeira e justificada, afirmação tanto não defendida por Platão como refutada por ele mesmo tanto no Teeteto quando em outras de suas obras. Há ainda o caso das pobres almas que, acostumadas desde cedo a versões pasteurizadas da parábola da caverna e crendo com certa razão que esta encerra algo como um resumo das intenções do pensamento platônico, terminam por crer ser uma boa alternativa iniciar a leitura de Platão pela República, diálogo que procura encerrar uma série de questões postas em obras anteriores. Não raro tal decisão culmina em desastre.
Por fim, devo dizer que não me considero especialista em Platão; tudo o que fiz foi o que compete a qualquer estudante de filosofia decente, a saber, ler a obra completa e acompanhá-la de alguns comentadores consagrados que, por sua vez, me serviram de fonte para a confecção deste guia. Portanto, ofereço-o como forma de evitar que outros cometam erros comuns como tentar iniciar a leitura do corpus pelo Sofista [que continua a discussão do Parmênides, uma das obras mais complicadas do corpus] e, assim, possam aproveitar melhor os ensinamentos platônicos.
- Razões
Platão conseguiu criar obras de arte literária, que não determinam a filosofia de forma abstrata […] a arte expositiva platônica transmite ao leitor o que é realmente filosofia e lhe dá a impressão de estar implicado em cada embate e confronto.
A ordem dos escritos foi baseada, para além de em minha leitura pessoal, nas sugestões temáticas e históricas contidas, essencialmente, no capítulo I do Platão de Franco Trabattoni, no capítulo II do Platão de Michael Erler e no capítulo I da primeira seção do História da Filosofia Grega e Romana III: Platão de Giovanni Reale.
Do primeiro herdei principalmente a divisão triádica [aporético, intermediário e maduro] enquanto reflexo do processo de desenvolvimento da filosofia do próprio Platão, enquanto expressa na seguinte categorização cronológica: diálogos do primeiro período, diálogos da maturidade e diálogos da velhice. Todavia, discordo do autor na medida em que este nega certa via evolucionária do pensamento platônico. Do segundo herdei a sugestão quadrilógica da saga, vida ou cronologia fictícia [Erler p.62] de Sócrates composta por Eutífron, Apologia de Sócrates, Críton e Fédon, o que, em minha opinião, possibilita que o leitor siga a sugestão de Thomas Szlezák [em Ler Platão] e leia os diálogos como se fosse um drama. A mesma idéia organiza a série A República, Timeu e Crítias. Todavia, não pude cometer [e nem o Erler, a saber] a loucura de, atendo-me à certa cronologia, postular o Parmênides, diálogo figurado pelo jovem Sócrates, como o primeiro da série de leituras. Do terceiro herdei a idéia de finalidade protréptica dos primeiros diálogos, buscando uma forma de, antes de qualquer coisa, tratar de temas educativos e morais antes de tomar questões mais robustas e de certa forma impessoal.
Por conta disso optei pela série Crátilo, Cármides, Laques, Íon e Menexeno, os cinco diálogos contidos no volume VI da obra completa como primeiras recomendações ao interessado na leitura do corpus platônico. Enquanto o primeiro introduz um tema filosófico relevante, o dos primórdios da filosofia da linguagem sob forma didática através da avaliação de teses opostas, os outros diálogos contêm temas ético/técnicos: o Cármides e o Lacques contém, em primeiro plano, discussões acerca da virtude; o Íon trata, por sua vez, do limite do uso da Ilíada [e da poesia em geral] como substrato para a especulação filosófica [sendo, portanto, sobre a técnica filosófica]; e o Menexeno, por vezes tratado como espúrio, contém em seu tema, o da oração fúnebre, material que pode ser ligado à discussão sobre a piedade contida, por exemplo, no Eutífron. Todavia, ainda que não haja apenas uma forma de organizar as leituras, o dado é que há séries rígidas; algumas delas são: o conjunto de obras que conta a vida de Sócrates: Eutífron, Apologia de Sócrates, Críton e Fédon; obras que discutem o conhecimento e a posição do sofista e do político — e aqui vemos temas primários e secundários se entrelaçando: Parmênides, Teeteto, Sofista e Político [O Político é uma continuação do Sofista, que por sua vez pressupõe o Parmênides; o mesmo vale para o Teeteto]. Procurei manter esse centro como referência para o guia e, assim, poupar o leitor de certa anarquia organizacional.
Boa sorte àquele que decidiu seguir o caminho da filosofia e que nunca se esqueça de que o melhor modo de caracterizá-la é como nota de rodapé do pensamento platônico.
The safest general characterization of the European philosophical tradition is that it consists of a series of footnotes to Plato. I do not mean the systematic scheme of thought which scholars have doubtfully extracted from his writings. I allude to the wealth of general ideas scattered through them. His personal endowments, his wide opportunities for experience at a great period of civilization, his inheritance of an intellectual tradition not yet stiffened by excessive systematization, have made his writings an inexhaustible mine of suggestion.
Alfred North Whitehead — Process and Reality p.39
- Edições
Listo abaixo as edições que li e utilizo como material para a confecção deste guia; por conta disto, ainda que o leitor possa simplesmente adquirir a obra completa pela EdiPro, recomendei algumas edições alternativas, normalmente bilíngües, para que o estudante interessado em consultar o texto grego seja satisfeito. Não sou muito exigente com edições, pois creio que os erros contidos nela podem, normalmente, ser corrigidos mediante a leitura de comentários especializados – e, aqui, reservo o direito de ser chato –; entretanto, também devo alertar que edições demasiado baratas a ponto de fazer o santo desconfiar são inadmissíveis. Edições da República com menos de 400 páginas, versões sem a marcação crítica nos parágrafos, versões duvidosas em domínio público e materiais semelhantes devem ser evitados a todo custo.
Ordem e leitura recomendada para o corpus platônico:
- Crátilo
- Cármides
- Laques
- Íon
- Menexeno
- Hípias Maior
- Hípias Menor
- Eutidemo
- Protágoras
- Górgias
- Mênon
- Parmênides
- Teeteto
- O Sofista
- Político
- Eutífron
- Apologia de Sócrates
- Críton
- Fédon
- Lísis
- Filebo
- Banquete
- Fedro
- A República
- Timeu
- Crítias
- Leis
- Epinomis
- Carta VII
Comentários
Listo aqui alguns de meus comentários favoritos. Tenho especial carinho pela leitura dos escritos de Thomas A. Szlezák e de Giovanni Reale, não apenas por sua precisão mas também pela didática ímpar. Talvez o leitor estranhe que alguns dos citados discordem frontalmente entre si; Franco Trabattoni, por exemplo, discorda do paradigma das doutrinas não escritas defendidas radicalmente por Szlezák. Entretanto, não creio que seja de bom-tom nivelar os comentários numa falsa uniformidade como se todos, por exemplo, fossem partidários de Tübingen-Milão e todos os platônicos concordassem com tudo – ainda que, em linhas gerais, isso deva acontecer; afinal, o autor interpretado é um só. Os comentários poderão ser adquiridos e lidos a qualquer momento a depender da necessidade; entretanto, recomendo sua leitura seja iniciada a partir do nono diálogo do guia, o Protágoras, para que o estudante já tenha em mente o funcionamento da filosofia platônica partir da fonte primária. É importante sempre ter em mente: o juiz do comentário é sempre o autor comentado; caso o comentarista diga algo frontalmente contrário ao verificado na fonte primária, então deverá ser ou descartado, ou posto em dúvida. Sendo assim, é importante que sempre conheçamos algo do autor visado antes de consultar material adicional.
- Alberto Barnabé — Platão e o Orfismo: Diálogos Entre Religião e Filosofia
- Charles H. Kahn — Platão e o diálogo pós-socrático
- Delmar Cardoso — A Alma Como Centro do Filosofar de Platão
- Elisabetta Cattanei — Entes matemáticos e metafísica — Platão, a Academia e Aristóteles em confronto
- Eudoro de Sousa – Catábases: Estudos Sobre Viagens aos Infernos na Antiguidade
- Fernando Muniz — A Potência da Aparência: Um Estudo Sobre o Prazer e a Sensação nos Diálogos de Platão
- Fernando Rey Puente — Ensaios Sobre o Tempo na Filosofia Antiga
- Franco Ferrari — O Exercício da Razão no Mundo Clássico
- Franco Trabattoni — Platão
- Giovanni Casertano – O Prazer, a Morte e o Amor nas Doutrinas dos Pré-Socráticos
- Giovanni Casertano — Paradigmas da verdade em Platão
- Giovanni Reale — História da filosofia grega e romana v.3: Platão
- Giovanni Reale — História da Filosofia Vol.1.
- Giovanni Reale — Para uma nova interpretação de Platão
- Hector Benoit — Platão e as Temporalidades: A Questão Metodológica
- Jaa Torrano — O Pensamento Mítico no Horizonte de Platão
- Jean-François Pradeau — As leis de Platão
- Jill Gordon — O mundo erótico de Platão
- Juliano Paccos Caram — Platão contra o amor platônico
- Julius Moravcsik — Platão e platonismo: Aparência e realidade na ontologia, na epistemologia e na ética
- Julius Stenzel – Platão Educador
- Loraine Oliveira — Plotino, Escultor de Mitos
- Luc Brisson — Platão: Leituras
- Luiz Rohden – Filosofar com Gadamer e Platão. Hermenêutica Filosófica a Partir da Carta Sétima
- Maria Dulce Reis — Psicologia, ética e política — A tripartição da “psykhé” na “República” de Platão
- Maria Teresa Nogueira —Platão: Helenismo e Diferença
- Mario Vegetti — Um Paradigma no Céu: Platão Político, de Aristóteles ao Século XX
- Marcelo Pimenta Marques — Estudos platônicos — Sobre o ser e o aparecer, o belo e o bem
- Michael Erler —Platão
- Richard Kraut — Platão
- Thomas M. Robinson — A psicologia de Platão
- Thomas M. Robinson — As Origens da Alma: Os Gregos e o Conceito de Alma de Homero a Aristóteles
- Thomas Alexander Szlezák — Ler Platão
- Thomas Alexander Szlezák — Platão e a escritura da filosofia
- Thomas Alexander Szlezák — A imagem do dialético nos diálogos tardios de Platão
- Thomas Alexander Szlezák — Platão e Aristóteles na Doutrina do Nous de Plotino
Resenhas platônicas:
Artigos e Ensaios de Platão:
- A.E. Taylor – Timeu e Crítias: Primeira Parte
- A.E. Taylor – Timeu e Crítias: Primeira Parte
- A.E. Taylor – As Leis e Epinomis: Primeira Parte
- Julianne M. Romanello — O Platão de Eric Voegelin: Parte I
- Julianne M. Romanello — O Platão de Eric Voegelin: Parte II
- Paul Elmer More — Platonismo e Pseudoplatonismo
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