[…] infelices autem sunt et inter mortuos spes illorum est qui appellaverunt deos opera manuum hominum aurum et argentum artis inventionem similitudines animalium aut lapidem inutilem opus manus antiquæ…
Sb. 13:10
Não importa a maneira como tratemos, filosoficamente, determinada matéria, a investigação deve partir dum ponto bem definido. Nisto, em condições normais, o procedimento foi sempre o mesmo: dado o impulso inicial, para que a expressão dos filosofemas seja bem sucedida, urge que os dados obtidos no decorrer da investigação tornem-se inteligíveis mediante tratamento num corpo conceitual, percurso este que os escolásticos descreveram como a transição de noções “brutas”, sob forma de síntese confusa, para conceitos logicamente concatenados. Um componente essencial deste tratamento consiste num esforço linguístico para expressar, com precisão, o inteligido, algo executado através da reunião de uma terminologia provisória, rica em figuras de linguagem, que será, posteriormente, substituída pela expressão técnica adequada. Entretanto, o que acontece caso tomemos a primeira pela segunda? Esta é uma das faces do problema que Olavo de Carvalho chamou de pensamento metonímico, um conjunto de incongruências cuja melhor forma de perfilar, num primeiro momento, é comparando-a à confusão entre os ecos e as vozes.
Muito utilizado, embora pouco explicado, o conceito de pensamento metonímico é freqüentemente acompanhado de breves definições cujo conteúdo tende a revelar vários ângulos dum mesmo problema. Daqui retiramos autorização para especular a raiz comum de uma questão multifacetada e, uma vez identificado seu cerne, investigar a forma como se origina. Portanto, nosso objetivo neste ensaio é perfilar, em linhas gerais, a origem e a substância do fenômeno denominado pensamento metonímico. Primeiro investigaremos, num lampejo, o lugar da metonímia no contexto dos ante-predicamentos e, depois, suas manifestações enquanto vício cognitivo.
Grosso modo, consideramos que há analogia quando identificamos similitudes – entre coisas ou situações – ao mesmo tempo em que atestamos diferenças que excluam uma univocidade sem que se atinja a equivocidade; por conta disto, Mário Ferreira dos Santos define a relação análoga enquanto síntese entre semelhanças e diferenças. [1] Caso tais semelhanças convenham, qualitativa ou quantitativamente, a todos os objetos examinados, teremos uma analogia de atribuição intrínseca; por outro lado, a semelhança convindo mediante transposição de sentido (feito um símbolo), então temos uma analogia de atribuição extrínseca ou metafórica, [2] subdividida, por sua vez, em proporcionalidade ou atribuição, cujo primeiro refere-se a semelhanças proporcionais e o segundo a alguma referência causal, seja imediata ou mediada. [3] A metonímia, enquanto espécie de metáfora, é uma analogia de atribuição extrínseca por atribuição por conta de operar uma transposição de sentido, feito quando dizemos que comemos um bom prato em vez da comida que estava nele.
Tendo isto em conta, compreenderemos o pensamento metonímico, provisoriamente, enquanto uso vicioso das metonímias como se fossem descrições analíticas; em outros termos, o problema consiste na confusão inconsciente entre relações analógicas e unívocas. Descrito o posto da metonímia como forma de analogia, podemos avaliá-la no contexto do pensamento olaviano e da crítica do pensamento metonímico feito problema.
Uma primeira aparição consiste na noção olaviana de que a pessoa destituída de domínio gramatical, que não consegue reconhecer a ordem conceitual contida nas frases, encontra-se inapta para identificar, corretamente, noções unívocas;[4] a explicação disto é que aquele que não puder precisar o referente real dos conceitos e sua concatenação numa oração não identificará do que se fala e nem como se fala – nisto, temos, de certo modo, um analfabetismo. Uma vez que a precisão esteja fora do alcance do sujeito, ele precisará utilizar a língua da forma que puder e, nisto, tateará os temas por associações e aproximações. Esta prática surge, num primeiro momento, como inocente; entretanto, torna-se problemática quando tais correlações se passam por conceitos unívocos e, assim, temos um uso vicioso das figuras de linguagem;[5] eis a forma metonímica referente a tomar o abstrato pelo concreto.
Outra face do problema consiste na rejeição da noção de que o filósofo rechace o uso das metonímias; o que ocorre é que o vício do pensamento metonímico age enquanto distorção da capacidade metonímica.[6] Utilizamos figuras de linguagem enquanto símbolos que apontem certos atributos; são, essencialmente, formas de abstração. Entretanto, para a o domínio duma abstração, urge que seja possível “revertê-la” até o seu referente real, algo complicado no caso das metonímias, por elas agirem como símbolos de outros símbolos. Isto posto, para que possamos utilizá-las corretamente, é preciso estar ciente como operamos as relações analógicas. No caso da pessoa que utiliza tais figuras de linguagem de forma descuidada, elas serão tomadas por outras; daí temos a troca do qualificado pelo qualificativo.
O terceiro aspecto do problema retorna ao tema dos conceitos unívocos, equívocos e análogos. Posto que a analogia é uma síntese entre semelhanças (univocidade) e diferenças (equivocidade), seu mau uso acarreta a redução falaciosa de um aspecto ao outro, i.e., uma pars pro toto.[7] Este ponto merece atenção por conta de sua ocorrência ser, de certa forma, inocente na proporção em que tais confusões podem acontecer no início dos estudos filosóficos ou de alguma outra matéria: enquanto tentamos precisar um conceito, utilizamos os que já obtemos até que possamos captar o que desejamos com a distinção adequada. No entanto, durante o processo de precisão, é possível que um conceito polivalente seja reduzido a alguma de suas facetas, tornando-se unilateral, algo freqüente em estudantes de filosofia que topam, pela primeira vez, com a terminologia aristotélica e se surpreendem ao notar que o termo substância engloba ao menos cinco ângulos diferentes. Olavo explica o problema do conceito unilateral no contexto do pensamento metonímico da seguinte forma:
O que é um conceito falso para Hegel? É um conceito unilateral, [formado quando alguém] pega um aspecto de uma coisa, mas não capta sua totalidade vivente. É o que, hoje, eu chamo de pensamento metonímico. Você começa [os estudos] usando metonímias porque não sabe com que substância lida; não sabe qual é, efetivamente, o objeto em questão e, assim, o designa mediante alguma de suas propriedades enquanto acredita que ela se refere ao todo. O pensamento metonímico é o grau mais baixo do pensamento filosófico; [ele ocorre quando] você está começando a arranhar alguma coisa. Mas é preciso que você tenha consciência de que utiliza metonímias e que tais conceitos deverão ser substituídos mais tarde.
Olavo de Carvalho – Curso Online de Filosofia: Aula 234 [Transcrição levemente corrigida]
Descritos os aspectos do pensamento metonímico, é possível especular sua raiz num erro de predicação[8] advindo de duas causas: a) a dificuldade em conectar as palavras às coisas e b) um domínio deficiente do aparato lingüístico. Uma pessoa que não consegue ligar os vocábulos ao seu referente real precisa utilizar uma série de termos aparentados para que o sentido se aproxime do desejado, e isso pode ocorrer por mais duas causas: a) o sujeito se deparou com algo novo e não conhece o termo que o denomina, b) ou conheceu a palavra antes da coisa e não sabe a que ela se refere. No primeiro caso, normal, durante o estudo da filosofia, uma vez encontrado o termo correto, tudo se resolve por conta de a pessoa ter ciência da coisa antes de seu nome; no segundo caso, também normal, arrisca-se perder de vista o referente real, uma vez que um termo pode se referir a outros e, assim, num emaranhado terminológico, emergir a ilusão de que se tateou algo de fixo. Perdida a conexão entre ente e vocábulo, fica impossibilitada a distinção entre as noções unívocas e equívocas e, portanto, também entre as formas de analogia, permitindo a tomada de expressões análogas por unívocas e operar o vício denominado pensamento metonímico.
Identificada a gênese do vício metonímico, podemos situá-lo enquanto problema filosófico, o que pode ser feito observando suas implicações epistemológicas conforme apontado por Olavo de Carvalho no contexto das distinções reais e nominais. Uma vez que, viciada pelo pensamento metonímico – na medida em que nubla a conexão entre as palavras e as coisas – a pessoa não consegue diferenciar o realmente distinto daquilo que foi apenas por operações do intelecto, o nominalmente distinto será, indevidamente, transposto para a realidade.[9] Reificadas as distinções secundum rationem, trabalharemos com construtos conceituais crendo que se refiram a algo de real; esta forma metonímica equivale à falácia de concreção deslocada apontada por Alfred Whitehead e Eric Voegelin.[10] Sua consequência para a filosofia é o fenômeno de construtos filosóficos de rigor lógico ilibado, mas sem referente real – eis, portanto, uma das formas de se acarretar uma paralaxe cognitiva.
Olavo nos fornece um exemplo ao comentar a distinção entre uma pessoa, os seus sentidos e o objeto apreendido sensivelmente: uma vez reificada, ela impõe uma separação real ao que é, na realidade, uma coisa só, fazendo com que o exame da apreensão sensível esteja viciado desde o início. No limite, tal reificação remonta a distinção cartesiana entre res cogitans e res extensa[11] na medida em que insere, sub-repticiamente, um fosso naquilo que, na realidade, é uno, e faz com que pensemos dois aspectos de uma pessoa como se fossem coisas diferentes. Este erro, conforme explicado pelo filósofo, separa a pessoa de seu olho e então os apresenta como entidades separadas realmente, como se uma fosse a pessoa e outra o olho. Entretanto, não é o olho que vê, mas nós mesmos; por isso:
Os meus olhos não são apenas um órgão mediante o qual apreendo as coisas, ele são, de fato, eu mesmo. Nisto, digo que a distinção entre o “eu percipiente” e os olhos é uma distinção e não uma separação e, nisto, meramente nominal. Não estou separado do meu olho; eu não tenho, por exemplo, uma consciência visiva independente do meu olho, isso simplesmente não existe, digo, é pensamento metonímico do brabo. Agora, esse negócio de dividir, primeiro, o sujeito do objeto, o sujeito da percepção e depois a percepção do percipiente forma um monte de coisas separadas que não podem mais ser reunidas. Ocorre que o erro consiste em tratar distinções nominais como se fossem separações reais. Essa separação não existe, digo, você dá nome às coisas, por exemplo, chamando um sujeito de Olavo de Carvalho e então pensa que são duas pessoas, um Olavo e um Carvalho. É exatamente a mesma coisa, erros banais, mas que criam grandes tragédias filosóficas.
Olavo de Carvalho – Curso Online de Filosofia: Aula 280 18:50+ [Transcrição levemente corrigida]
Partindo da compreensão do vício metonímico enquanto distorção da forma do raciocínio, podemos tomá-lo como corruptor de cosmovisões na medida em que as metonímias, uma vez fossilizadas e se passando por termos unívocos, tornam muito complicado descrever aspectos do real por conta da linguagem ter sido viciada de antemão. Ainda que nossa percepção distinga, tacanhamente, tal ou qual fenômeno, ficamos impossibilitados de expressá-los corretamente devido às limitações impostas pela terminologia utilizada para pensá-lo. [12] Desta forma, o pensamento metonímico torna-se virulento para a epistemologia por conta do falseamento das expressões; uma vez que as distinções fundamentais inclusas num filosofema são falseadas na qualidade de meras metonímias, todo um construto filosófico pode vir abaixo por falta dum referente real corretamente distinto ou da criação de entidades inexistentes.
Olavo nos fornece dois exemplos de “fósseis metonímicos” incrustados na cultura popular e que se passam por coisas reais: a) a inteligência artificial e b) o progresso do conhecimento. No primeiro caso, o que chamamos de “inteligência artificial” é uma metáfora[13] que, na verdade, aponta para um programa que imita certos aspectos do raciocínio humano enquanto concatenação de nexos. Assim, programas de geração de texto parecem “pensar” por conta de imitarem a comunicação humana, entretanto, como provado por Searle, nada há de inteligente ali. O termo “inteligência artificial” não denota inteligência alguma e, caso tomemos o vocábulo “inteligência” sem consciência de seu sentido metafórico, estaremos tomando a parte pelo todo, o análogo pelo unívoco e nos enredando numa percepção falsa:
“As percepções falsas se baseiam em semelhanças aparentes e não nas verdadeiras, que são apenas as analogias. Quando você entra no pensamento metonímico, passa a perceber certo aspecto e o simboliza como se fosse a coisa inteira; nisto, logo em seguida, passa a acha que aquilo é a coisa inteira.”
Olavo de Carvalho – Curso Online de Filosofia: Aula 369 [Transcrição levemente corrigida]
O segundo caso, o do “progresso do conhecimento”, consiste numa metáfora para “o número de registros materiais dos conhecimentos adquiridos.”[14] A rigor, o conhecimento não é, conforme ilusões infantes, uma entidade sob progresso contínuo, e pessoas nascidas num período posterior não são, devido à data de seu aniversário, mais sábias do que as pertencentes a uma era passada. O menino nascido em 2006 não é mais sábio do que Aristóteles, nascido em 380 a.C.; o que ocorre é que o primeiro possui mais meios de aprendizado referentes ao sabido em sua época e, em verdade, nada saberá a menos que possa compreender o conteúdo de seu registro. Nisto, o chamado “progresso do conhecimento” é a forma metonímica da tomada do abstrato pelo concreto.
Então, para nos livrarmos deste vício, há duas maneiras: a mais simples consiste na recuperação da precisão vocabular mediante análise do uso dos termos a fim de reconectá-los a seus referentes reais e, assim, “descrever as coisas como elas são”; e a complicada, reservada a escritores: confeccionar um novo vocabulário que dê conta das experiências que não possuam expressões adequadas. Peter Berger comenta que as instituições precisam existir na consciência para obterem sua justificação na realidade;[15] da mesma forma, as coisas, ainda que reais por si mesmas, necessitam de um topoi na consciência para adquirirem sua legitimidade para nós. O vício metonímico nos confunde por multiplicar uma série destes topoi na consciência de forma que legitimemos abstrações em vez de coisas.
Apêndice I – Verba Volant, Scripta Manent
É sabido que Olavo de Carvalho preferia expor sua filosofia de maneira oral, em vez de escrita, e de que tinha consciência de que seus alunos deveriam, algum dia, passar este material para o papel. Entretanto, este que vos fala deve admitir que vasculhar mais de quinhentas transcrições de aulas em busca dos conceitos corretos e, depois, ir corrigindo, de pouco e pouco, a pletora de buracos entre os raciocínios foi de estourar o saco. Assim, agradeço aos amigos que me ajudaram a encontrar, creio, todas (!) as menções ao pensamento metonímico presentes no Curso Online de Filosofia, uma vez que o conceito não possui exposição escrita em livro algum do Olavo. Espero que, de ensaio em ensaio, possamos “fixar” os conceitos olavianos de forma mais ou menos limpa.
Apêndice II – Momento Olavo
Bibliografia:
- Olavo de Carvalho – Inteligência e Verdade
- Olavo de Carvalho – O Filho do Imbecil Coletivo [artigo]
- Olavo de Carvalho – Curso Online de Filosofia: Aula 234
- Olavo de Carvalho – Curso Online de Filosofia: Aula 268
- Olavo de Carvalho – Curso Online de Filosofia: Aula 280
- Olavo de Carvalho – Curso Online de Filosofia: Aula 296
- Olavo de Carvalho – Curso Online de Filosofia: Aula 298
- Olavo de Carvalho – Curso Online de Filosofia: Aula 348
- Olavo de Carvalho – Curso Online de Filosofia: Aula 369
- Olavo de Carvalho – Curso Online de Filosofia: Aula 435
- Olavo de Carvalho – Curso Online de Filosofia: Aula 562
- Alfred N. Whitehead – A Ciência e o Mundo Moderno
- Eric Voegelin – The Collected Works of Eric Voegelin – Vol. 33 – The Drama of Humanity and Other Miscellaneous Papers 1939-1985.
- Carlos Nougué – Suma Gramatical
- Mário Ferreira dos Santos – Ontologia e Cosmologia [Ed.1959]
- Pe. Jose Hellin S.J. – La Analogia del Ser y el Conocimiento de Dios em Suarez
- Peter Berger – Os Múltiplos Altares da Modernidade
- Ronald Robson – Conhecimento por Presença
Em memória de Olavo de Carvalho
“[…] mas a malícia nada pode contra a sabedoria.”
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Notas:
[1] Ontologia e Cosmologia p.73
[2] “A metáfora, ou seja, a designação de coisa ou de qualidade mediante palavra significativa originalmente de outra coisa ou de outra qualidade que, todavia, podem ter com aquelas certa relação analógica.”Suma Gramatical p.190
[3] La Analogia del Ser y el conocimiento de Dios em Suarez p.27-28
[4] “Então, caso o sujeito não domine a gramática e ordem conceitual, não conseguirá captar, sequer, a noção de ordem social. A noção que ele terá será metonímica. Ele conceituará tudo mediante figuras de linguagem que crê, piamente, serem conceitos descritivos apropriados. Agora imagine milhares de pessoas palpitando nessa clave; é para enlouquecer a todos.” Curso Online de Filosofia: Aula 348 [Transcrição levemente corrigida].
[5] “Nisto, confundir as coisas com o sinal pelo qual as reconhecemos é o supra-sumo do pensamento metonímico. Por exemplo, um diploma universitário não é prova de que o sujeito conheça algo, mas sim do reconhecimento de que ele tem o direito de agir como se conhecesse. É somente isso, digo, não diz coisa alguma a respeito do conhecimento, como podemos ver na prática, pois vivemos num país que cultua o diploma ao mesmo tempo em que despreza o conhecimento.” Curso Online de Filosofia: Aula 296 [Transcrição levemente corrigida].
[6] “A capacidade metonímica é uma das grandes capacidades humanas na medida em que você pensa um pedaço e reflete o todo; mas a operação inversa não funciona. É possível abstrair uma porta, mas apenas mentalmente; não é preciso pensar um elefante, a tromba já “pensou” o elefante. Mas não separamos a tromba do elefante, apenas focamos nela. […] a metonímia é essencial para o pensamento humano, mas a operação inversa não funciona. Eu não posso pegar meu recorte mental e aplicá-los à realidade da qual retirei, e isso é um problema, pois é quase automático. É um defeito seríssimo de inteligência, é preciso lutar contra isso o tempo todo, para não separar o pensamento da realidade.” Curso Online de Filosofia: Aula 435 [Transcrição levemente corrigida].
[7] “O vício do raciocínio metonímico consiste em tomar a parte pelo todo, ou o instrumento pela ação, mas enxergando aí uma identidade real em vez de uma mera figura de linguagem.” Olavo de Carvalho – O Filho do Imbecil Coletivo [artigo]
[8] “É um erro de predicação; o erro de tomar o conteúdo pelo continente ou vice-versa, de tomar a espécie pelo gênero ou vice-versa, e assim por diante.” Conhecimento por Presença p.411
[9] Temos, aqui, a forma metonímica de troca de confusão entre concreto e abstrato.
[10] Whitehead explica o problema, em A Ciência e o Mundo Moderno [p.71] da seguinte maneira: “é a expressão de fatos mais concretos sob o aspecto de construções lógicas abstratas. Há um erro, mas é simplesmente o erro de tomar o abstrato pelo concreto. É um exemplo daquilo que chamei de ‘falácia da concreção deslocada’.” Eric Voegelin aceita a explicação de Whitehead e a utiliza em seu artigo The Drama of Humanity: “That is, the idea of the world is made into an entity, what Whitehead has called ‘the fallacy of misplaced concreteness.’ If you attribute to an idea [the] concreteness [of] an entity […] if you have such a conception of the world as if “the world” were real, you can let these other constructions follow. Man is a function of this world, and God is a function of man; and on that depends a whole wealth of further problems.” Collected Works vol.33 p.223-224.
[11] Uma vez que esta face do pensamento metonímico seja levada a sério, se torna mais fácil compreender o problema que Olavo cultivou com a filosofia cartesiana, posto que tal linha de pensamento seria composta, na opinião do filósofo, de uma grande série de confusões metonímicas desde sua concepção.
[12] Dizer que as idéias movem o mundo é um tipo de pensamento metonímico, digo, você toma o instrumento da ação por seu autor; enquanto isto for usado enquanto figura de linguagem, tudo bem, as idéias podem mover o mundo, feito o marxismo, o cristianismo, etc. Mas é, de fato, um pensamento metonímico e, caso exercido sem consciência, pode levar a resultados desastrosos; por exemplo, já viste alguma idéia eleita presidente da república? Alguma idéia pode implantar uma ditadura? É preciso que seja sempre um indivíduo humano, certo? Então o jogo político refere-se a pessoas contra pessoas: você pode até derrubar integralmente uma idéia e o poder permanecer absolutamente intacto. […] Num país onde a linguagem foi viciada por metonímias, ocorre seu abuso psicótico. As pessoas acreditam que idéias agem e que armas matam, mas tudo isso é metonímia. Elas acreditam, que a miséria produz revoluções, mas isso é, de novo, pensamento metonímico. […] furar a barreira do mundo das metonímias nos deixa inseguros porque, daí, perdemos a linguagem “pronta” que usávamos para nos referir às coisas e, assim, precisamos inventar uma nova, algo que um filósofo não consegue fazer sozinho a menos que seja um tremendo escritor feito Platão […] caso você tenha, para além da vocação filosófica, a vocação literária, então poderá criar uma linguagem que, personalizada, permita se referir às coisas não da forma como os outros dizem que são, mas da forma as percebe. […] Então a libertação do mundo das metonímias se inicia pela literatura, pois a função do escritor é fazer isso, como dito por Malarmé, dar um sentido mais puro às palavras da tribo […] Quando o escritor percebe uma coisa então ele especula como expressá-la e, assim, tenta de um jeito, e de outro, e de outro, até que, enfim, encontra uma fórmula que lança uma luz que faz com que o leitor perceba algo que não percebia. O trabalho que isso acarreta, para que fique perfeito, pode ser alucinante, feito o ocorrido com Flaubert, que ficava semanas procurando por uma palavra até que a encontrasse […] caso isso desapareça dos escritores, então desaparece a literatura; a metonímia se torna a imperatriz absoluta, passa a mandar em tudo, e aí as figuras de linguagem praticamente andam por aí como se fossem pessoas, mandando e desmandando…” Olavo de Carvalho – Curso Online de Filosofia: Aula 298 [Transcrição levemente corrigida]. Neste aspecto, o vício metonímico incrustado na linguagem pode levar a uma paralaxe cognitiva na medida em que o eixo teórico pré-concebido impede o acesso ao eixo real; a percepção funciona, mas a linguagem não.
[13] Quer dizer, a linguagem humana pressupõe um sujeito capaz de compreender. O computador compreendo e que você diz? É claro que não. Ele opera de acordo com pautas predeterminadas que o ser humano colocou lá. Ou seja, quando um computador inventar um ser humano, pode ser que você diga, bom, o computador pensou. Quer dizer, esse negócio de inteligência artificial […] é uma figura de linguagem, gente, isso é metonímico, pelo amor de Deus. […] Isso é inteiramente absurdo. Você tem, vamos dizer, operações que simulam a inteligência sob certas percas. Portanto, é uma expressão metonímica, onde há uma parte em que você está tomando erroneamente por um todo. É isso. Outra coisa, o ser humano não apenas compreende a linguagem, mas ele assume responsabilidade pessoal, psicológica, moral e jurídica pelo que ele está dizendo. Olavo de Carvalho – Curso Online de Filosofia: Aula 562 [Transcrição levemente corrigida]. A crítica da Inteligência Artificial também aparece em Inteligência e Verdade p.15 e seguintes.
[14] Mas progresso do conhecimento não é nenhum fato objetivo, nem mesmo um conceito racional, é uma figura de linguagem, uma metonímia. O que progride, ou melhor, aumenta, é o número de registros materiais dos conhecimentos adquiridos […] Se o número de registros aumenta, você diz, o conhecimento disponível aumentou; mas o conhecimento disponível será apenas potencial enquanto tal conteúdo não for apropriado por algum ser humano. Então não se pode dizer que houve progresso no conhecimento; isso é a mesma coisa que criar uma biblioteca científica no meio de uma tribo de botocudos que não sabem ler: o conhecimento está lá, mas eles não tem acesso. O que eles têm, de fato, é um acesso possível, virtual, pois poderão ler e entender o que está lá na biblioteca assim que se tornarem capacitados. Então, confundir o número de registros do conhecimento com sua possibilidade efetiva é algo possível apenas mediante o pensamento metonímico, em que o sujeito toma o instrumento pela coisa, o efeito pela causa ou o acidente pela substância. Então fica claro que um pensamento assim distorcido confunde as pessoas; caso alguém diga que, hoje, nós compreendemos mais do que todos os antigos, isso vale apenas para alguns domínios específicos. Por exemplo, é possível dizer que nós entendemos o processo histórico melhor do que compreendiam no ano 1500, mas esse “nós” se refere apenas ao círculo dos estudiosos, e não ao das pessoas em geral. Na verdade, a ciência histórica cresceu de forma que se tornou mais difícil de ser adquirida pela população comum, digo, ela exige uma especialização maior; segue que o número de pessoas capacitadas a compreendê-la se torna diminuto. Então, em que sentido podemos dizer que houve um progresso do conhecimento? Olavo de Carvalho – Curso Online de Filosofia: Aula 268 [Transcrição levemente corrigida] 17min +
[15] “[…] caso queira funcionar na sociedade, toda instituição deve ter um correlato na consciência.” Os Múltiplos Altares da Modernidade p.12
***
Foto de Capa por Mauro Ventura. O trabalho dele pode ser conferido aqui:
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