E a miséria intelectual de nossa época chama-se niilismo. O homem é hoje um buscador do nada. Um negador de si mesmo, e de tudo. Mas essa negação o angustia. Angustia-se de não ser. E nela não poderá perdurar.
Mário Ferreira dos Santos – Filosofia da Crise p.18
A tentativa de tríplice refutação do agnosticismo, do relativismo e do niilismo ocorre, na obra de Mário Ferreira dos Santos, principalmente em dois livros: Filosofia Concreta e Filosofias da Afirmação e da Negação, que compartilham dum mesmo corpo de teses expostos de maneira diversa, o que facilita que as sintetizemos em nosso ensaio. [1] Todavia, urge que façamos alguns apontamentos. Em primeiro lugar, o filósofo não está interessado numa impugnação que inclua os elementos históricos implícitos nas teses; a construção de seus argumentos pretere da historicidade conceitual e trata os itens como teoremas matemáticos submetidos a uma reductio ad absurdum.[2] Portanto, não encontraremos, aqui, contestações ao niilismo de tal ou qual autor, mas ataques à idéia niilista enquanto forma de negação. Em segundo lugar, como tende a ocorrer com vários dos conceitos avaliados pelo autor, lidaremos com fórmulas algo originais – ainda que possamos encontrar equivalentes em manuais neotomistas – típicas e de certa forma necessárias devido à pretensão universalista da filosofia ferreiriana. [3]
Mário Ferreira dos Santos proclama que sua filosofia é fundada na “positividade” enquanto afirma o ser e, em verdade, esta é a única via, uma vez que o ser, na qualidade de fundamento do construto filosófico, é eminentemente positivo. A filosofia não pode ser iniciada numa negação pois referir-se-ia a algo de anteposto, i.e., positivo, e, neste sentido, o afirmativo é sempre prioritário ao negativo. Por isto, para o filósofo, especulações fundamentadas na afirmação do ser serão chamadas de filosofias da afirmação e, seu inverso, certo sinônimo de filodoxia, filosofias da negação.[4] O agnosticismo, o relativismo e o niilismo são, conforme o antedito, pertencentes à segunda classe.
De acordo com a ordem do conhecer,[5] o ceticismo é o arquétipo da filosofia negativista por rejeitar o âmbito em que se insere; no limite, o ceticismo nega a si mesmo na medida em que impugna a aferição de sua veracidade.[6] Por conta disto, a tentativa ferreiriana de refutar a tríade de negativismos principia na identificação do ceticismo enquanto raiz. O raciocínio é simples; posto que as teses céticas duvidam do conhecimento, o agnosticismo é a forma cética da suspensão do juízo, o relativismo da assunção de opiniões em detrimento da verdade e o niilismo da transposição da dúvida em negação. O processo de descarrilamento é semelhante ao descrito por Eliade no tratamento da questão “ocultamento” de Deus[7] nas religiões arcaicas: no princípio é postulado que Deus é eminente demais para que o cultuemos; depois suas funções são diluídas em divindades menores que, por fim, substituem o Ser supremo. No caso epistemológico, a verdade é desacreditada, substituída e então negada; temos, portanto, três graus de negação.
Em Filosofia Concreta, o ataque ao ceticismo ocorre após quase uma centena de páginas, fazendo com que, neste ponto da obra, sua refutação seja antes a explicitação, caso aceitemos o anteposto, de uma tese natimorta. Eis algo bem claro para o filósofo:
“Ontologicamente, o ceticismo universal, em face das teses já demonstradas, não procede, pois nenhum cético deixaria de reconhecer a validez apodítica do que expusemos […] caberia discutir apenas a posição niilista.” [8]
Aqui verificamos que a forma mais extrema de ceticismo, objetora da possibilidade mesma de conhecer, fica exclusa da especulação não apenas por sua absurdidade, mas pela trivialidade de sua impugnação, e isto por dois motivos: a) a tese implode por afirmar que sabemos que não podemos saber e b) a abundância de exemplum in contrarium. Ora, as quase trinta teses expostas até o momento são exemplos de verdades acessíveis; logo, esta forma de ceticismo não faz sentido para o filósofo. Restam, então, formas mitigadas de ceticismo, que serão reduzidas a dois argumentos: um a priori e um a posteriori.
O primeiro, de natureza apriorística, consiste na seguinte proposição: é impossível encontrar, racionalmente, um “critério seguro e inapelável da verdade” pois, para afirmá-la, precisaríamos demonstrar a veracidade das afirmações, o que exigiria outra prova e assim ad infinitum.[9] Este raciocínio, quiçá a pegadinha cética mais antiga de que se tem notícia, não se segue, para Mário Ferreira, por pressupor que a única forma de verificação das proposições é a demonstrativa, algo falseado na terceira tese da filosofia concreta: prova-se mostrando e não só demonstrando. A validez da objeção exige a demonstração de sua veracidade, algo negado em seu enunciado: logo, é falsa sob seu próprio jugo. Novamente, basta um exemplum in contrarium para a refutação positiva da objeção, digo, deve haver alguma proposição cuja evidência dispense uma demonstração; ora, o “algo há”, a primeira tese da filosofia concreta, é evidente. Então a objeção cética não vale.[10]
O segundo argumento cético, a posteriori, afirma o seguinte: nos enganamos, freqüentemente, acerca de várias coisas; por nos enganarmos algumas vezes, é prudente desconfiar que nos enganemos sempre: logo, não é seguro que tenhamos certeza alguma Este argumento, tão antigo e tão moderno[11], é tratado como improcedente por conta de uma generalização indevida e, novamente, possui dois defeitos: o primeiro é sua característica aniqüilante, pois, caso nos enganemos sempre, então também quando afirmamos que nos enganamos todas as vezes; segundo é, mais uma vez, ser impugnado por um exemplum in contrarium. Caso haja alguma vez em que não nos enganamos, impugna-se a objeção; ora, a proposição de que “algo há” é certa e não pode ser falseada por uma contraparte unívoca[12]. Então temos pelo menos uma certeza e a objeção cética não vale.
O filósofo colige, ainda, outra objeção contra o ceticismo: sua impraticabilidade, uma vez que suas negações não podem ser levadas a sério sem paralisia. Não conversamos com as pessoas duvidando de suas existências da mesma forma que não desacreditamos que comemos enquanto mordemos um hambúrguer. É possível, sim, negar que a rigidez de tal certeza difira daquela obtida numa demonstração de viés matemático, entretanto, isto não nos autoriza a generalizações feito aquelas que afirmam que a única forma correta de conhecimento é a dedutiva a priori, o que configura uma violação do senso das proporções por dois motivos: a) postula critérios de conhecimento impossíveis, contraditórios com o que efetivamente conhecemos e b) reduz vários setores da realidade a apenas um de seus aspectos, i.e., uma forma de pars pro toto. Temos, portanto, formas de pensamento metonímico. E, assim, findam as objeções contra os céticos.
Encerrada a primeira querela, Mário examina o agnosticismo que, enquanto forma cética, jaz vulnerável aos mesmos ataques. Entretanto, valem aqui alguns comentários. O filósofo não trata, diretamente, do agnosticismo enquanto dúbia da existência de Deus; o alvo é a dúvida acerca da possibilidade da certeza em geral – e da suspensão de juízo que lhe segue. Posto que o ceticismo consiste numa negação e, o agnosticismo, pressupondo de imediato que o conhecimento não é evidente – e, por conseguinte, pode ser duvidado –, segue que o segundo é uma espécie do primeiro na qualidade de dúvida mitigada; caso o primeiro caia por conta de alguma verdade ter sido demonstrada, a dúvida acerca do conhecimento em geral perde seu sentido. Por outro lado, é possível coligir agnosticismos setoriais e, agora, sim, é possível tratar daquele que dúvida da possibilidade de uma prova referente à existência ou inexistência de Deus – forma impugnada a partir da tese 81 do Filosofia Concreta, mas que devemos deixar para comentar em outro momento.
Eliminada a forma geral do agnosticismo, chega o momento do relativismo. Aqui o filósofo aceita sua concepção clássica: uma vez que não podemos alcançar uma certeza universal, resta que adotemos – ao menos pragmaticamente – “uma verdade por cabeça”. Nesse sentido, o relativismo é a instituição da doxa e, por conseguinte, o fim da filosofia.[13] Este dividir-se-á em duas modalidades: absoluta, quando a opinião é critério universal, e relativa, quando a certeza acerca das coisas é proporcional à nossa capacidade. O cerne de ambas consiste numa negação cética da cognição: a) nada é cognoscível e b) algo não é cognoscível. A primeira forma, natimorta, foi impugnada junto com o ceticismo; mas a segunda forma, a depender do contexto, é pseudo-problemática. Assim se explica devido ao filósofo ter definido o relativismo moderado da seguinte maneira: “nossas verdades são relativas ao sujeito cognoscente, segundo o seu modo de conhecer, aceitando, portanto, que há um conhecimento verdadeiro do que a coisa é em si, mas proporcionado ao sujeito cognoscente.”[14] Isto é o axioma escolástico Quidquid recipitur ad modum recipientis recipitur i.e., o que é recebido o é segundo a forma do recipiente, um modo de definir a estrutura do conhecimento humano enquanto capaz de atingir verdades conforme sua proporção – e isto decerto não é cético.
O “relativismo moderado” descrito pelo filósofo, a rigor, não existe. Advém de uma limitação terminológica do autor que, ironicamente, conhecendo o problema dos “ismos”, não pode escapar de seu uso indevido. Podemos tentar “salvar” a tese alegando que da proporcionalidade à cognição segue que a verdade em si mesma, independente da forma do conhecimento humano, é incognoscível; logo, o relativismo moderado instaura a doxa como imagem subjetiva da verdade que não podemos lograr. Esta seria, sim, uma forma de relativismo derivada do axioma escolástico. Por outro lado, para além de não se identificar com o visado pelo filósofo, sua estrutura afirma que por não conhecermos a “verdade em si”, segue que não conhecemos verdade alguma e então devemos postular a opinião. É uma generalização infantil, comparável a dizer que por não conhecermos, nos mínimos detalhes, o funcionamento de um computador, segue que não sabemos o que ele faz – não conhecer a “coisa em si” não implica que não a conheçamos de forma alguma.[15]
Todavia, esta forma de relativismo pode ser impugnada não apenas pelas teses da filosofia concreta mas pelo próprio equipamento escolástico. Sto. Tomás de Aquino, por exemplo, em seu Questões Disputadas sobre a Verdade, após definir a verdade como adaequatio entre o intelecto e a coisa, deixa claro que tal concordância ocorre, na ausência de um intelecto humano, com o divino; nisto, não é possível uma “verdade em si” pois toda verdade deve concordar pelo menos com a inteligência de Deus.[16]
Supressos o ceticismo, o agnosticismo e o relativismo, resta o niilismo. Mário não entende o niilismo, prioritariamente, como ausência de todos os valores, mas enquanto ausência absoluta ou negação ontológica. Um niilismo ontológico refere-se, portanto, à afirmação da prioridade do não-ser: “negaria terminantemente que algo há, e afirmaria que nada absolutamente não há. Tudo seria mera e absoluta ficção.”[17] Mas tal posição é absurda e aniqüilante, uma vez que uma pessoa que é não pode afirmar que nada há sem cair, pelo menos, numa contradição performativa. Todavia, a tese é natimorta; trata-se da tentativa de erigir uma contraditória unívoca à afirmação do ser; uma vez que isto não pode ocorrer, a objeção não vale. Por outro lado, e agora saímos um pouco do escopo visado pelo filósofo, há teses aparentadas ao niilismo ontológico enquanto defendem a prioridade do não-ser, digo, não negam que algo há, mas que, prioritariamente, aquilo que há não houve deste sempre. Nisto, antes de afirmar o não-ser, postulam a negatividade primordial: o ser deriva do nada.
Entretanto, esta tese, tão adorada por físicos de multidisciplinaridade duvidosa, é deficiente, e isto por alguns motivos. Podemos compreender o não-ser de duas formas: absoluta ou relativa. No primeiro caso, temos o não-ser enquanto negação absoluta, este já provado impossível na primeira tese da Filosofia Concreta. [18] No segundo, temos o não-ser enquanto privação; este pode haver apenas enquanto referente àquilo que é. Se o niilismo ontológico afirma o segundo, então não é ontológico; se o primeiro, então é impossível. Entes contingentes são mesclas de ato e potência; aquilo que não está em ato deve ser atualizado por outro que esteja[19]; posto que o não-ser não pode estar em ato (uma vez que não-é) então ele não pode atualizar entes; segue que o ser não pode advir do nada – daí o antigo adágio: ex nihilo nihil fit. Entidades contingentes não existem necessariamente; logo, para existirem, devem vir a ser. Por isto dizemos, conforme Platão[20], que tudo o que veio a ser possui causa. Impossibilitada uma série infinita de causas – o que impediria que algo fosse causado –, é preciso haver uma primeira que, por sua vez, deve ser eterna: do contrário teríamos duplo problema: a) a afirmação do não-ser absoluto, e este é impossível e b) caso houvesse um não-ser primeiro, destituído de ato, não poderia ser causa. Então não pode haver um não-ser primordial.[21] Temos, então, pelo menos três razões contra o niilismo ontológico: a impossibilidade do nada absoluto, a impotência do nada e a eternidade do ser.
Assim ocorre, em termos ferreirianos, a refutação do relativismo, do agnosticismo e do niilismo enquanto formas de ceticismo. Todavia, devemos esclarecer alguns aspectos desta impugnação. Em primeiro lugar, a respeito do ceticismo em geral, a refutação vale apenas para sua forma absoluta, que é, n´alguma medida, um problema já resolvido: ele não é, há muitos anos, tratado como problema epistemológico robusto. Por outro lado, existem formas específicas de ceticismo, como a problemática do Trilema de Agripa no âmbito da filosofia analítica, que ultrapassam o escopo da filosofia ferreiriana.[22] Devemos considerar, portanto, que o problema tratado na Filosofia Concreta é, de certa forma, natimorto – embora haja espaço para o desenvolvimento de uma refutação que abranja outras formas de ceticismo. Ademais, a refutação do relativismo, focada no problema epistemológico, apresenta as mesmas deficiências destacadas na versão contra os céticos, compartilhando ainda, com o ataque ao niilismo, da ausência de uma contestação às versões morais. Em segundo lugar, a refutação do relativismo, centrada no problema epistemológico, sofre das mesmas deficiências apontadas na versão contra os céticos; participa, ainda, com o ataque ao niilismo, da falta de uma impugnação a versões morais. Uma visada nos livros Filosofia Concreta dos Valores ou Sociologia Fundamental e Ética Fundamental revela que o filósofo não oferece uma fundamentação concreta que postule, com o mesmo rigor verificado no Filosofia Concreta, a existência de valores morais objetivos.[23] Não podemos, portanto, estender estas considerações para o campo moral – ao menos não sem um trabalho que forneça uma argumentação rigorosa e funde, em termos ferreirianos, uma ética que exponha valores objetivos bem definidos, empreitada que poderia seguir, por exemplo, o caminho trilhado por Octavio Derisi em seu Los Fundamentos Metafísicos del Orden Moral.
Adendos esclarecidos, qual o valor do escrito ferreiriano? Eles participam de uma epistemologia fundamental, calcada no senso comum. Não é possível que se faça filosofia alguma digna de tal nome sem concordar com tais postulados; servem, portanto – segundo a expressão kantiana – de prolegômenos a toda filosofia possível. É impossível filosofar através de teses que impedem a idéia de especulação filosófica: não tratamos do saber em geral negando sua possibilidade, da verdade presos à opinião, da certeza perdendo-nos na dúvida ou do ser postulando o nada. Neste sentido, antes de criticarmos Mário Ferreira por não ter completado seu sistema, o agradecemos por nos fornecer os fundamentos para uma filosofia sólida.
É preciso construir a filosofia através de juízos positivos e universalmente válidos que reúnam, em seu escopo, todo o conteúdo correto fornecido pela tradição filosófica: eis, em suma, a mensagem de Mário Ferreira dos Santos.
Dizem, com efeito, (os ímpios) no desvairamento dos pensamentos: O tempo da nossa vida é curto e cheio de tédio, não há remédio quando chega a morte […] Assim pensam, mas enganam-se, porque a sua malícia os cegou.
Caso o leitor tenha aprendido algo com nossos textos, favor considerar uma doação, via PIX [real] ou entrar em nosso canal no Telegram, no código QR correspondente. Sua contribuição nos motiva a continuar fornecendo filosofia de forma simples, mas não simplificada.
Bibliografia
- Aristóteles – Órganon
- Emanuela Scribano – Guia de Leitura das Meditações Metafísicas de Descartes
- Franco Volpi – O Niilismo
- John Grego & Ernest Sosa – Compêndio de Epistemologia
- Mário Ferreira dos Santos – Filosofias da Afirmação e da Negação [2ª Ed. 1962]
- Mário Ferreira dos Santos – Filosofia da Crise [3ª Ed. 1959]
- Mário Ferreira dos Santos – Filosofia Concreta Tomo I [3ª Ed. 1961]
- Mário Ferreira dos Santos – Filosofia Concreta dos Valores [1ª Ed. 1960]
- Mário Ferreira dos Santos – Sociologia Fundamental e Ética Fundamental [2ª Ed. 1959]
- Mircea Eliade – Mito e Realidade
- Mircea Eliade – Mitos, Sonhos e Mistérios
- Mircea Eliade – O Sagrado e o Profano
- Olavo de Carvalho – Inteligência e verdade
- Pe. Édouard Hugon – Os Princípios da Filosofia de Santo Tomás de Aquino: As Vinte e Quatro Teses Fundamentais
- Platão – A República
- Platão – Timeu
- René Descartes – Meditações
- Sto. Tomás de Aquino – Questões Disputadas sobre a Verdade
- Sto. Tomás de Aquino – Suma Contra os Gentios
Notas:
[1] O Filosofia Concreta foi escrito, em sua maior parte, em more geométrico; o Filosofias da Afirmação e da Negação é, sobretudo, um diálogo filosófico protagonizado pelos personagens de outro livro, Homens da Tarde. Todavia, quase todas as teses do primeiro são expostas no segundo pela boca dos participantes do diálogo.
[2] Este procedimento impugnatório é perigoso e corre o risco de se tornar inane por dois motivos: a) a definição proposta pode não corresponder a uma tese real, defendida por alguém, e b) pode incorrer numa forma de espantalho. Por conta disto, refutações exemplares, feito a impugnação do psicologismo levada a cabo por Husserl, leva em conta elementos históricos e casos particulares antes de objetar o ponto central da idéia de psicologismo.
[3] Como fica patente no Filosofia Concreta, o autor busca universalização e precisão semelhantes às encontradas de conceitos matemáticos. Assim, teses simples mas com conteúdo abrangente podem ser deduzidas umas das outras como num cálculo.
[4] O tema da filosofia da negação é mais profundo do que aparenta. Verificamos, na história da filosofia, que especulações fundamentadas na negação tendem a ser sempre acidentais em relação àquilo que negam e, neste sentido, são antes problemas filosóficos do que, strictu sensu, filosofias. O ceticismo em geral, com suas teses impugnatórias à forma do conhecimento, tem sido tratado antes como problema a ser resolvido do que como uma escola a ser seguida. Da mesma forma, o niilismo é posto antes como etapa a ser superada do que como ponto final da especulação. O pêndulo passa pelo ponto negativo, mas sempre volta para o positivo.
[5] Chamamos de ordem do conhecer o movimento cognitivo que parte do “sujeito” em direção ao “objeto”; é o escopo especulativo da epistemologia. Seu inverso é a ordem do ser, o movimento cognitivo que parte das coisas em direção à pessoa; é o escopo especulativo da metafísica. Ambas existem numa mesma realidade e não se contradizem, uma vez que representam âmbitos diversos num mesmo plano.
[6] No caso de um ceticismo extremo, que impugna nossa capacidade de afirmar qualquer coisa, fica impossível aferir a veracidade do ceticismo.
[7] Deus otiosus ou absconditus. Ver Mito e Realidade p.85, O Sagrado e o Profano p.106, Mitos, Sonhos e Mistérios p.163
[8] Filosofia Concreta Tomo I p.87
[9] A objeção cética apriorística é velha conhecida entre os filósofos. Sua forma definitiva foi posta por Aristóteles em Analíticos Posteriores 72b5-73b30. A terceira tese da Filosofia Concreta, que afirma a prova mostrativa ao lado da demonstrativa, também segue Aristóteles, que diz no mesmo Analíticos Posteriores: “Nós, contudo, sustentamos que nem todo conhecimento é de natureza demonstrativa. O conhecimento das premissas imediatas não é demonstrativo. E é evidente que assim deva ser, já que é necessário conhecer as premissas anteriores com base nas quais a demonstração progride e, se o retrocesso finda com as premissas imediatas, têm estas que ser indemonstráveis. Esta é a nossa doutrina a esse respeito.”
[10] A procura de proposições autoevidentes é algo semelhante a um “santo graal” da filosofia, e tem sido tomada como a pedra angular do “fundacionismo”. Entretanto, o fundacionismo é uma concepção filosófica submissa à idéia de sistema, digo, de um construto especulativo erigido sob uma premissa fundamental – algo que, infelizmente, Mário Ferreira tentou fazer. Todavia, a existência de proposições autoevidentes é comum na filosofia em geral. Um exemplo fácil é o “algo há” do mesmo Mário, afirmação que espelha o ser como primum notum; sua negação implica numa série de contradições insolúveis e até engraçadas, feito a inexistência do sujeito que nega.
[11] O argumento ocorre não apenas no ceticismo antigo mas também é pedra angular da filosofia cartesiana na medida em que fundamenta, na primeira meditação, sua desconfiança para com os sentidos e abre a porta para uma especulação que levará em conta apenas a “razão”; em suma, ela possibilitará a idéia de um dualismo de substâncias: “Até o momento presente, tudo o que considerei mais verdadeiro e certo, aprendi-o dos sentidos ou por intermédio dos sentidos; mas às vezes me dei conta de que esses sentidos eram falazes, e a cautela manda jamais confiar totalmente em quem já nos enganou uma vez.” Pode ser interessante consultar a explicação de Emanuela Scribano em Guia de Leitura das Meditações Metafísicas de Descartes p.33 e seguintes.
[12] Tomo, aqui, a especulação acerca das propriedades da evidência proposta por Olavo de Carvalho em seu Inteligência e verdade p.64 se seguintes. A mais importante, a impossibilidade da afirmação de uma contraparte unívoca para proposições evidentes, funciona mais ou menos assim: posto o princípio de identidade (descrito por Olavo como A=A ou A¹= A² =A), caso o neguemos, inserindo uma diferença entre os elementos (A¹ e A²) que o descrevem, segue uma ambigüidade por conta da diferenciação poder significar tanto que A¹ ≠ A ou que A² ≠ A. Se negamos que algo é o mesmo, portanto que é diferente, o que segue não é uma contraparte unívoca do princípio de identidade, mas a enumeração do sentido da diferença. Isto é espelhado na primeira afirmação do Filosofia Concreta, digo, a contraparte da evidência de que algo há, a negação absoluta, é impossível; logo, é preciso dizer em que sentido há uma negação. Por isto o filósofo postula o nada relativo, que, por sua vez, em nada contradiz o princípio fundante de sua filosofia.
[13] Como postulado por Platão, em A República, o filósofo visa a epísteme, ao passo em que o filodoxo, descreditando da possibilidade de alcançar a verdade, visa a doxa (opinião). O relativista, enquanto nega a universalidade da verdade em prol da particularidade da opinião é, essencialmente, filodoxo. Tal conclusão, algo dura para muitos, implica que não é possível haver filósofos relativistas: “[…] esse amador de espetáculos que não consente de modo nenhum que alguém diga que o belo é um só, e o justo, e do mesmo modo as outras realidades […] portanto, ao que parece, que as múltiplas noções da multidão acerca da beleza e das restantes coisas como que andam a rolar entre o Não-ser e o ser absoluto […] Mas assentamos previamente em que, se uma coisa destas nos aparecesse, teríamos de a considerar do domínio da opinião, e não da ciência, pois, como objeto errante no espaço intermédio, é apreendida pela potência intermediária […] por conseguinte, dos que contemplam a multiplicidade de coisas belas, sem verem a beleza em si, nem serem capazes de seguir outra pessoa que os conduza até junto dela, e sem verem a justiça, e tudo da mesma maneira – desses, diremos que têm opiniões sobre tudo, mas não conhecem nada daquilo que as emitem. […] E agora os que contemplam as coisas em si, as que permanecem sempre idênticas? Porventura não é isso conhecimento, e não opinião? […] Não diremos também que têm entusiasmo e gosto pelas coisas que são objeto do conhecimento, ao passo que aqueles só o têm pelas que são do domínio da opinião? […] não os ofenderemos de alguma maneira chamando-lhes amigos da opinião em vez de amigos da sabedoria?” Platão – A República 479a – 480a
[14] Filosofia Concreta Tomo I p.89
[15] Esta objeção tem sido usada, freqüentemente, contra a filosofia de Immanuel Kant. Entretanto, como podemos conferir, são objeções inócuas.
[16] “Uma coisa não se diz verdadeira senão enquanto é adequada ao intelecto, donde o verdadeiro se encontrar secundariamente nas coisas, e primariamente no intelecto. Contudo, deve-se saber que uma coisa se relaciona de um modo com o intelecto prático e de outro modo com o intelecto especulativo. Com efeito, o intelecto prático causa coisas, e assim é medida das coisas que se fazem por meio dele; mas, dado que recebe das coisas, o intelecto especulativo é de certo modo movido e medido por elas. Daí se evidencia que as coisas naturais, das quais nosso intelecto recebe a ciência, medem nosso intelecto, como se afirma no livro X da Metafísica, mas são medidas pelo intelecto divino, no qual todas as coisas são como são todas as coisas artificiais no intelecto do artífice. Assim, portanto, o intelecto divino mede e não é medido; a coisa natural mede e é medida; mas nosso intelecto é medido e não mede as coisas naturais, mas só as coisas artificiais. Portanto, a coisa natural, constituída entre dois intelectos, se diz verdadeira segundo a adequação a cada um deles; segundo a adequação ao intelecto divino, ela se diz verdadeira, enquanto preenche aquilo a que foi ordenada pelo intelecto divino, como se evidencia por Anselmo em Sobre a verdade, e por Agostinho no livro Sobre a verdadeira religião, e por Avicena na definição acima mencionada, isto é: “A verdade de uma coisa é uma propriedade do ser que lhe foi estabelecido”; segundo, porém, a adequação ao intelecto humano, uma coisa é dita verdadeira, enquanto é apta para dar causa a um juízo verdadeiro a respeito de si própria, assim como, ao contrário, se dizem falsas aquelas coisas que parecerem ser o que não são ou que parecem ser como não são, como se diz no livro V da Metafísica. Ora, o primeiro sentido da verdade é o que se aplica primariamente às coisas naturais, pois a comparação de uma coisa com o intelecto divino é anterior à sua comparação com o intelecto humano; donde, mesmo que não existisse o intelecto humano, ainda assim as coisas se diriam verdadeiras em ordem ao intelecto divino.” Santo Tomás de Aquino – Questões Disputadas sobre a Verdade q.2. a.2. Resp.
[17] Filosofia Concreta Tomo I p.91
[18] Nos termos do Mário Ferreira: “Ou alguma coisa, há, ou, então, o nada absoluto. O nada absoluto seria a total ausência de qualquer coisa, ab-solutum, des-ligada de qualquer coisa, o vazio absoluto e total. Neste momento, podemos ser a ilusão de um ser, podemos duvidar de nossa experiência e da do mundo exterior, porém não podemos afirmar que nada há, porque a própria dúvida afirma que há alguma coisa, a própria ilusão afirma que há alguma coisa, e não o nada absoluto. Quando dizemos há alguma coisa, afirmamos a presença do que chamamos “ser”, embora ainda não saibamos o que é ser, em que consiste, qual a sua essência, o que dele podemos dizer. Vê-se, assim, que alguma coisa há é contraditado peremptoriamente pelo nada absoluto. Afirmar que há o nada absoluto é o mesmo que afirmar que não há qualquer coisa em absoluto. Mas, note-se, em, absoluto, porque, admitido que alguma coisa há, não se dá contradição em admitir-se que alguma coisa não há, pois pode haver alguma coisa, esta ou aquela, e não haver alguma coisa, essa ou aquel’outra. Chamaremos ao primeiro nada de nada absoluto, e ao segundo de nada relativo. Se ao nada absoluto contradiz o “alguma coisa há”, o nada relativo apenas a ele se opõe, não o exclui.” Filosofia Concreta, Tomo I p.29-30
[19] Ver Pe. Édouard Hugon – Os Princípios da Filosofia de Santo Tomás de Aquino: As Vinte e Quatro Teses Fundamentais p.41 e seguintes.
[20] “Penso que temos que começar com a seguinte distinção: o que é aquilo que sempre é e não tem vir a ser e aquilo que é vir a ser e jamais é? Um desses é apreendido pelo pensamento graças ao discurso racional, visto que é sempre uniformemente existente; quanto ao outro, constitui objeto da opinião graças à sensação irracional, visto que se mantém num processo de transformação (o vir a ser), perece e nunca é realmente. Por outro lado, tudo quanto vem a ser necessariamente vem a ser devido a alguma causa, pois na ausência de uma causa a consecução do vir a ser é impossível para qualquer coisa.” Timeu 28a
[21] Esta é, essencialmente, a prova da eternidade de Deus fornecida por Sto. Tomás em Suma Contra os Gentios I cap. XV: “Além disso, se alguma coisa em algum tempo não foi, e depois foi, ela foi induzida de não-ser ao ser por alguma coisa. Não o foi por si mesma, desde que o que não é não pode operar. Se foi por outra coisa, esta ser-lhe-ia anterior. Ora, acima foi demonstrado que Deus é a causa primeira. Por conseguinte, não começou a ser. Donde, não deixará de ser, porque o que sempre foi tem capacidade para sempre ser. Logo, é eterno. Além disso, observamos existirem no mundo coisas que podem ser e não ser, como as sujeitas à geração e corrupção. Ora, tudo que é possível de ser tem causa, porque enquanto por si mesmo refere-se a dois termos, isto é, ao ser e ao não-ser, necessita, se o ser lhe for apropriado, que tal se dê proveniente de uma causa. Mas como nas causas não se pode proceder in definidamente, como acima foi demonstrado por argumentação de Aristóteles, há de se admitir algo que seja necessariamente ser.” Uma prova análoga ocorre entre as teses 13 e 17 da Filosofia Concreta.
[22] Ver o artigo Ceticismo in Compêndio de Epistemologia p.65
[23] Mesmo que tomemos uma série de teses encontradas em outros livros, como a tímese parabólica – espécie de seletividade natural que nos permite comparar perfeições – ou a polêmica isonomia entre valor e bem (a tentativa de transformar o valor em ens et bonum convertuntur ocorre na tese 45 de Filosofia Concreta dos Valores), em momento algum o filósofo consegue fundar, strictu sensu, uma moral. Isto pode ser explicitado de algumas formas, entre elas a observação (baseada na leitura de Sociologia Fundamental e Ética Fundamental 2ª Ed. 1959 p.110ss) de que a mera seletividade a) não postula a objetividade das escolhas sob razão de bem e b) a apreciação valorativa não identifica o valor com o bem e muito menos o postula como objetivo. Nestes termos, a Filosofia Concreta da Ética, ainda que possua mais de cinqüenta teses, fica por fazer.
Posts Relacionados
-
Niilismo, Ética e o Dilema do Bonde
Por Richard Cocks Tradução de Tibério Cláudio de Freitas Notas e comentários de Helkein Filosofia…
-
Gnosticismo Existencialismo e Niilismo: Parte II
Por Hans Jonas Tradução, notas e comentários de Helkein Filosofia Antes que prossigamos,…
-
Gnosticismo Existencialismo e Niilismo: Parte I
Por Hans Jonas Tradução, notas e comentários de Helkein Filosofia Neste capítulo proponho, ainda…