Dixit insipiens in corde suo: Non est Deus. Corrupti sunt, et abominables facti sunt in iniquitatibus; non est qui faciat bonum.
Liber Psalmorum 52
Eric Voegelin, no decurso da primeira das palestras que, transcritas, compõem o livro Hitler e os Alemães, leu algumas das cartas que haviam sido enviadas ao jornal Süddeustche Zitung em resposta ao artigo Hitler’s gar liebliches Spiege/bild oder: Mißglücke ‘Anatomie eines Diktators’. Em uma destas cartas, enquanto analisava a questão acerca de como foi possível a ascensão do Pintor Austríaco ao poder, o filósofo identificou o que chamou de fenômeno de resistência: certo atrito psicológico sofrido pelo sujeito que se depara com uma conclusão cuja possibilidade depreende-se de premissas incômodas. No contexto descrito, referente à eleição do Dito Cujo, há duas possibilidades: a) se o Bigode tiver sido um estúpido ou criminoso, seus eleitores foram o mesmo; b) se ele não fora nem estúpido e nem criminoso, então segue-se a ignorância de seus eleitores e, nesse caso, temos “uma situação de apodrecimento intelectual e ético […] Não é apenas um problema alemão. É um problema internacional.”[1]
Todavia, no decorrer da análise, ao ler outra entre as cartas, o filósofo encontra uma espécie curiosa do mesmo fenômeno; o remetente, admitindo-se jovem, coloca algumas questões: se o Inominável foi um simplório, como poderia ter modelado uma época? Caso admitamos sua simploriedade, segue-se a negação das “qualidades espirituais de toda uma geração”. A leitura da carta se encerra com o remetente dizendo que o único crime do ditador foi “o de ser um jogador que perdeu, e que levou todo um povo consigo […] política é um jogo e os ganhos aumentam quando as apostas são altas”. A carta deixa Voegelin intrigado, o que não é de se estranhar, tendo em vista que ele mesmo precisou fugir da Alemanha para que pudesse manter sua cabeça grudada no pescoço. O dado é que o filósofo nota que o remetente exclui, in limine, a possibilidade de uma erosão espiritual da classe média alemã enquanto fator para a eleição de seu próprio carrasco. Este ponto de resistência, essa recusa implícita em admitir que as classes letradas foram responsáveis pela ascensão do monstro que as engoliria, digo, o escândalo que escamoteia o dado de que aqueles que, presumidamente, deveriam compor uma espécie de aristocracia que impediria que esse tipo de cataclismo aconteça, podem ter sido, precisamente, o fator determinante para seu acontecimento; esta forma de atrito psicológico foi nomeada por Voegelin, em referência ao nome da rua em que residia o remetente, de Síndrome de Buttermelcher.
A discussão acerca dos fatores relevantes à ascensão do Pintor Austríaco são infindáveis; entretanto, que interessa ao estudante de filosofia conhecer a síndrome de Buttermelcher? Cumpre que, para que esclareçamos a questão, atentemos a alguns fatores. Voegelin identifica, em primeiro lugar, enquanto gênero, o fenômeno da resistência enquanto negação ou restrição de um dado incômodo através da esquiva do problema, tal qual, por exemplo, aquele que “recuou ante as provas e o ciúme incerto perdeu-se na imensidade do pesar”[2]; logo depois, identifica a espécie: negação de que a classe supostamente superior tenha agido estultamente. Nosso filósofo possui uma boa gama de expressões para apontar modalidades de negação da realidade ou de algum de seus aspectos, como eclipsamento da realidade [eclipse of reality], enclausuramento existencial [closed existence], realidade secundária [second reality] e até um empréstimo lonerganiano, scotosis.[3] O caso do remetente de Buttermelcher refere-se a uma aversão ligada à confiança no título. Como exposto por Voegelin, no início da carta, o remetente afirma que a descrição de Hitler feita pelo jornalista é menos convincente do que a exposta pelo Professor Doutor criticado pelo segundo, o que faz com que o filósofo se recorde de certa atenção extraordinária a títulos praticada pelos membros do regime. Claro que não há mal algum em respeitar aquele que se esforçou para obter um título; mas o que ocorre aqui é o que podemos chamar, analogamente, de erro platônico, certa identificação entre o erro e a ignorância e, em contrapartida, do bem e da inteligência na medida em que ambos atrelam-se no símbolo do titulado como se a bondade do papel implicasse na bondade do ator[4]: “se alguém é doutor, então isso deve ser algo bom; se alguém é um professor, mais ainda”.[5] Daí segue o raciocínio do remetente: se a classe titulada, ergo bela e boa, elege um algoz, então ele não deve ter sido tão ruim assim. Aqui Voegelin generaliza, em consonância com raciocínios anteriores, que o autor da carta jaz incapaz de admitir a degeneração espiritual da classe letrada e, assim, opera a negação de um setor da realidade; admiti-la causaria a diluição de sua crença e, por conseguinte, uma queda no ceticismo. Afinal, se quem estudou erra, quem poderia acertar? E assim voltamos a olhar para a barra de metal, distorcida enquanto imersa, ao passo em que nos esquecemos de que um dia ela esteve em terra.
O caso do remetente de Buttermelcher é extremo, mas o fenômeno é comum; tende-se a crer e recusar-se a admitir os erros daqueles tidos como superiores, sejam eles doutores, músicos ou meramente dotados de poder econômico – e, de fato, eis um fator determinante para o aparecimento de gurus. Não importa que errem bruscamente, como naquele caso em que o sujeito afirmou ter tido um diálogo imaginário com seu próprio carrasco ou no outro em que, após ter suas crenças traídas, tudo o que pode fazer foi desejar “boa sorte” àqueles que condenou. Do mesmo modo, pode haver certa recusa, por parte do estudante de filosofia, em encarar o abismo e perceber que aqueles classificados como filósofos podem errar e, no pior dos casos, serem antes a contraparte de seu título. Entretanto, como observado por Lonergan em seu Insight, a escotose pode receber racionalizações e, no pior dos casos, teremos todo um sistema filosófico [sic] dedicado a impedir, mediante os antolhos de uma miríade de teses, que o sujeito veja algo que lhe assuste; neste caso, vale o conselho schopenhauriano:
“Nada se conseguirá com tal indivíduo: pois argumentos e demonstrações empregados contra a vontade são como o impacto das imagens de um espelho côncavo projetadas contra um corpo sólido. Daí a expressão frequentemente repetida: Suo pro ratione voluntas…”[6]
É algo pertencente ao mesmo gênero que ocorre com o autor da carta advinda de Buttermelcher; afinal, se o Pintor Austríaco foi tão ruim assim, como poderia ter modelado uma época? Caso nos detenhamos por alguns instantes e examinemos a indagação, ela se tornará cada vez mais esquisita, assim como um belo rosto visto de relance revela-se cada vez mais disforme na proporção de nossa atenção; afinal, que ligação há entre o impacto histórico e a bondade? Os arqueólogos exultam ao encontrar esterco paleolítico fossilizado e talvez haja arqueólogos filosóficos que não entendem haver “mediocridades vitoriosas através dos séculos.”[7] Não é saudável que tremamos frente ao impacto estético de um grande erro, como se, num arroubo romântico, assumíssemos uma [pseudo] moral esteticista e classificamos como pulchrum ergo bonum o resultado da Libido Dominandi. Entretanto, é algo análogo que tende a ser forçado no estudante de filosofia mediante a desculpa do impacto histórico; é claro que qualquer pesquisador minimamente sério não pode se dar ao luxo do cherry picking, mas a mera constatação da importância histórica de um autor não implica na veracidade de suas teses. Como antedito, o ponto de resistência consiste, grosso modo, no atrito psicológico decorrente da constatação de que uma conclusão decorre de premissas incômodas que a pessoa comumente não está disposta a aceitar. No contexto das palestras de Hitler e os Alemães, Voegelin comenta que não apenas o eleitorado, mas instituições várias, como igrejas e tribunais, não estavam dispostos a aceitar que foram feitos de trouxa não por um demônio manipulador quasi-cartesiano, mas por um stultus que, segundo a teoria da representação voegeliana, foi precedido pela sociedade em que pode chegar ao poder e, aqui, surge a resistência: “se uma sociedade é desse tipo que elege imbecis criminosos e escroques como representantes, então a sociedade como um todo está numa situação muito desagradável.”
Situações análogas ocorreram na história da filosofia. Por vezes muitos foram feitos de trouxa por stultus por eles expressarem, elegantemente, aquilo que havia na alma de seus leitores. Entretanto, poucos estão dispostos, tal qual Voegelin ou Frege, a abandonar projetos filosóficos inteiros após a constatação de seu erro.
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Notas:
[1] Hitler e os Alemães p.80
[2] Madame Bovary cap. X
[3] “[…] a escotose é um processo inconsciente. Não surge em atos conscientes, mas na censura que governa a emergência dos conteúdos psíquicos. […] Podem ser aceites como corretas, mas apenas para sofrerem o eclipse que a distorção origina, ao excluir as ulteriores questões relevantes. E ainda, podem ser rejeitadas como incorretas, como meras ideias brilhantes sem uma sólida fundamentação nos fatos; e essa rejeição tende a estar associada à racionalização da escotose e a um esforço por acumular provas a seu favor.” Insight: Um Estudo do Conhecimento Humano p.204. É interessante comparar com o seguinte trecho de Hitler e os Alemães [p.110]: “A primeira conseqüência dessa contradição é o que então chamei de Síndrome de Buttermelcher – ou seja, que todos os que cooperaram teriam de admitir que se o homem era racional e espiritualmente desprezível, então eles também eram desprezíveis […] Eles não o admitem de boa mente, particularmente porque isso envolve na verdade todo nível de representação da sociedade alemã: os poetas e pensadores, os filósofos e escritores […] significa que todos dentre a elite alemã estavam envolvidos na criminalidade e na estupidez do regime nacional-socialista […] não querem admitir que o que aconteceu foi criminoso e louco, porque, então, eles também teriam de admitir que eles próprios são criminosos e loucos. Esta é a primeira conseqüência do que chamei de Síndrome de Buttermelcher.”
[4] Ver Berger & Luckmann, A Construção Social da Realidade p.99
[5] Hitler e os Alemães p.81. Ou, ainda, na p.121: “Aqui de novo nos aproximamos da Síndrome de Buttermelcher: é extremamente difícil entender que a elite de uma sociedade possa consistir numa ralé.”
[6] Mundo como Vontade e como Representação Tomo II II 254
[7] Mário Ferreira dos Santos – Certas Subtilezas Humanas p.34
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