Entretanto, a participação também é realidade, e o diferencial de verdade entre duas concepções da realidade é imanente à dimensão histórica da consciência.
Eric Voegelin – Anamnese p.453
Eric Voegelin comenta, no primeiro volume de seu História das Idéias Políticas, sobre o problema que chamou de uso hieroglífico dos termos, vicissitude que consiste, grosso modo, na transferência de uma tese de um contexto para outro de forma que a substância do pensamento dilua-se e, assim, ocorra uma sub-repção. O autor nos oferece dois exemplos: o primeiro refere-se aos escritos de Políbio, que, buscando em Platão o auxílio necessário para explicar seu próprio pensamento, dilui as teses platônicas de forma que seu conteúdo seja radicalmente alterado; o segundo aponta o mau uso do termo técnico aristotélico zoon politikon que, antes referente à dependência da felicidade humana da organização da pólis enquanto comunidade política, foi subvertido, na modernidade, para um modo de falar do homem enquanto animal social. Neste sentido, é possível dizer que o uso hieroglífico dos termos aproxima-se muito do que costumamos chamar de anacronismo – certo vício que faz com que ignoremos contextos históricos e atribuamos, por exemplo, a certos autores pensamentos que eles não poderiam ter tido – na medida em que transporta o pensamento para fora de seu contexto e provoca-lhe certa deformidade. Atendo-nos ainda à explicação voegeliana, o modo correto de entender o uso das teses de um autor é retornar “à origem, para depois percorrer todos os passos que levaram à formação de uma ideia”; assim, o processo assemelha-se ao de aprender a tocar uma música através da identificação de seu tom, escalas e construção dos fraseados. Caso não tomemos este cuidado e utilizemos, por exemplo, termos antigos agora alienados de seu devido contexto, estaremos usando-os “como decoração, tomando de empréstimo […] um pouco do prestígio e da glória de um grande autor”.
Entretanto, ainda que sejam problemas quiçá simples de serem identificados, tanto o uso hieroglífico dos termos quanto o anacronismo histórico tendem a ser abundantemente encontrados na literatura filosófica e, muito especial e infelizmente – em nome de uma suposta didática –, em manuais. Por outro lado, embora normalmente cresçamos sob a égide de que o que importam são as intenções, também ouvimos falar que de boas intenções o inferno está cheio e, de certa forma, deveríamos lembrar, ainda, com Sto. Tomás, que parvus error in principio magnus est in fine[1] e que “vede que essa liberdade que tendes não se torne ocasião de queda para os fracos” [1Cor. 8:9]. Sendo assim, quão grave é que topemos com anacronismo & companhia em livros pretensamente didáticos?
Platão, no Fedro [274c], profere pela boca de Sócrates o seguinte mito: Toth, deus egípcio da sabedoria, concebe a escrita e a apresenta a Thamoü [ou Amon], o rei sob o pretexto de que ela serviria para aprimorar a sabedoria e a memória do povo. Entretanto, o rei argumenta que o uso das letras resultaria no contrário de seu propósito na medida em que os homens, deixando de praticar a mnemotécnica, legariam à escrita o que antes fora memorizado e, assim, tornando-se lânguidos, conservariam da sabedoria apenas a aparência; entretanto, a escrita serviria bem como ferramenta de evocação para o sábio na medida em que este não relega sua sabedoria às letras nem lhe é dependente, mas serve-se delas para precisar o que já sabe.
O sentido do mito pode parecer muito estranho para o homem moderno; como poderia a escrita ser prejudicial? Afinal, graças a ela registramos o conhecimento humano através dos séculos; todavia, é possível afastar a estranheza ao notarmos que o mesmo homem moderno relegou sua memória não apenas à letra escrita mas também à digitada, digo, confiou desde o número de seu próprio telefone a até uma infinidade de senhas – e sabe-se lá mais o que – a um disco ou a uma placa de circuitos integrados que, caso danificadas, causarão dano comparável a um mergulho no Lethes. Não se trata de condenar as letras enquanto ferramenta de registro mas enquanto substituto mnemônico e, assim, urge que notemos que o segundo caso consiste em certa transferência de responsabilidade cujas consequências incluem certa atrofia de nossa capacidade de recordar. Manfred Spitzer, no terceiro capítulo de seu Digitale Demenz, expõe alguns estudos sobre a capacidade mnemônica baseada na quantidade de processos realizados pelo cérebro durante determinada atividade e, grosso modo, conclui que uma maior quantidade de exercício, de esforço levado a cabo pelo encéfalo conduz não apenas a uma melhor memorização mas à otimização cognitiva como um todo devido ao estímulo das sinapses – sendo que o resultado inverso ocorre devido ao facilitamento excessivo devido ao uso indiscriminado de meios digitais. Um exemplo corriqueiro do que se quer expor aqui consiste em atentar que memorizamos melhor o conteúdo de um texto quando o anotamos do que, quando usando um computador, apenas o copiamos de um arquivo para outro através da ferramenta de copiar e colar.
Da mesma forma que o mero transporte de textos através da ferramenta de copiar e colar introduz uma superficialidade em nossa cognição, o mero transporte de teses para fora de seu contexto introduz uma superficialidade na filosofia, nos conferindo a falsa impressão de que os autores estão dizendo a mesma coisa quando na realidade não estão, algo que podemos conferir na exposição sobre a modificação do conceito de justiça ao longo da história apresentada por MacIntyre no livro Justiça de Quem? Qual Racionalidade? É de se notar que ignorar a história dos conceitos e das teses, o que de certa forma configura ignoratio elenchi, pode provocar o desligamento das teses de seu substrato real originário, o que ao longo do tempo nubla seu entendimento a ponto de que se pareçam com meras palavras soltas, nomes cuja existência reside apenas em nossas cabeças. Assim, numa espécie de nominalismo, somos levados ao que Voegelin chamou de dogmatomaquia, fenômeno ocorrido quando se discute utilizando conceitos que perderam seu conteúdo real e agora assumem a forma pejorativa do dogma. Foi isto o que aconteceu, por exemplo, com o termo metafísica.
Portanto, como evitar o anacronismo? Tendo em vista que o anacronismo tende a nascer do desconhecimento da dimensão histórica das teses e conceitos e que tal erro é comumente encontrado em manuais devido ao excesso de didatismo próprio de tais livros, o remédio consiste em tomar o caminho inverso e conferir o que se deseja, prioritariamente, na fonte primária. É perfeitamente possível e benéfico que confiramos na literatura secundária explicações extras em torno do que um autor quis dizer, mas a confiança cega no que foi dito por outro enquanto se desconhece aquele de que se diz não difere da crença de que se conhece uma pessoa apenas por ter ouvido falar dela. A mesma solução serve para que se evite o uso hieroglífico dos termos pois a devida contextualização da linguagem técnica impede que a transportemos indevidamente para outro contexto ou, caso estejamos tratando de um caso semelhante, possamos conduzir as devidas adaptações para que o novo homenageie o antigo sem desfigurá-lo e, assim, não estaremos meramente copiando e colando, mas reescrevendo.
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Notas: