A obra será castigada juntamente com o seu autor.
Sabedoria 14:10
Introdução: Cogito Ergo Mussum
Destrinchar a concepção moral olaviana pode ser, para alguns, controverso, consequência direta de Olavo de Carvalho ter sido um autor multifacetado. Para nosso propósito, basta destacar apenas duas destas faces: a do filósofo e a do polemista, cuja primeira tende a ser eclipsada pela segunda, e assim o digo, pois, embora o autor seja conhecido pelo menos desde a metade da década de 1980, ganhou notória popularidade após a publicação, no início da década de 2010, da coletânea de artigos O Mínimo que Você Precisa Saber para não ser um Idiota, livro que continha, em suma, seu lado popular, marcado pelo tratamento de assuntos sérios mediante tom jocoso. Esse modo de expressão, idealizado pelo autor como o verdadeiro estilo brasileiro, popular e erudito,[1] tem seus méritos: fez com que muitos, rindo de seus exemplos, refletissem sobre assuntos e autores até então alheios a seu horizonte de consciência. Entretanto, como tudo é popularizado, o estilo foi copiado, degenerado e incompreendido, fazendo com que sua segunda qualidade eclipsasse a primeira. Assim, Olavo ficou conhecido antes feito um velho engraçado e controverso do que filósofo.
Isto causou alguns problemas. O mais grave é que tal estilo popular dificulta, de certa forma, sua propagação por conta da linguagem prenhe de duas coisas rejeitadas pelo filisteu: palavrões e erudição; a primeira fere sentimentos e a segunda dificulta sua compreensão. Outro problema, consequente da eclipsação, é que parece difícil que um autor afeito a piadas de teor sexual contenha, em sua filosofia, o germe de um sistema moral, o que pode soar impressionante até para seus “alunos”, e isto por alguns motivos: ao mesmo tempo que advogava, em debates e artigos,[2] contra o relativismo, se recusava a tratar de temas como castidade por, em sua concepção, não ter tido experiência do que é isto, e tendia a ser indulgente com o pecado alheio de modo que parecia não ligar para estes temas. Tais atitudes lograram, infelizmente, má fama entre grupos religiosos. Mas isto não pode permanecer, e a face filosófica do autor deve superar a popular. Nisto, urge que exponhamos seu pensamento moral.
Semelhante ao ocorrido com outros elementos da filosofia olaviana, seu aspecto moral jaz pulverizado em apostilas (sem revisão), cursos (sem transcrição) e livros. A principal fonte de seu sistema, o Curso de Ética, aparentemente ministrado na PUC do Paraná, não possui registro disponível, seja gravado ou escrito; o atestado de sua existência advém de citações feitas pelo próprio autor. Tal lacuna seria suficiente para desencorajar um trabalho que trate da ética olaviana; entretanto, num esforço quase masoquista – e na mesma clave da reconstrução do Protréptico mediante fonte secundárias –, o quebra-cabeça de seu pensamento não é de difícil montagem, uma vez que suas peças jazem espalhadas no Curso Online de Filosofia e na apostila Esboço de um Sistema de Filosofia.[3] Nexos faltantes podem ser completados mediante a verificação, pregada pelo autor, dos elementos da consciência; nisto, para compreender o pensamento olaviano, basta seguir as pegadas de seu autor.
Colher os escritos que citem algum conselho probo, para pintar o quadro da evolução de seu pensamento moral, é necessário um empreendimento maior que a confecção dum ensaio. Todavia, cientes de que houve progresso, devemos citar o caso contido no curso[4] que daria origem ao livro Husserl Contra o Psicologismo: naquele tempo, Olavo não cria numa moralidade universal. Sua posição era mais ou menos a seguinte: a moral consistia na “relação estabelecida entre o indivíduo e sua própria consciência”[5]; regramento de si para si, lei para si mesmo, portanto. Para ele não faria sentido uma moral geral, uma vez que sua função é orientar uma conduta pessoal. Nisto, não há espaço para um universalmente imoral: nestes termos, a pessoa que crê na imoralidade de tal ou qual ação deveria antes não cometê-la do que condená-la.[6] Curiosamente, no parágrafo seguinte do livro homônimo do curso, lemos: “só é intrinsecamente imoral aquilo que viola […] a natureza humana”.[7] Posta a diferença que há entre a concepção encontrada no curso e a esboçada a seguir, é prudente concluir que no período entre 1991 e 1996, o autor ainda estava especulando sobre o tema e, nisto, falou demais. O encontrado na transcrição de Husserl Contra o Psicologismo não pode ser tomado como postulado definitivo da filosofia moral olaviana pelos seguintes motivos: a) o objeto do curso não são temas morais; b) os comentários foram feitos de passagem, sem rigor algum; c) a elevação de um comentário secundário ao posto de tese principal contradiria toda a obra do filósofo e d) a posição foi superada em escritos posteriores.
Para o exame do pensamento moral olaviano tomaremos como base, aqui, o apresentado na apostila Esboço de um Sistema de Filosofia e o explicado em várias aulas do Curso Online de Filosofia, reunindo, num percurso mais ou menos sintético, seus princípios e elementos fundamentais.
Autoconsciência reflexa no princípio de autoria: síntese do fundamento da moral segundo Olavo de Carvalho
O ponto de partida para pensarmos o construto moral olaviano consiste na delimitação de sua noção de autoconsciência enquanto assunção da própria consciência. Para o filósofo, isto significa um ato em que nos comprometemos a reter a percepção do presente para nós, de forma que seu conteúdo não se dilua num fluxo de impressões e, assim, evanesça, como não visto.[8] Verificamos, aqui, que o termo autoconsciência é, eminentemente, um símbolo compacto que inclui – para além de uma noção de consciência de viés husserliano enquanto ciência de algo[9] – as noções de presença e de responsabilidade moral e intelectual reflexas na de compromisso. “Aquilo” (alius quid) de que somos cientes é sempre presente; o objeto intencional da consciência é a presença.[10] Estarmos cientes do apresentado inclui não apenas o posto numa dimensão externa, mas também numa interna: no jargão husserliano, os vividos intencionais são tanto imanentes quanto transcendentes.[11] O ato de comprometimento desdobra-se em dois: moral, na medida em que reagimos às consequências de nossas ações (que contém, em si, significação moral por conta de terem sido realizadas após uma decisão do agente) e intelectual enquanto especulamos conforme os dados apresentados.[12] Devemos, portanto, reformular a noção de autoconsciência para que seu conteúdo se torne mais claro: o homem autoconsciente é aquele que, notando o conteúdo de suas vivências, se compromete a expressar sinceramente – num primeiro momento, para si – precisamente o que percebeu, não permitindo que o vivido, deixando um resíduo na memória (afetado a pessoa), seja tratado como se não possuísse um referente real.[13] Este complexo de nuances não permite que o filósofo reduza seu símbolo a um conceito “isolado”; com o termo consciência, Olavo visa descrever o conjunto de elementos da percepção real e, nela, não há um sujeito percipiente e um objeto fenomênico, mas uma pessoa dotada de uma série de dimensões conjuntamente atuantes.[14] O símbolo autoconsciência desdobra-se, portanto, numa estrutura em que inclui a responsabilidade como capacidade de responder pelo que estamos cientes do que é ou foi. Tudo aquilo apresentado para nós afeta nossa consciência e, nisto, tomamos atitudes perante os dados apresentados, como podemos verificar no exemplo de uma criança que reage a um doce desta ou daquela maneira.[15] Toda ação estruturada desta forma é de responsabilidade do agente. Ser autoconsciente é, na especulação olaviana, ser sinceramente responsável.
Segundo Carvalho, a possibilidade das Confissões, de Sto. Agostinho, é devida à sua autoconsciência[16] (e aqui o filósofo, mediante o exemplo do santo, revela mais uma faceta de sua noção de consciência: a dimensão histórico-biográfica[17]); enquanto ciente da responsabilidade por suas ações desde a infância, este pode biografar-se, descrever seus atos enquanto anexados a si na variedade da série temporal sem que, por isto, tenham sido praticados por outra pessoa: Aurélio Agostinho é aquele que, compreendendo-se responsável por uma série de atos, pôde arrepender-se e, convertido, ser Santo Agostinho. Os atos responsáveis são inteligíveis apenas segundo uma dimensão histórico-biográfica[18] inclusa na estrutura da autoconsciência, algo decorrente das ações ocorrerem num tempo e num espaço. Os homens não agem abstratamente: operam no presente, de acordo com elementos do passado e visando o futuro; portanto, não é correto pensar a autoconsciência de maneira abstrata, sob o risco de perdemos a riqueza de seus elementos e, assim, deformar a experiência concreta. O agente autoconsciente é, assim, o referente real do que Olavo chama de autoria.
O fundamento da moral, segundo Olavo de Carvalho, é a autoconsciência reflexa na noção de autoria elevada à qualidade de princípio na medida em que expressa a responsabilidade de uma pessoa ciente de seus atos.[19] Podemos considerar, aqui, uma série de aspectos que rodeiam o princípio de autoria. O mais claro deles é a afirmação da unidade do sujeito e de suas ações: as ações de um são executadas por este e não por outro; nisto, não podemos responsabilizar uma pessoa por algo que outra fez. Esta tese inclui, em si, análogos de pelo menos duas teses kantianas: a autonomia do sujeito e a finalidade da pessoa.[20] Caso “usada” feito meio – uma vez que o uso “puro” de pessoas como objetos intermediários é impossível –, a responsabilidade de uma pessoa “engloba” a outra de forma que ambas possuam sua parcela; é importante que aqui não há uma transferência, mas uma participação na culpabilidade: o general que ordena um soldado é “responsável” pelo resultado do ordenado de maneira diferente daquele que executa a ação; o superior possui sua parcela de culpa, mas o subordinado não é, por isso, eximido do que fez – pois pessoas não são autômatos, mas agentes livres que não deixam de sê-lo mesmo que ajam sob a égide de outro. Outro aspecto relevante é a liberdade de ação; apenas pessoas livres[21] podem ser autoconscientes e, nisto, a autoconsciência nasce moral na medida em que inclui um comprometimento: a liberdade e a consciência são, no pensamento de Olavo de Carvalho, inseparáveis. Este nexo inextrincável entre pessoas e ações possibilita a imputabilidade de atos viciosos e virtuosos; portanto, podemos compreender, a título de exemplo, o princípio de autoria como candidato a fundamento para uma ética de virtudes.
O nascimento da consciência é prenhe de corolários; para Carvalho, ela se revela, na ordem do conhecer, primeiro moral e depois cognitiva. Isto não quer dizer que ela seja moral antes de ser cognitiva –sem cognição não poderíamos reconhecê-la –, mas que seu aspecto moral e cognitivo são contemporâneos da mesma forma que tratamos a razão prática e a razão especulativa feito aspectos da mesma coisa – e, neste sentido, o princípio de autoria é o nexo entre filosofia cognitiva e filosofia moral.[22]O que importa reter é que a prioridade da consciência moral decorre da prioridade da percepção de autoria; nossa consciência autoral identifica-se com a noção primeva de que “somos” i.e., com a noção de identidade. A partir disto, derivamos outro aspecto decorrente do princípio de autoria: a idéia de sinceridade enquanto transparência dos atos presentes à pessoa.[23] Da mesma forma que ocorre para Kant, Olavo crê que todas as nossas ações são, de alguma forma, transparentes para o agente; podemos nos enganar quanto às consequências mas jamais quanto aos atos. É impossível fazer algo sem saber que fez ou atribuir a outro uma ação executada por mim. Como expresso pelo filósofo de Königsberg, ainda que não me curve a um ato virtuoso, meu espírito se curvará;[24] nisto, a sinceridade é um elemento da estrutura da consciência: ela pode ser, num eclipsamento da realidade, nublada ou torcida, mas jamais eliminada.[25]
A adição da sinceridade à estrutura do princípio de autoria contém, ainda, conseqüências análogas à noção de má-fé no pensamento sartreano. Da mesma forma que, para o francês, deve haver uma consciência una e uma verdade escamoteada, para Olavo, a mentira só pode florescer da veracidade.[26] A mentira para si, uma insinceridade para consigo é, eminentemente, impossível sob forma pura em sua própria concepção. Como explica Sartre:
Aquele que se afeta de má-fé deve ter consciência (de) sua má-fé, pois o ser da consciência é consciência de ser. Logo, parece que devo ser de boa-fé, ao menos no que toca a ser consciente de minha má-fé. Mas então todo o sistema psíquico se aniquila. Com efeito, se tento deliberada e cinicamente mentir a mim mesmo, fracasso completamente: a mentira retrocede e desmorona ante o olhar; fica arruinada, por trás, pela própria consciência de mentir-me, que se constitui implacavelmente mais aquém de meu projeto como sendo sua condição mesma. Trata-se de um fenômeno evanescente, que só existe na e por sua própria distinção.[27]
Todavia, o aspecto que mais nos interessa, aqui, é a relação entre liberdade e sinceridade. Posto que o ato responsável pressupõe o livre, a autoconsciência exige a liberdade de arbitragem.[28] E uma vez que a erupção da consciência moral e da naturalidade de nossa autoconsciência são dados fundamentais, a liberdade fica como elemento da estrutura da consciência humana; neste sentido, em linguagem sartreana, Olavo pode dizer que fomos condenados à liberdade: não podemos negar que somos livres e responsáveis sem incorrer em má-fé. A pessoa responsável por seus atos os têm presentes à consciência e jaz ciente de que age por ser livre; mesmo que ajamos por ordem de outro, em nada tolhe nossas decisões: a morte ainda é escolha, e por isto existe o martírio. Ainda que coagidos, feito o prisioneiro que caminha numa prancha de pirata, sempre há a possibilidade de preferir a bala às mordidas dos tubarões. Aquele que trabalhar n´algo indigno, para pagar as contas de casa, escolheu a indignidade em vez da miséria; não existe ato humano, por mais abstruso, que não seja livre. Escolhas ruins não deixam de ser escolhas.[29] Da mesma forma que ocorrido em Sartre, Olavo procura distinguir a consciência moral dos papéis sociais, de forma que a fusão entre ambos constitui uma forma de má-fé, posto que esta se distingue deles enquanto elementos percebidos pela pessoa que age de acordo com eles.
No contexto dos papéis sociais, a consciência é tratada como potência da essência humana através da qual tomamos nota de dados e agimos de acordo com eles – neste sentido, a “produção” de uma consciência é uma metonímia referente à indução de uma percepção.[30] Tais papéis podem nos induzir percepções, mas jamais fundir-se conosco: não deixo de ser “eu” enquanto ajo de acordo com tal ou qual papel. Quando agimos desta ou daquela forma e depois “culpamos” o papel por ações que são nossas, tentamos transferir para uma abstração a responsabilidade que carregamos por uma ação concreta: fingimos ser avatares dum fantasma; entretanto, isto é tudo má-fé e não corresponde à percepção real de uma pessoa autoconsciente e sincera.
Posto que a pessoa consciente age de acordo com dados recebidos, para o filósofo, o solipsismo é impossibilitado pela estrutura da consciência: uma vez que ela “aponta” (intencionalmente) para a presença interna que ocorre de acordo com a externa – e, neste sentido, o argumento olaviano é parelho ao de Husserl ou Heidegger –, não há como estarmos “presos” em nossa consciência por ela não fornecer dados que não tenham relação com o que há “fora” de nós; ela não é um sistema hermético, i.e., uma “consciência solipsística não estaria num “mundo”, não agiria nem sequer sobre o próprio eu (coextensivo à identidade corporal), não teria consciência de identidade autoral e não seria, enfim, consciência nenhuma.”[31] Daqui podemos aferir que, num sentido husserliano, a consciência, para Olavo de Carvalho, é não apenas imanente, mas transcendente; direciona-se tanto para vividos intencionais internos quanto externos.[32] Por outro lado, a consciência é sempre “coextensiva com a unidade e a continuidade de um corpo humano vivente no espaço”; logo, equivale à unidade do sujeito enquanto unidade autoral.[33] Mas, se for assim, a especulação acerca da consciência exige seu uso e, de certa forma, um processo análogo à anamnese,[34] de forma que “não existe a menor possibilidade de uma filosofia da consciência como disciplina puramente teorética, separada do esforço pessoal de autoconsciência.”[35] Tal conclusão expulsa, do horizonte do pensamento olaviano, a possibilidade de negação da consciência, ao mesmo tempo em que força, naquele que especula, um esforço de sinceridade a nível existencial, uma vez que tratar da consciência é tratar de si mesmo segundo os critérios do princípio de autoria. Não é possível tratar de si fingindo que não somos pessoas de carne e osso – ou mera carne sustentada por eles;[36] isto seria, novamente, um exercício de má-fé.
Olavo introduz, a título de exemplo do peso da sinceridade como elemento de seu pensamento moral, a noção de atos sem testemunha. Sua função é nos fazer tomar nota daquelas ações que apenas uma pessoa conhece e, ainda que tenha visto ou efetuado, não pode provar que ocorreram; portanto, o único registro de sua existência é a consciência que a captou. Segundo o filósofo:
[…] mesmo que ninguém possa vir a saber deles, eles têm uma significação moral para mim porque, ainda que isolado da sociedade, sou testemunha da unidade entre aquele que os cometeu, aquele que sobre eles agora reflete e aquele que padecerá suas conseqüências, amanhã. A continuidade temporal da consciência solitária mostra que esta não está isolada do mundo, mas só existe dentro de um encadeamento real de causas e conseqüências que, uma vez negado, produz a negação da própria unidade da consciência e, portanto, o fim da consciência.[37]
Mesmo que a testemunha minta e diga que tal ato não ocorreu, para que o faça, é preciso introduzir uma insinceridade, uma duplicidade na consciência em que a verdade é escamoteada; o mentiroso sabe que mente e, nisto, será acusado por si mesmo na medida em que é responsável pelo que fez e jaz ciente de sua culpa. Neste sentido, a culpa, antes de ser um modo inautêntico do ser, é, antes, seu componente estrutural.[38] Se tomarmos isto como princípio do método confessional[39] pregado por Olavo de Carvalho, a sinceridade e, por conseguinte, o princípio de autoria, se tornam o fundamento do método filosófico, posto que apenas a honestidade moral e intelectual, unas na consciência, permitem que tratemos dos grandes temas da filosofia.
Epílogo
Fizemos um percurso que, partindo da noção de autoconsciência, chegou a dois temas que não cabem mais num ensaio sobre o princípio de autoria: o método confessional e a epistemologia dos atos sem testemunha – que serão tratados, oportunamente, em outros textos. No decorrer da especulação percebemos que Olavo de Carvalho, feito Voegelin, desenvolve sua filosofia da consciência enquanto complexo composto de elementos interligados numa estrutura destinada a explicar a experiência humana como realmente ocorre. Tal abordagem possui tonalidade fenomenológica e para a influência husserliana no pensamento do filósofo ao mesmo tempo em que o aproxima de dois de seus desafetos, Jean-Paul Sartre e Martin Heidegger – num curioso imbróglio em que se concorda mais com o primeiro do que com o segundo.
A noção de autoconsciência nasce moral por conta do complexo de que participa conter o elemento da sinceridade; é um ato de comprometimento que une, por assim dizer, razão especulativa e razão prática. Nos tornando autoconscientes nos tornamos responsáveis; mas todos esses atos pressupõe que nosso arbítrio seja livre. Agindo livre e sinceramente, somos responsáveis por nossas atitudes, responsabilizados feito autores, e o princípio de autoria inclui a noção de culpa. O fundamento da ética, definida como autoconsciência reflexa na noção de autoria enquanto princípio, significa que estamos anexados a nossos atos de forma que somos responsáveis por eles; se virtuosos, nosso mérito, se viciosos, nossa culpa. O spoudaios aristotélico é possibilitado pela anexação, no eu, de virtudes; e isto só pode ser caso ele seja autor dos atos virtuosos aos quais se habituou. Ao mesmo tempo em que nos aproximamos da ética de matriz aristotélica, também de outro desafeto, Immanuel Kant, e isto por conta, principalmente, da noção de sinceridade, transparência dos atos conscientes, tão presente na ética kantiana. Mesmo que a especulação olaviana seja original, a cultura filosófica de que nasceu é bem explícita e conversa, concordando ou discordando, com os grandes filósofos do passado.
Ainda que Carvalho visasse a construção de uma ética apodítica, quiçá sob moldes ferreirianos, o filósofo não concluiu seu projeto. Entretanto, pôde lograr alguns resultados interessantes: se o princípio de autoria – e o complexo em que se inclui – for verdadeiro, então o solipsismo é falso; eis uma conclusão epistemológica. Igualmente, se a especulação olaviana for verdadeira, então o relativismo é falso, uma vez que o princípio de autoria enuncia ao menos uma norma moral universalmente válida:
As primeiras normas morais universais são o princípio de autoria: quem fez o que você fez foi você, e não um outro. De vez em quando pode-se atribuir a responsabilidade a um outro, por exemplo, no caso de um menor de idade cujos atos são jogados sobre as costas do seu pai. Mas é jogada a responsabilidade e não a autoria. Responsabilidade é quem responde pelo ato, e não quem o cometeu. Tanto que o filho, por cujos atos o pai responde, responde por sua vez, por eles, perante o pai. O sujeito pega o carro, bate no carro do vizinho, mas como ele é menor de idade, quem vai pagar é o pai. Mas o indivíduo vai ter de responder perante o pai, pelo menos vai levar uma bronca ou umas palmadas, alguma coisa assim. Então o princípio de autoria é universal e, na verdade, é o fundamento de todas e quaisquer normas morais. Não existe norma moral sem princípio de autoria. Se ninguém é autor de coisa nenhuma, ninguém responde por nada, então não se pode cobrar nada de ninguém e, portanto não existe código moral, nem jurídico, nem coisa nenhuma.[40]
Se há alguma norma moral inescapável, o relativismo é – ao menos sob forma estrita – falso.[41] Caso derivem outras normas deste princípio, será possível “esmagar” formas mitigadas de relativismo até que seja refutado ou reduzido à mera subjetividade – e, neste ponto, terá sido expulso das discussões éticas. Uma curiosidade da especulação olaviana é que, embora aparente seguir noções de responsabilidade de teor heideggeriano, ambos se distinguem por Olavo admitir a noção de culpa como elemento do complexo de consciência,[42] ao passo que Heidegger a posiciona como modo inautêntico do dasein – atitude que fez com que alguns autores apontassem o fracasso de uma moral fundada na ontologia de Ser e Tempo – numa avaliação olaviana, estão corretos.[43]
O que podemos colher da concepção ética de Olavo de Carvalho? Somos responsáveis autoralmente por nossas atitudes; eis algo inegociável. Urge que sejamos autoconscientes e aceitemos todo o complexo de elementos que acompanhem tal noção. No limite, o esforço da consciência para compreender a si sob o prisma do princípio de autoria pode reduzir-se ao seguinte adágio: conhece-te a ti mesmo.[44]
Bibliografia:
- Olavo de Carvalho – A Demolição das Consciências [artigo]
- Olavo de Carvalho – A Filosofia e seu Inverso
- Olavo de Carvalho – A Consciência de Imortalidade
- Olavo de Carvalho – Edmund Husserl Contra o Psicologismo
- Olavo de Carvalho – Esboço de um Sistema de Filosofia
- Olavo de Carvalho – Viver sem Culpas [Artigo]
- Olavo de Carvalho – Curso Online de Filosofia: Aula 92
- Olavo de Carvalho – Curso Online de Filosofia: Aula 160
- Olavo de Carvalho – Curso Online de Filosofia: Aula 161
- Olavo de Carvalho – Curso Online de Filosofia: Aula 191
- Olavo de Carvalho – Curso Online de Filosofia: Aula 192
- Olavo de Carvalho – Curso Online de Filosofia: Aula 217
- Edmund Husserl – Meditações Cartesianas e conferência de Paris
- Edmund Husserl – Ideias Para uma Fenomenologia Pura e Para uma Filosofia Fenomenológica
- Eric Voegelin – Anamnese: Da Teoria da História e da Política
- Jean-Paul Sartre – O Ser e o Nada
- Immanuel Kant – Crítica da Razão Prática
- Immanuel Kant – Fundamentação da Metafísica dos Costumes
- Martin Heidegger – Ser e Tempo
- Paul Guyer (Org.) – Kant
- Peter Berger – Perspectivas Sociológicas
- Régis Jolivet – As Doutrinas Existencialistas
- Zeljko Loparic – Heidegger Réu: Um Ensaio sobre a Periculosidade da Filosofia
Em memória de Olavo de Carvalho
“[…] mas a malícia nada pode contra a sabedoria.”
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Notas:
[1] “Minha esperança é que os meus alunos, com o tempo, consolidem um genuíno estilo brasileiro de alta cultura: inseparavelmente popular e erudito, engraçado até ao ponto de matar de rir, com clarões de lucidez escandalosa que pareçam loucura à primeira vista. Sem folclorismos veados. Profundamente cristão sob uma aparência enganosamente obscena. Aristóteles no programa do Alborghetti. Cogito ergo Mussum. Isso há de acontecer, se Deus quiser.” Olavo de Carvalho em publicação no Facebook datada de 31 de janeiro de 2014.
[2] Podemos conferir, por exemplo, a participação de Olavo de Carvalho no programa Diálogos Impertinentes, realizada na TV PUC de SP e apresentado por Mário Sérgio Cortella em 1998. Há, ainda, o artigo A Demolição das Consciências, publicado no Diário do Comércio, em 21 de dezembro de 2009.
[3] A apostila data, aparentemente, de 1997.
[4] Edmund Husserl Contra o Psicologismo: Preleções Informais em torno de uma leitura da Introdução às Investigações Lógicas foi um curso promovido na cidade do Rio de Janeiro, entre 1991 e 1996.
[5] Preleção XIV, p.350, da apostila referente ao curso citado; o mesmo pode ser visto no livro Husserl Contra o Psicologismo p.198.
[6] “A moral se destina apenas a orientar sua conduta pessoal. Você é contra a pornografia? Afaste-se dela. Mas nada pode ser considerado moral universalmente e por si. Todo ato é relativo a quem fez e por que o fez.” Husserl Contra o Psicologismo p.198.
[7] Ibidem.
[8] “Quando digo “assumir consciência” quero dizer que há aí algo mais que um simples ato de percepção isolado ou mesmo repetido. “Assumir consciência” é algo mais que “tomar consciência”: implica um ato de responsabilidade intelectual e moral pelo qual você se compromete intimamente a não permitir que a porta aberta para a consciência de extracorporeidade se feche e o conteúdo aí assimilado se dilua no fluxo de impressões corporais até ser esquecido ou ao menos perder toda força estruturante sobre a sua vivência de “eu”.” A Filosofia e seu Inverso p.107
[9] “A propriedade fundamental dos modos de consciência em que eu, enquanto eu, vivo, é a chamada intencionalidade, é, em cada caso, o ter consciência de qualquer coisa.” Meditações Cartesianas e conferência de Paris p.11
[10] A consciência, para Carvalho, é intencional; o objeto da intencionalidade da consciência é a presença. Ademais, este conceito contém dois aspectos: presença apresentada e presença temporal. A primeira refere-se à qualidade de estar posto; corresponde, portanto, à posição do presente enquanto objeto, ato, fenômeno etc. em relação a uma consciência. A segunda corresponde à posição do elemento no tempo em qualquer uma de suas dimensões, passada, presente ou futura, e ocorre no âmbito do elemento histórico-biográfico da estrutura da consciência.
[11] Ver Ideias Para uma Fenomenologia Pura e Para uma Filosofia Fenomenológica p.89
[12] Ignorar, de alguma forma, a percepção desta presença configura um ato insincero análogo a um eclipsamento da realidade.
[13] Esse complexo inclui, implicitamente, uma noção de experiência de viés aristotélico, uma vez que esse ato de comprometimento precisa incluir a memória. É possível especular a possibilidade de erigir uma ética aristotélica sobre o princípio de autoria.
[14] “Consciência, no sentido forte da palavra, é autoconsciência atual, responsável – é algo que só pode existir no indivíduo real, presente, atuante. Consciência genérica, abstrata, é um puro fetiche lógico.” A Filosofia e seu Inverso p.184
[15] A [cons]ciência de nossos atos é “natural” por conta de não precisarmos de uma especulação filosófica para que saibamos o que fizemos. Ao nos lembrarmos do que comemos no dia anterior, da hora em que dormimos, ou notarmos que estamos lendo um ensaio de filosofia são exemplos do expresso. Nestes atos sabemos que há uma pessoa – e não outra – agindo e, nisto, é responsável (eis o princípio de autoria) por seus atos.
[16] “As memórias de Agostinho são a confissão formal de uma alma que, assumindo plenamente a autoria, a responsabilidade e as consequências de cada um de seus atos, pensamentos e estados interiores, mesmo os mais obscuros e remotos no tempo, comparece ao seu próprio julgamento como que ostentando uma identidade inteiriça, na qual as várias forças internas em conflito não fazem senão realçar a unidade tensional do todo.” A Filosofia e seu Inverso p.241
[17] “[…] toda constância humana só se revela […] sob o fundo incessante da mutação histórica.” A Filosofia e seu Inverso p.239
[18] “Essa continuidade da memória é precisamente o que, uma vez, Pradines chamava de consciência. Consciência é a memória do passado preparada para as tarefas do futuro (ou que pelo menos ela se acha preparada). Ou seja: você sabe o que vai fazer porque você já sabe o que você já fez e o que lhe aconteceu. Então, muito mais até do que a mera capacidade da fala, é essa a capacidade que define o ser humano; e é isso que precisamente nós chamamos a sua historicidade. O ser humano é eminentemente histórico, neste sentido: tudo o que lhe acontece hoje, tudo o que ele fizer hoje, se integra de algum modo no seu passado, do mesmo modo que a imagem que ele tem do passado se integra e se amolda novamente à situação que ele está vivendo para preparar um futuro. Todos os seres humanos conhecidos sempre viveram assim. Da onde vem o segundo traço mais eminente, derivado deste, que eu chamo de “princípio de autoria”. Cada ser humano sabe que ele é o autor de seus atos: que aquilo que ele fez, não foi outro que fez, pouco importando o que seja. Se eu tomei o café da manhã, eu sei que não foi o seu estômago que ficou cheio, mas sim, o meu. Se eu dormi, eu sei que quem acordou fui eu e não o vizinho, e assim por diante. Quer dizer: desde os atos mais banais até os atos de maior envergadura, a consciência de si mesmo, como autor de seus atos, acompanha o homem ao longo de sua vida, e ela se manifesta desde os primeiros dias da existência.” Curso Online de Filosofia: Aula 92
[19] Esta definição não aparece no corpus olaviano. Ofereço-a enquanto síntese (do princípio e autoria e) da descrição dos elementos da autoconsciência e de seu referente real.
[20] A idéia de autonomia em Kant foi bem explicada por J.B. Schneewind em seu Autonomia, obrigação e virtude: uma visão geral da filosofia moral de Kant, in Paul Guyer (Org.) – Kant p.370-371: “[…] adultos normais são capazes de se autogovernar completamente em assuntos morais. Na terminologia de Kant, somos “autônomos.” A autonomia tem dois componentes. O primeiro é que nenhuma autoridade externa a nós é necessária para constituir ou nos informar das demandas da moralidade. Cada um de nós sabe, sem que seja dito, o que deveria fazer porque as exigências morais são exigências que impomos a nós mesmos. O segundo é que no autogoverno podemos efetivamente controlar a nós mesmos”. É interessante observar como a “moral individual” pregada por Olavo em Husserl Contra o Psicologismo é paralela à concepção de autonomia em Kant na medida em ambas são lei que o sujeito impõe para si. A tese da finalidade da pessoa, que esta não pode ser tida como instrumento mas apenas como fim em si mesma, é um topoi clássico do pensamento kantiano e pode ser encontrada em Fundamentação da Metafísica dos Costumes p.68: “O homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas acções, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem // a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como fim. Todos os objectos das inclinações têm somente um valor condicional, pois, se não existissem as inclinações e as necessidades que nelas se baseiam, o seu objecto seria sem valor.”.
[21] Para Olavo – novamente, feito Kant – a liberdade (ou o livre arbítrio) é pressuposto e age como princípio demonstrado, caso necessário, por reductio ad absurdum de hipóteses contrárias.
[22] A conexão íntima de consciência e autoria é o elo perdido entre filosofia cognitiva e filosofia moral. Este elo é a base de toda filosofia autêntica, na medida em que a filosofia mesma é uma realidade de tipo moral e cognitivo inseparavelmente: é a teoria e prática da responsabilidade cognitiva.” Esboço de um Sistema de Filosofia p.5
[23] “A veracidade dos testemunhos depende da sinceridade. Sinceridade é a adaptação do discurso à realidade do ser. É verdade que o exercício da sinceridade, embora não seja absolutamente raro, falha em alguns momentos. Contudo, mesmo o maior dos mentirosos só mente durante alguns minutos de seu dia. Se mentisse a todo momento e a respeito de tudo, não conseguiria nem a primeira mentira. A mentira se baseia num fundo de veracidade inacabável.” A Consciência de Imortalidade p.44
[24] “Um homem pode igualmente ser para mim um objecto de amor, de temor ou de admiração, até ao deslumbramento e, apesar de tudo, nem por isso pode ser um objecto de respeito. […] Fontenelle diz: na presença de um grande, inclino-me, mas o meu espírito não se inclina. Eu posso acrescentar: diante de um homem de classe inferior, um burguês ordinário, no qual percepciono uma rectidão de carácter de um grau tal que eu, no que me toca, não tenho consciência de possuir, o meu espírito inclina-se, quer eu queira quer não e por muito que eu levante a cabeça para que não lhe passe despercebida a superioridade da minha condição. E isso porquê? O seu exemplo apresenta-me uma lei que confunde a minha presunção quando a comparo com a minha conduta e o seu cumprimento, por conseguinte, a sua praticabilidade, vejo-a demonstrada diante de mim através da acção. Ora, posso até estar consciente de haver em mim um igual grau de honestidade e, não obstante, o respeito permanece. Com efeito, visto que no homem o bem é sempre imperfeito, a lei, tornada concreta através de um exemplo, confunde sempre o meu orgulho; e o homem, que vejo diante de mim, cuja imperfeição, a qual o pode ainda afectar, não me é tão conhecida como conhecida me é a minha, aparece-me assim numa luz mais pura e proporciona uma medida. O respeito é um tributo que não podemos recusar ao mérito, quer queiramos ou não; podemos, quando muito, não o manifestar exteriormente, no entanto, não conseguimos impedir de internamente o sentirmos.” Immanuel Kant – Crítica da Razão Prática A135
[25] Como expresso por Voegelin, a realidade pode ser ignorada e até escamoteada, mas nunca eliminada. Ver Eric Voegelin e o Eclipsamento da Realidade.
[26] Não pode se dar o mesmo no caso da má-fé, se esta, como dissemos, é mentir a si mesmo. Por certo, para quem pratica a má-fé, trata-se de mascarar uma verdade desagradável ou apresentar como verdade um erro agradável. A má-fé tem na aparência, portanto, a estrutura da mentira. Só que – e isso muda tudo – na má-fé eu mesmo escondo a verdade de mim mesmo. Assim, não existe neste caso a dualidade do enganador e do enganado. A má-fé implica por essência, ao contrário, a unidade de uma consciência. Não significa que não possa estar condicionada pelo mit-sein, como em geral se dá com todos os fenômenos da realidade humana, mas o mit-sein só pode solicitar a má-fé apresentando-se como uma situação que a má-fé permite transcender; a má-fé não vem de fora da realidade humana. Não se sofre a má-fé, não nos infectamos com ela, não se trata de um estado. A consciência se afeta a si mesma de má-fé. São necessários uma intenção primordial e um projeto de má-fé; esse projeto encerra uma compreensão da má-fé como tal e uma apreensão pré-reflexiva (da) consciência afetando-se de má-fé. Segue-se primeiramente que aquele a quem se mente e aquele que mente são uma só e mesma pessoa, e isso significa que eu, enquanto enganador, devo saber a verdade que me é disfarçada enquanto enganado.” Jean-Paul Sartre – O Ser e o Nada p.94
[27] Jean-Paul Sartre – O Ser e o Nada p.95
[28] “Todos os fatores que exercem pressão já estão dados, e no meio desse jogo de forças você faz o quê? Toma uma decisão. Se essa decisão fosse determinada por esses fatores externos, ela seria somente mais um entre eles e, de maneira alguma, seria uma decisão. Quer dizer, a decisão tem de ser um ato livre. O que é um ato livre? É um ato que não tem outra causa além de você mesmo, e isso é fundamental. Veja que não só em virtude da concepção de homem vigente na nossa sociedade, mas também devido à nossa auto-imagem cotidiana, costumamos explicar tudo por causas externas ou superiores a nós. Absolutamente tudo, e nunca somos causa de nada. Mesmo quando reconhecemos que somos os autores de uma ação, mesmo quando reconhecemos que somos causa de uma ação, tendemos a explicá-la por algo que nos induziu àquilo. Com isso, nos anulamos a nós mesmos enquanto fatores causantes, fazemos de conta que não somos causa de nada. Mas isso é evidentemente impossível, porque, se tudo o que fazemos fosse causado por outras coisas, por outros fatores que não nós mesmos, segue-se que não existiríamos no plano da ação, o que equivaleria à supressão da nossa existência. Isso quer dizer, portanto, que só existimos como fatores causantes porque temos a liberdade, e a liberdade é o espírito. A existência da liberdade humana e do espírito é afirmada pelo simples fato de que nós somos causa de alguma coisa, ou seja, existem algumas cadeias causais que não vêm detrás de nós, mas que começam conosco. Se não pudéssemos fazer isso, não nos distinguiríamos dos animais de maneira alguma. Tudo o que os animais fazem é causado por estímulos recebidos, seja do seu organismo — como a fome, o desejo sexual etc. — seja do mundo externo, digamos, uma ameaça, uma mudança da temperatura, entre outras coisas. Então nós podemos dizer que os animais nunca são causa de nada. O reconhecimento de que o ser humano é causa de alguma coisa é universal. E é aquilo que no curso de ética que dei na PUC do Paraná eu chamei de princípio de autoria.” Curso Online de Filosofia: Aula 191
[29] Argumentos análogos foram coligidos por Schopenhauer para postular a supremacia da Vontade. Não importa o que façamos, foi por querermos, digo, ação humana alguma foi feita contra a vontade, mas sempre de acordo com ela. Escolher a morte à escravidão significa querer morrer em vez de escravizar-se. Muito curiosamente, o filósofo prega uma espécie de “determinismo da Vontade”. Ver Arthur Schopenhauer, O Livre Arbítrio (Uber den willen in der Natur).
[30] “Mas o fato de que a consciência tenha origem moral não quer dizer que ela seja um mero produto de uma introjeção de papéis sociais inculcados pela educação. A educação apenas dá a oportunidade, o cenário propício, o meio para que a consciência se manifeste, mas ela não pode, por si, produzir consciência. A consciência é uma potencialidade que já está dada no ser biológico do indivíduo humano – que lhe permite certas possibilidades de ação superiores às do animal – e é somente atualizada, não produzida pela educação. A educação não pode produzir consciência, sobretudo, porque esta subentende a identidade e a continuidade biológicas do indivíduo humano, que são dados da natureza e não produtos sociais.” Esboço de um Sistema de Filosofia p.4
[31] Esboço de um Sistema de Filosofia p.4
[32] Ver Ideias Para uma Fenomenologia Pura e Para uma Filosofia Fenomenológica p.92-93
[33] É justamente o reconhecimento da unidade do sujeito que reflete com o sujeito que age que desperta em nós o senso da autoconsciência. Mas esse reconhecimento não é só a ocasião temporal desse despertar, e sim também a condição lógica de sua repetição e, portanto, do desenvolvimento da consciência. Por isto mesmo, junto com o solipsismo do cogito, também as tentativas modernas de reduzir a consciência à introjeção de papéis sociais devem ser rechaçadas como absurdas e autocontraditórias.” Esboço de um Sistema de Filosofia p.4
[34] A anamnese voegeliana, enquanto exame de teor biográfico da própria consciência na esperança de tornar o conhecimento latente explícito, é baseada nos seguintes pressupostos, expostos em Anamnese p.107: “(1) que a consciência não é constituí da como uma corrente dentro do Eu; (2) que em sua função intencional, a consciência, na experiência finita, transcende para o mundo, e que este tipo de transcendência é apenas um entre muitos e não deve ser feito o tema central de uma teoria da consciência; (3) que as experiências de transcendência da consciência no corpo, no mundo externo, na comunidade, na história e no fundamento do ser são dados na biografia da consciência e, então, antecedem a reflexão sistemática acerca da consciência; (4) que a reflexão sistemática opera com essas experiências, ou, ao menos, em sua operação, parte dessas experiências; que então (5) a reflexão é um evento posterior na biografia da consciência que pode levar à clarificação de seus problemas e, quando a reflexão se volta para a direção da meditação, à afirmação da existência; mas que isso nunca é um começo radical do filosofar ou pode levar a tal começo.”
[35] Assim, o filósofo que medita sobre sua própria consciência sem fazer conscientemente disto um esforço de autoconsciência, ou sem admitir que este esforço é parte constitutiva da consciência, termina ou no solipsismo cartesiano ou, o que é pior ainda, em alguma das formas modernas de reducionismo (psicanalítico, antropológico, sociológico, lingüístico etc.) que desembocam na negação da consciência.” Esboço de um Sistema de Filosofia p.5
[36] “Não é possível nem uma filosofia da consciência que isole o sujeito do mundo, como faz Descartes, nem uma que a reduza a um epifenômeno do mundo, como fazem Gadamer et caterva. Mas também me parece irrisória a solução dada por Ortega y Gasset, que explica consciência e mundo como faces do fenômeno “vida” – porque, afinal, Ortega vai definir a vida como história, como lo que hacemos y lo que nos pasa, e esquece que tanto o fazermos como o suceder-nos nada representariam para nós sem a consciência de nossa unidade autoral. Logo, digo eu, não é a “vida” (histórica) que funda a consciência, mas a consciência que, uma vez emersa da pura biologia, nos dá a possibilidade de uma “vida” histórica.” Esboço de um Sistema de Filosofia p.5
[37] Esboço de um Sistema de Filosofia p.5-6
[38] Ver Heidegger Réu p.189: “A culpa moral, o arrependimento e a reparação moral não são, segundo Heidegger, modos de ser ônticos da existência autêntica tal como revelada na filosofia. Esses conceitos só se entendem dentro de um contexto teológico baseado na revelação bíblica.” Isso é diametralmente oposto ao pensamento olaviano, que dá muito peso ao tema da sinceridade, da culpa, do arrependimento e do perdão enquanto potências presentes na estrutura da consciência. Há, de fato, em Heidegger, uma culpabilidade (ver Jolivet, As Doutrinas Existencialistas, p.135, em especial o rodapé), mas esta não é uma categoria de uma consciência que nasce moral, como é a olaviana. É interessante consultar o artigo Viver sem Culpas, de Olavo de Carvalho, publicado no Jornal da Tarde, em 13 de maio de 1999.
[39] Olavo chama de método confessional um exercício de autoridade em que examinamos nossa consciência enquanto estando perante um observador onisciente. É, portanto, uma praxis inspirada nas Confissões de Sto. Agostinho e, por conseguinte, na confissão sacramental.
[40] Curso Online de Filosofia: Aula 217
[41] “Ou seja, tudo o que você faz, os outros vão considerar que o responsável é você e não eles. Isto é a coisa mais lógica do mundo. Nessa expressão “capacidade de responder perante os demais agentes em torno”, estão contidas várias aulas do meu curso de ética, onde eu falei do princípio de autoria. Quando as pessoas dizem que não existem princípios morais e universais, eu digo: existem vários, e o primeiro deles é o princípio da autoria; de que o responsável por uma ação é aquele que a praticou, e não outra pessoa. Pode haver discussões sobre quem pode ser sujeito de uma ação e quem não pode, inclusive no sentido jurídico da coisa, mas o princípio da autoria continua válido em todos esses casos. No instante em que eu escrevo isso, eu estou me referindo a coisas que eu mesmo já disse.” Curso Online de Filosofia: Aula 161
[42] “). O sentimento de culpa também é uma coisa universal, humana. Não existe nenhuma época ou civilização em que não se veja este elemento presente sob variadas formas culturais diferentes. A existência de culpa objetiva é uma coisa, a existência do sentimento de culpa é outra. A ideia da culpa objetiva é também universal entre os seres humanos, o que corresponde àquilo que eu chamei no curso de ética o “princípio de autoria”. Não há nenhuma civilização ou cultura na qual se considere que o responsável pelos atos de um indivíduo seja outro indivíduo. A possibilidade de ação vem acompanhada com a responsabilidade e (nos casos mais intensos) com a culpa; isto é universal. Não existe nenhuma cultura onde se decreta que todo mundo é inocente, faça o que fizer. A ideia de justiça, na sua imensa variedade de versões diferentes – onde até o que num lugar parece o suprassumo da justiça em outro parece monstruosamente injusto – é imanente, universal, e, portanto, a ideia de culpa também. Ora, não existiria esta ideia de culpa consolidada na cultura se não existisse o sentimento de culpa dentro dos seres humanos…” Curso Online de Filosofia: Aula 160
[43] Ver Zeljko Loparic –Heidegger Réu: Um Ensaio sobre a Periculosidade da Filosofia
[44] “Se não há intimidade, não há consciência moral. Se o indivíduo não é capaz de penetrar no fundo de si mesmo – para se perceber como agente criador – como é que ele pode aplicar a si mesmo, o princípio número um de toda a moralidade? Como eu expliquei no curso de ética no Paraná, o princípio de autoria – que é o princípio de que cada um é o autor de seus atos, seus atos vêm de você e não de uma outra pessoa ou uma outra força. Se o princípio da autoria é negado não existe moral nenhuma e, sem um aprofundamento como um sujeito criador, não há princípio de autoria nenhuma. Então essas pessoas jamais tem que prestar satisfações ao tribunal de sua consciência, sua consciência está desativada. Existe uma consciência, mas só no nível puramente operacional, não no sentido da intimidade profunda.” Curso Online de Filosofia: Aula 192
Foto de Capa por Mauro Ventura. O trabalho dele pode ser conferido aqui:
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